Já foste estrear este disco ao Brasil. Como correu?
Estreei em São Paulo, no Rio e em Portalegre. No Rio as pessoas aproveitaram para exteriorizar um bocadinho o sentimento que têm neste momento em relação à situação política que o Brasil atravessa. Então, quando chegou a altura de tocarmos...
Vou adivinhar: quando chegou a altura de tocar o Cálice.
Precisamente, na altura em que tocámos o Cálice. Começaram a gritar "fora (Michel) Temer". Os petistas (apoiantes do PT) e os coxinhas (alcunha pejorativa para um conservador), como eles dizem por lá, a protestar uns com os outros. Tive de interromper a música, esperar que se acalmassem e voltar ao início.
Lidaste bem com isso?
Já estava à espera que acontecesse. O Chico tem sido uma pessoa contestada, pela posição política que assume. Ele diz que agora aquilo já está mais calminho. Diz que anda na rua, chamam-lhe filho da puta mas que isso não lhe faz grande diferença. As abordagens já foram mais violentas. Agora a situação está mais normalizada.
Ele esteve lá?
Não. Eu acho que ele quis fugir um bocadinho a essa coisa. Ele já não é uma pessoa que goste muito de aparecer. Em alturas destas então... Ele aliás saiu do Brasil. Na altura em que estivemos lá ele estava em Paris.
Que é um dos refúgios dele...
Sim. É para onde ele foge normalmente.
Como é que foi a sensação? Uma coisa, imagino, é cantar a música do Chico aqui, outra diferente será cantar lá.
Foi boa. A ideia do disco sempre foi, única e exclusivamente, homenagear um compositor de quem eu gosto muito. Fiz do Chico Buarque como poderia ter feito do Tom Waits...
Passa-te pela cabeça?
Provavelmente a determinada altura da minha vida irei fazer também. A única diferença é que o Chico, na altura em que fizemos o disco, estava mais próximo. O Tom Waits nunca o conheci e provavelmente nunca o vou conhecer. Mas quanto a cantar Chico no Brasil, a situação que o país atravessa... confesso que senti essa tensão. Mas na altura em que estamos a tocar estamos em casa. E a partir daí tocar no Rio, tocar em França ou tocar aqui é pura geografia.
Precisamente, levaste o disco a França também...
Depois do Brasil já estreámos em França. Fizemos o primeiro concerto cá em Estarreja. Dia 4 em Beja, dia 5 em Aveiro, depois seguimos em digressão pelo país.
Tens ideia de quantos concertos fizeste o ano passado?
Eh pá... uns 120 talvez...
Contei pelo menos 120, sim. Estava a tentar perceber se tu sabias.
Pois, às vezes já me perco. Mas tenho essa ideia.
Muitos deles a solo.
Ultimamente sim.
Apetece-te estar sozinho?
Não é por imposição minha, mas por solicitação das pessoas. Umas vezes porque já viram e preferem, outras vezes porque o auditório é pequeno e acham que faz mais sentido. Eu gosto. O solo... confesso que ainda não tinha encontrado a minha zona de confronto. Mas agora comecei a desfrutar mais disso, comecei a sentir-me bem.
Mais livre?
Também. É um concerto mais livre, não tens de obedecer a um alinhamento como com a banda. Vai assim um bocadinho ao sabor da maré. O público também me inspira a tocar coisas que já não tocava há mais tempo, coisas que não são minhas e que me apetece tocar e toco. Enfim, dá-me mais liberdade.
E nunca é igual.
Pois não, tem isso de bom também.
Não te sentes cansado?
Não. É de facto cansativo, as viagens cansam. Mas quando sobes para cima do palco, vês a sala esgotada e percebes que as pessoas gostam, isso nunca cansa. Para compor sinto-me mais desligado. Na minha vida normal não sou um tipo que ande sempre agarrado à guitarra. Faço outras coisas para me desligar...
Por exemplo.
Gosto muito de ir ao ginásio. No fundo, gosto muito de ter rotinas, que é uma coisa que esta vida não permite. E pouca coisa de música. Às vezes oiço uma coisa ou outra, um disco novo que sai, mas nem oiço muita música. Gosto de estar em casa em silêncio.
Vamos recuar 15 anos. O teu primeiro disco sai em 2002. Imaginavas-te assim, nesta azáfama de 120 concertos por ano?
