2018 ainda agora começou e a agenda de concertos em Lisboa já está a rebentar pelas costuras. Portanto, tem de se organizar. Não faz contas para as suas contas? Não cria tópicos e lembretes telefónicos para bater tudo certo e o orçamento esticar até ao final de cada mês? É encarar os concertos como o IMI ou o IUC e escolher ao que vai.
Três anos depois de True, The Legendary Tigerman está de volta aos discos. E de que maneira. Com Misfit, um álbum de rock and roll gravado em trio, com Paulo Segadães e João Cabrita, no mitifacado Rancho de La Luna, estúdio de Dave Catching (earthlings?) em Joshua Tree. E com Misfit Ballads, conjunto de baladas que não encaixavam em Misfit. E com o filme Fade Into Nothing, de Furtado, Rita Lino e Pedro Maia, história de estrada e diário de viagem ficcionado que acompanha a edição em CD de Misfit. E ainda há a banda sonora do filme, a editar mais perto do final do ano. Falámos sobre isto tudo com o músico português.
A música de The Legendary Tigerman sempre foi muito americana – os blues, o garage – mas era uma interpretação feita à distância, por alguém de fora. Como é que foi fazeres um disco lá, com uma vivência mais próxima do país?
Sabes que não foi por acaso que só agora é que fui lá gravar um disco [de The Legendary Tigerman]. Em 1998 e 99, estive lá durante algum tempo e mudei a minha perspectiva em relação à música americana. Aprendi uma série de afinações abertas, tomei contacto directo com os blues e com pessoas que me ensinaram uma data de coisas. Foi um período de descoberta e transformação, de estilização da minha música. Como venho do punk e do rock houve muitas coisas dos blues que entraram por aqui e mudaram o que eu fazia, e eu achei durante muitos anos que seria redundante gravar na América porque eu não queria ir lá antes de ter uma linguagem minha bem definida.
O novo disco, Misfit, é de alguma forma uma reacção ao anterior, True?
Acho que sim. No True eu levei a coisa da one-man band longe demais. Passei horas e horas, durante meses, numa cave negra e escura. Passava um dia inteiro a tentar resolver uma parte técnica de uma música e a certa altura comecei a achar que isso era estúpido. Por que é que tinha de me forçar a tocar tudo, os instrumentos todos, se podia fazer uma coisa diferente. Eventualmente o Sega entrou para bateria, e mais tarde entrou o [João] Cabrita, um bocado por acidente. De repente, de uma maneira super-orgânica e não planeada, esta one-man band acabou por se transformar num trio, o que me obrigou a tomar uma decisão: gravar este disco como one-man band ou como um trio. E optei por essa última hipótese, porque era o que me estava a dar mais gozo e porque a linguagem criada com o Cabrita, com o saxofone barítono, que tem um som muito poderoso, era interessante. Podíamos criar uma parede de som e uma sonoridade diferente, mantendo alguns dos princípios deste projecto.
O saxofone do João Cabrita é de facto determinante no disco. Como é que foi trabalhar com ele, estando tu tão habituado a fazeres tudo sozinho nos discos de The Legendary Tigerman?
Foi paradisíaco. O Cabrita é um músico inacreditável e os inputs dele foram sempre incríveis. Dele e do Sega. Mas há uma grande generosidade do Cabrita em estar ao serviço do meu ponto de vista. Deixar-se guiar pela minha ideia para o disco e direcção artística, mas não se coibir de seguir pelas direcções que ele quer seguir. Isso para mim tornou-se claro logo ao vivo. Quando começámos a tocar ao vivo o sax passava muitas vezes à frente da guitarra, e felizmente que o fazia, e a linguagem deste disco começou a ser criada aí. Era uma energia tão boa e tão especial que era necessário aproveitá-la.
Voltando à relação entre o Misfit e o True, parece-me também que o anterior era um disco mais pessoal.
