Ela ilumina. Lembra a magia de uma canção, de fazer acreditar num mundo melhor, com mais amor. Selma Uamusse lançou em Julho passado o seu segundo registo em nome próprio, Liwoningo, que significa luz em chope, uma língua tradicional de Moçambique, o seu país natal. É um disco que acentua o património imaterial africano, mas que se mistura no mundo. Apresenta-o no dia 19 de Setembro no TODOS, um festival que celebra a interculturalidade.
O teu novo disco é um raio de luz. Onde é que encontras essa luz e esperança nesta altura?
Na realidade, este raio de luz que é o Liwoningo tem esta intenção já há algum tempo. Quando comecei a compor o disco, estava longe de imaginar que iríamos passar por uma pandemia e que viveríamos estes tempos tão estranhos, tão cinzentos. Mas para mim já era, de alguma forma, um pouco sintomático o modo como nos andávamos a tratar uns aos outros e ao planeta. Eu sou uma pessoa que me nutro muito da esperança e da alegria, mas em 2018, quando comecei a trabalhar neste disco, percebi e comecei a sentir que, apesar do avanço tecnológico, das grandes economias, do aumento do poder de compra, do aumento da esperança média de vida, da medicina avançada, havia também sintomas antagónicos e que neste desenvolvimento todo continuávamos a ter situações de guerra, de fome extrema, de preconceito, de ressurgimento de movimentos extremistas. E então senti uma necessidade de falar sobre sermos luz na vida uns dos outros, de não estarmos indiferentes às situações pelas quais os outros estão a passar, como os distúrbios mentais, que são também um assunto mito na ordem do nosso dia. Essa luz e essa esperança eu encontro obviamente na minha fé, mas encontro também nas pessoas que estão à minha volta e naquilo que eu considero que é o nosso poder transformador da sociedade, quando encontramos o propósito pelo qual nós vivemos.
O que é que podemos aprender num tempo de adversidade como este? Como gostarias que o mundo se transformasse após a pandemia?
Acho que no início da pandemia todos sentimos algo muito universal – acho que, pela primeira vez, as dores dos pobres eram as dores dos ricos, as dores dos mais velhos eram as mesmas dores dos mais novos. De alguma forma, esta pandemia tornou as desigualdades um pouco mais esbatidas. Obviamente que quem tem maior poder para ultrapassar as adversidades, e tem acesso a cuidados de saúde, viverá esta pandemia de uma forma completamente diferente de quem não tem. No entanto, acho que, se calhar pela primeira vez a nível global, o medo sentido por toda a gente nestas circunstâncias se tornou um denominador comum.
O que eu gostaria realmente é que esta pandemia nos trouxesse esse denominador comum em que somos todos muito mais parecidos e estamos todos muito mais próximos do que aquilo que muitas vezes queremos acreditar. Temos vivido de uma forma muito auto-suficiente, muito individualista, para a nossa espiritualidade, para o nosso sucesso profissional, para a nossa família, as nossas coisas, e sem dúvida que esta pandemia veio trazer esse sentido de percebermos que há males que podem afectar todos. Obviamente não terão as mesmas consequências, mas há coisas que nos podem afectar a todos.
Naquilo que diz respeito à minha área da música e da cultura, foi muito clara a fragilidade a que os trabalhadores estão expostos, principalmente as pessoas que trabalham na área do lazer, do entretenimento e da cultura. Foi muito evidente a fragilidade que existe na nossa profissão. E uma das coisas que eu gostaria que esta pandemia trouxesse de novo seria um maior respeito, uma maior atenção, uma maior preocupação e mais medidas que possam de alguma forma proteger um bem que é imaterial, que é a cultura, a música. Foi provavelmente um dos maiores alimentos neste tempo todo em que estivemos fechados em casa. A minha esperança é que o mundo se torne mais consciente e menos indiferente e que em particular na área da cultura possa haver maior apoio, maior respeito e maior atenção àqueles que cuidam da nossa alma.
Para uma artista que gosta de viver um concerto no meio do público, com muita entrega física e emocional, como é que estás a lidar com os distanciamentos nos concertos ao vivo?
Muito difícil para mim que sou uma pessoa física, que gosta de tocar as pessoas, que gosto de me aproximar, gosto de as sentir. Uma das principais razões pelas quais eu passo sempre do palco e dirijo-me até às pessoas é para esbater aquela visão que as pessoas têm do artista lá no palco, distante e inatingível. Eu gosto muito de fazer esse movimento para com o público, no sentido de agradecer a sua presença, no sentido de o conhecer melhor e mais de perto. Tem sido um desafio. Por outro lado, como qualquer desafio, também nos traz uma nova forma de conquistar as pessoas através do olhar – porque o olhar felizmente ainda não foi tapado pela máscara –, de falar um pouco mais aprofundadamente daquilo que é a minha mensagem e de sentir que as pessoas, pelas limitações que têm, estão mais atentas.
Eu acho que tem sido uma experiência muito boa, porque depois deste tempo em que estivemos em casa, todos nós, músicos, técnicos e público, estamos ávidos de momentos de entrega, de momentos em que temos esta comunhão musical. Obviamente é um tempo de adaptação, mas pelo menos os concertos estão a acontecer e isso para mim é muito bom. E a minha entrega emocional e até física continua a ser muito grande. Se calhar neste momento não posso tocar com as mãos, mas gosto de acreditar que continuo a tocar com o coração. E farei sempre música para o corpo, para dançarmos, para a alma, para nos emocionarmos, mas para o espírito também, para nos podermos elevar a um nível um pouco mais elevado.
Moçambique ainda é um país desconhecido para muitos portugueses. O que é que gostavas que os portugueses soubessem sobre Moçambique?
