Passaram seis anos e ele nem deu por isso. O último disco de estúdio, Mútuo Consentimento, é de 2011, mas até chegar a este Nação Valente, Sérgio Godinho não parou de criar. É que se acaso pára, confessa, crescem-lhe borbulhas. Aos 72 anos, cresce o desassossego da escrita – lá para Setembro há novo romance – mas não se imagina sem criar música e sem lhe dar palco.
Filipe Sambado vai fazer correr muita tinta com o novo álbum, Filipe Sambado & Os Acompanhantes de Luxo, o primeiro com o selo da Valentim de Carvalho, depois de uma série de edições independentes. Encontrámos-nos no Fábulas para uma conversa sobre canções, lábios pintados e andar à porrada em Elvas, onde passámos a infância.
Até agora tinhas trabalhado apenas em discos e projectos indie, mas este novo, Filipe Sambado & Os Acompanhantes de Luxo, saiu pela Valentim de Carvalho. Como é que isso afectou a tua música?
Ainda não sei, porque já tinha um plano muito delineado sobre o que ia fazer, antes de assinar pela Valentim de Carvalho. Ia fazê-lo quase sem verbas, ia ser um disco com o empurrão da Maternidade e ia sair pela Spring Toast. Agora posso finalmente ressarcir as pessoas com quem trabalho, mas o plano continuou igual. Ninguém se meteu em nada das músicas.
Nunca tiveste reservas em assinar por uma grande editora?
Se houver reservas será depois. Este disco já estava montado... Sabia que tinha de fazer o disco em banda, sabia que havia uma certa urgência para isto acontecer e que as pessoas com quem toco podem a qualquer momento não poder tocar mais comigo, sabia que queríamos começar a tocar as músicas novas em conjunto.
Dirias que o Filipe Sambado & Os Acompanhantes de Luxo é um disco teu ou que é um disco vosso? Como foi o processo criativo?
É igual ao que era noutras bandas em que tocava. Por exemplo, nos Cochaise eu trazia as canções e depois moldávamos à banda.
Levavas guitarra e voz?
Sim. E eu sou chato, tenho as minhas ideias. Mas há momentos que são do génio e da cabeça de um ou de outro. “Em Paz” é uma música que eu trago na guitarra, mas sei que se vai desenvolver a partir do baixo. Depois tens “Dono da Bola”, em que a primeira parte da música é minha, mas na segunda volta, antes do segundo refrão, é o Manel [Lourenço, que faz música como Primeira Dama] que diz: “Vamos fazer aqui um daqueles arranjos do Zé Mário para um disco da Zeca”. E mete o Alex [Rendeiro, ou Alek Rein] a fazer uma guitarra que soa a uma espécie de acordeão e ele faz o contraponto nas teclas. Por exemplo, “Mentol” é uma música que eu fiz mas que vive muito do trabalho de timbalões do Luís [Barros, na bateria], que aguenta a música toda. Uma coisa até meio Animal Collective acho eu. As coisas caíram bem porque sentes o cunho deles sem se perder a minha linguagem.
Falámos no José Mário Branco, em Animal Collective. O que é que tu ouves?
Não sei. Eu oiço coisas em torrente e paro quando sinto que só estou a ouvir aquilo.
Mas qual foi a última coisa que andaste a ouvir em torrente?
O Por Este Rio Acima, do Fausto. Porque o próximo disco está muito avançado e estou a precisar de procurar ideias de percussões.
Ainda agora lançaste este e o próximo já está muito avançado?
Já tenho dez músicas e 20 letras.
O que distingue as canções que já tens para um próximo disco das que tens no segundo álbum que está a sair agora?
Falo mais sobre o trabalho. Porque estou a trabalhar em TV 12 horas por dia. Acordo às seis e meia, às sete e meia estou a apanhar o transporte para o Cacém. Fico lá 12 horas e volto. Chego às oito e meia ao Cais do Sodré, vou para casa, janto, tomo banho e para poder trabalhar no dia a seguir tenho de me deitar às dez e meia. Portanto, tenho uma hora de vida quando volto do trabalho. Essa ideia de tempo no trabalho tem-me preocupado bastante. Durante muito tempo andei a fazer discos que falavam sobre questões amorosas e agora sinto que as questões amorosas não são o centro da vida.
E consegues encontrar um tema que seja transversal ao disco que estás agora a apresentar?
Talvez uma pesquisa para o meu bem-estar pessoal, com uma série de escolhas e tomadas de posição. Porque passei a apresentar-me na vida de outra forma à medida que fui descobrindo a minha liberdade e a minha maneira de estar.
Referes-te à tua maneira de estar em público. Ao teu visual, que hoje é mais queer. Como é que começaste a sentir-te à vontade para te apresentares assim?
Eu sempre quis fazer experiências, ao nível de roupa, que não fazia por desconforto. À medida que me fui envolvendo em certas bolhas sociais, e dando com pessoas que me deixaram confortável, pude ir-me desenvolvendo. Fui experimentando umas coisas em concertos, depois comecei a fazê--lo no dia-a-dia, porque percebi que podia. Já andava de saia na rua ou de vestido ou o que fosse. Claro que agora há uma série de pessoas que comentam e olham de lado porque eu ando de saia. Antes não tinha que lidar com isso. Agora tenho.
Tu cresceste em Elvas, um meio muito conservador, como ambos sabemos, e depois vais para Lagos, que presumo que não seja muito melhor. Como é que as pessoas com quem cresceste lidam com esta nova maneira de estar?
De Elvas estou mais desligado, mas em Lagos há muita gente que comenta... “Então andas a pintar os lábios?” Coisas assim. Se calhar eu só não comecei a fazer certas escolhas mais cedo no que toca à minha indumentária por ter crescido nos sítios onde cresci. Tentei sempre defender-me, não apanhar demasiado. Mas eu fui a menina a minha vida toda. Em Elvas, quando tive cabelo comprido no [Colégio] Luso-Britânico, eu era a menina que levava porrada de toda a gente. Em Lagos era um pouco diferente. Tens os estrangeiros… E depois fui morar para um bairro social e comecei a dar-me com a malta que fazia merda. Quando fazes merda não és um gajo com quem as pessoas se metam tanto.