António Zambujo é um dos mais populares músicos portugueses da actualidade. Poucos têm tantos fãs e enchem salas com a mesma facilidade, mas o sucesso não lhe parece ter subido à cabeça. Continua a ser fácil falar com ele, parece humilde, exprime-se com calma e ouve o que lhe dizem com atenção. A conversa começou pelo seu mais recente disco, Do Avesso, mas não tardou em descarrilar.
Kleber Cavalcante Gomes, o artista brasileiro que conhecemos como Criolo, já foi um rapper. E, se lhe perguntarem, ele responde que continua a ser isso mesmo: um rapper. Mas é muito mais do que isso. É um cantor e compositor engajado, que ao longo dos últimos anos tem incorporado o samba e outras músicas brasileiras no hip-hop. E o seu mais recente single, “Etérea”, é pura electrónica. Por altura da sua passagem pelo festival Mimo, em Julho, e antes do concerto desta sexta-feira no Lisboa Ao Vivo, tentámos falar de música e da sua evolução, mas a conversa não tardou a tornar-se política.
Quando lançou o primeiro disco, em 2006, era um rapper. Mas com os anos foi abraçando outras músicas, como o samba, e o mais recente single é uma canção quase electrónica. Por que é que o seu som mudou tanto ao longo dos anos?
Eu sempre escutei todas essas músicas, desde pequeno. Havia uns bailes nos bairros próximos do meu, onde não havia separação musical, você escutava de tudo: samba, black music e todas as suas variações, música electrónica. Todo o mundo estava junto. Então tudo isso faz parte da minha adolescência.
Mas porque é que isso demorou tanto tempo a reflectir-se na sua música?
Eu cresci num bairro muito pobre, não tínhamos estrutura para quase nada. Não imaginava que a música fosse algo a que eu me pudesse dedicar. Quando dizia que fazia rimas, as pessoas riam-se na minha cara. Pedia para uma pessoa que tocava um instrumento me ajudar numa música e ela ria-se. E no rap você precisa de uma batida e de um coração, e isso se transforma em rima. Mais nada. Só depois, e com o passar do tempo, é que o rap me permitiu criar estruturas para viver essas outras experiências musicais.
Compreendo. A canção meio electrónica de que falava, a "Etérea", tem uma mensagem de apoio à comunidade LGBT, que neste momento no Brasil está com a vida mais difícil.
É o país que mais mata LGBTs.
Isso não é de agora. Mas neste momento o próprio Presidente, Jair Bolsonaro, parece encorajar o ódio.
Exacto. Ele apoia. Então fica mais grave ainda. Daí a importância de fazer e partilhar a “Etérea” com o mundo. Essa canção é um aceno, um pedido de socorro ao mundo. E ao mesmo tempo é uma celebração de como essas pessoas [LGBT] são maravilhosas e dignas.
Quão mais difícil é a vida hoje, no Brasil, para uma pessoa LGBT, para uma pessoa negra, para uma mulher?
Sempre foi terrível. Nunca foi fácil. Mas quando o Presidente nega que existe um problema, de uma certa forma ele fortalece os preconceitos. E o que era pesadelo vira terror.
Como é que acha que daqui a dois anos vai estar o Brasil?
Não sei. Sei que já está uma história de terror, e temos de lutar para mudar isso. Como vai estar depois eu não sei. Depende do que fizermos agora. É preciso unir forças e mudar pensamentos e isso transformar-se em acção. É importante ir para a rua, apresentar à sociedade a sua opinião. Mas isso de modo sereno, de modo pensado. Porque eles querem ver-nos desesperados, gritando na rua, para dizerem que nós somos loucos, e que eles é que estão certos. E não pode ser assim.
Está a trabalhar num novo álbum?
Tenho muitas ideias para canções, e espero que em algum momento nasça um novo álbum, mas por agora estou mais preocupado em contribuir para a sociedade. Daí o “Boca de Lobo” ter saído semanas antes do segundo turno das eleições; daí a importância da música “Etérea” ter saído no dia em que o Supremo Tribunal Federal ia decidir se era ou não crime a discriminação por orientação sexual e identidade de género. É claro que fazer um disco é sempre um sonho e um desafio, mas isso é quase insignificante em relação ao que a gente pode contribuir para combater as injustiças.
Sem dúvida. Há coisas mais importantes do que qualquer disco.
Eu tenho um pai que vem da diáspora africana. O meu bisavô foi escravo. E eu sei o que é racismo. Eu sei o que é ser vítima de preconceito pela roupa que você está usando, porque é de bazar da pechincha, porque é comprada numa festa da igreja por centavos. Eu sei o que é as pessoas olharem para você com desprezo e saberem que naquele dia você está com fome. Eu não li isso. Eu vivi isso. Essas marcas, de alguma forma, vão ficar sempre comigo. E não quero que outras pessoas vivam essa dor. Não quero que nenhum jovem viva as tristezas que uma pessoa vive quando está crescendo numa sociedade extremamente repressora, racista, preconceituosa, em que um ser humano se sente mais do que outro. Porque essas dores não se curam.