Moçambique é um país muito desconhecido para os portugueses e não só. Moçambique é a chamada "pérola do Índico" e eu acho que é realmente uma pérola que está bem escondida lá dentro da concha. Eu gostava muito, e tem sido um dos meus objectivos, não necessariamente ser embaixadora de Moçambique, mas deixar pelo menos alguma curiosidade. Moçambique tem pessoas muito especiais, é um país muito diversificado no que diz respeito às etnias, às culturas, é muito provavelmente um dos países onde eu mais vi um melting pot de pessoas de diferentes etnias, há uma miscelânea muito especial que faz com que haja um respeito e uma honra muito grande. Acho que essa é uma das grandes belezas de Moçambique – sem esquecer as paisagens, que é daquilo que as pessoas mais ouvem falar, das praias, das áreas florestais.
Mas há algo que eu tenho tentado trabalhar, definir e explorar que é este lado do património cultural e do património musical. Temos muitos tipos de dança, muitos tipos de ritmos, há uma riqueza enorme nas polifonias, nas polirritmias, temos muitas línguas oficiais, sem falar nos dialectos, e isso traz uma enorme diversidade a um povo que é relativamente discreto, mas quanto a mim muito especial, muito bondoso. E que tem conseguido ultrapassar dificuldades gigantes como fome, secas, cheias, ciclones, guerras, de uma forma muito honrada, mas sempre a olhar para o futuro com muita esperança.
O racismo começa a ser mais mediatizado, mas sempre existiu e sempre foi silenciado. Como é que tem sido a tua vivência como mulher negra em Portugal?
Vivo em Portugal desde 1988 e durante muito tempo sentia aquele racismo disfarçado, das pessoas que sempre me consideraram a preta, mas diferente, a preta especial, a preta que cheira bem, a preta que não rouba, a preta que fala bem. E eu fico muito contente que neste momento o racismo seja, não necessariamente mediatizado, mas que esteja cada vez mais exposto. Para pessoas que não têm tido a sensibilidade de acreditar que existe racismo em Portugal – porque existe –, o que me parece é que falamos de uma questão que durante muito tempo era uma espécie de hemorragia interna que não era visível para toda a gente e que neste momento está exposta. E, como qualquer fractura exposta, ela precisa de ser tratada e de ser sarada. Quando temos uma doença, nós precisamos de a diagnosticar e de saber o que aconteceu e o que está por detrás. Esta não é uma questão da moda – porque temos um movimento Black Lives Matter, e ainda bem que existe, porque cria maior sensibilização e maior consciencialização –, mas estamos a falar de um problema que existe não só na Europa mas também em Portugal, derivado também de todo o processo dos “Descobrimentos”, da escravatura, da colonização, e que eu tenho vivido na pele de muito perto, de várias formas.
Passei por imensas situações de preconceito e de racismo claro e evidente. Obviamente não encerro a minha existência só enquanto mulher negra e emigrante e na diáspora, mas isso tem criado condicionantes para maior dificuldades em determinadas áreas. Mas tal como essa etiqueta, também poderia ter outras etiquetas que não têm facilitado a minha convivência, mas fico honestamente muito feliz que haja espaço para nos escutarmos uns aos outros, para nos ouvirmos e para percebermos que esta ferida tem de ser sarada. E ela só pode ser sarada se for falada, discutida e tratada com o carinho que deve ter.
O que é preciso para Portugal reconhecer que é um país racista?
Reconhecer que Portugal é um país racista é o mesmo que reconhecer que existe racismo em Portugal. Para algumas pessoas, a expressão “Portugal é um país racista” é uma frase muito ofensiva e efectivamente as palavras têm muito poder e ninguém quer abraçar isso de ânimo leve. Há sempre uma sensação de desconforto – se eu não me sinto racista, por que é que eu hei-de dizer que Portugal é um país racista? Mas quando existe racismo, isso torna-se parte da identidade de um país.
Acho que é muito importante reconhecer que não somos todos tratados da mesma forma. As oportunidades não são iguais e existe ainda uma mentalidade não descolonizada por parte de muitas pessoas que ainda vêem os pretos como os serventes, os lacaios, aqueles que estão numa posição inferior, que falam menos bem, que precisam de ser educados pelo branco. Eu acho que é preciso fazer um reconhecimento de que existe uma situação histórica por detrás que nos faz ter um racismo que está de tal modo estruturado na nossa mente e na nossa forma de estar que já o tomamos por normal.
Um dos maiores desafios é quando temos que nos colocar numa posição que nunca vivemos. Obviamente que não podemos fazer isso assim num clique, mas podemos parar, pensar, escutar. Ouvir quem tem passado por racismo e não partir do pressuposto de que a comunidade negra se auto-vitimiza e que acha sempre que tudo é racismo. Porque efectivamente muitas vezes nos temos silenciado enquanto comunidade negra e neste momento precisamos de falar. Precisamos de falar das dores que temos sentido, nas dificuldades em encontrar emprego, na dificuldade de enviar um currículo com fotografia a pensar que isso irá tirar oportunidades, nas dificuldades em coisas tão simples de ser adolescente, como saber que se calhar não vais entrar numa discoteca por ser negro.
É preciso falar, é preciso ouvir. É tempo de as pessoas ouvirem quem tem passado por situações de racismo e entenderem que não são só os outros, mas que a nossa mentalidade ainda não está completamente descolonizada. Isso faz parte da história e é importante reconhecer que a história moldou a nossa forma de pensar.
E temos que mudar essa mentalidade, essa forma de pensar. Ignorar e dizer que não há racismo, que não somos racistas, não irá mudar a forma como a sociedade está neste momento.