Nunca. Mas nunca criei grandes expectativas. As coisas foram sempre surgindo. Mesmo recuando mais atrás, uns cinco anos antes desse disco. Ainda morava em Beja, cantava em Évora, na altura na Pousada dos Loios, duas vezes por semana, tinha um bar em Beja, vinha de vez em quando a Lisboa para cantar... até isso aconteceu por acaso. Estava em Évora e um dos rapazes que tocava vinha a Lisboa substituir um músico no Clube de Fado e convidou-me para vir com ele. O Mário Pacheco convidou-me para cantar e a partir daí ficou com o meu contacto. Felizes acasos, sempre. Depois no Clube de Fado alguém aqui do Politeama estava lá, andavam à procura de um rapaz para entrar no musical Amália... outro feliz acaso, estar no sítio certo à hora certa. Ter conhecido as pessoas que me ajudaram a gravar o primeiro disco, que me fizeram as primeiras músicas originais, o Mário Rainho, o José Luís Gordo, também os conheci por acaso num sítio que nós frequentávamos quando saímos daqui do teatro, o Bacalhau de Molho, ali em Alfama. Todas essas coisas foram acontecendo sem grandes expectativas.
Sempre falaste de ti como um músico no cruzamento entre o cante e o fado. Mas a música brasileira é um terceiro caminho que sempre lá esteve...
Completamente. A música que eu faço assenta sempre em dois pilares que são os mais importantes, os mais antigos. É a minha primeira memória musical, que é a música tradicional do Alentejo, e é o fado que é a primeira coisa que eu escutei e me deixou com vontade de cantar e aprender. Depois acabamos por ser o reflexo daquilo que ouvimos. Mesmo no dia-a-dia, a música acaba por nos moldar, a personalidade e a maneira de ser. Quando ouvi o João Gilberto pela primeira vez percebi que nada voltaria a ser o mesmo, aquilo ia ter uma grande influência em mim...
O Caetano diz que quando te ouviu pela primeira vez também pensou no João Gilberto.
É verdade, ele disse isso. Foi incrível. No João Gilberto encontrei o que queria ser. Tudo mais ou menos parecido com as ideias que eu tinha para a música. Aquela forma de cantar sem grandes exibicionismos. Transmitir uma mensagem de uma forma simples, os silêncios que ele usa...
Melhor que o Silêncio só João. Citando novamente Caetano.
Isso. E aquele jeito de provocar sempre um bocadinho de caos nas músicas, as alterações na harmonia, coisas no cantar que não são tão óbvias. Depois do João vieram outros, o Jobim, o próprio Caetano, a Elis... o João tem isso de bom também, porque ele canta todos, desde os mais antigos aos mais recentes, e isso abre portas a muita gente...
Então e o Chico?
Chega mais ou menos na mesma altura. O Volume 3 continua a ser um dos discos de que eu mais gosto. Uma parada de estrelas inacreditável, desde o “Retrato em Branco e Preto”, que é provavelmente a música que eu mais gosto dele, o “Até Pensei”, “Januária”, “Carolina”, “Sem Fantasia”... há tanta coisa.
Tens falado sempre deste disco como um parêntesis no teu caminho...
É um bocadinho. É uma coisa que não estava prevista. Não foi uma coisa muito pensada. O facto de eu ter ido muitas vezes ao Brasil no ano passado, o facto de ter conhecido melhor o Chico, o facto de até do ponto de vista comercial fazer algum sentido, porque o disco anterior tinha saído há mais de um ano e então estava na altura de começar a pensar pôr qualquer coisa cá fora. Tudo isso acabou por fazer sentido.
Começaste com mais de 100 canções para chegar a estas 16...
Pois. Ele é provavelmente o maior letrista da língua portuguesa, tem discos que nunca mais acabam, uma carreira com mais de 50 anos... Fazer uma selecção de 16 músicas não é fácil. É mesmo muito complicado. Contei com a ajuda deles para fazer a escolha definitiva. Umas foi o Chico que sugeriu, outras o Marcelo. Nós agora ao vivo fazemos essas 16 mais algumas que poderiam ter entrado no disco e não entraram
Oi!? Isso é novidade. Quais?
“Tatuagem”, “Retrato em Branco e Preto”, “Teresinha”, “Qualquer Canção”, aquela outra ta ri tárá tu ri... tá rá rá ri rá ri... escapa-me o nome... [pausa para consultar o telemóvel]... “Todo o Sentimento!”