Sim. O True tinha sido uma coisa muito instrospectiva, e aqui achei que tinha de olhar para fora, mesmo que esse olhar tenha muito de mim mesmo. Precisei de forçar isso.
Quem é este “Misfit” que dá o nome ao disco? Ainda é o Legendary Tigerman ou é um novo personagem?
É um novo personagem, por cima do Tigerman. Ou melhor, é uma máscara que vem por cima desta máscara que é o Tigerman. Há uma relação, mas há quase um descruzar. E é um personagem curioso. Não percebes se é um gajo completamente descompensado, se é um gajo que meteu demasiados ácidos e já não é capaz de raciocinar direito. [No Fade Into Nothing] não percebes o que é real ou não. Se aquelas coisas podem ser reais e ele é só um pobre diabo à procura da sua alma no meio do deserto... Essas interrogações estimularam-me muito na escrita dos diários dele.
E o que tens a dizer sobre o processo de composição do álbum e rodagem do Fade Into Nothing?
Não me apetecia escrever sobre mim próprio, apetecia-me olhar para fora. Isto muito antes de chamar o Pedro e a Rita para embarcarmos nesta ideia do Fade Into Nothing, que na altura nem sabia que ia ser uma longa-metragem. Queria escrever sobre coisas que estivessem a acontecer fora de mim e eu pudesse ver por outros olhos. Sobre a estrada e o caminho. Percebi que gostava de escrever isto na América, na estrada, além de que o deserto de Joshua Tree é muito estimulante. Era uma viagem que me interessa muito e quis nessas duas semanas condensar toda a faísca criativa, de escrita e de composição, quer do disco, quer do filme. Claro que houve um ano de planificação antes e um ano de trabalho depois, mas no fundo a faísca criativa aconteceu nessas duas semanas.
A banda sonora do filme é diferente do Misfit e das Misfit Ballads que acompanham o disco. As composições também nasceram naquelas duas semanas? Estás a pensar editar isso?
Esse processo foi totalmente exterior àquelas duas semanas. Foi o momento em que me tentei distanciar mais do projecto. Ainda pensei em pedir a outra pessoa para fazer a música, mas não achei que fosse a solução mais correcta, até porque musicalmente o filme teria de ter algo a ver comigo. Então encarei quase como uma encomenda do Pedro e da Rita, para me distanciar. E acho que isso funcionou muito bem. A banda sonora é mais pesada, mais negra e mais electrónica, exactamente porque o Pedro e a Rita têm outras referências. E sim, haverá uma edição em vinil dessa banda sonora mais perto do final do ano.
Sei que a autoria do filme é partilhada pelos três, mas como foi a separação de trabalho real?
Houve um período ainda longo, uns cinco ou seis meses de planeamento e de escrita e definição da própria viagem: por onde íamos, onde íamos parar, sobre o que ia o filme falar, quem era este personagem, este Misfit. Coisas que fizemos de uma maneira tripartida. Mas a partir do momento em que chegámos à América a coisa mudou de figura. Eu fiquei praticamente com dois papéis: o de personificar o Misfit e escrever as entradas do diário que dariam corpo ao filme. Depois, durante a rodagem, o Pedro e a Rita tomaram mais a direcção da realização. E a Rita também fez a direcção de actor comigo. Foi um processo muito intuitivo.
Tens um sotaque muito cerrado no filme, uma pronúncia muito aportuguesada. Não te passou pela cabeça ter outra pessoa a ler os teus textos, dado que era tudo em off?
Passou. E tivemos um actor americano incrível e muito talentoso que se disponibilizou para isso. Mas... É uma belíssima questão que levantas. Porque primeiro pensei em escrever em português, só que depois percebemos que isso limitava e definia demasiado a personagem que queríamos que fosse mais vaga, um europeu perdido na América. E eu até gosto da pronúncia. Podia ter feito algo mais próximo da pronúncia americana mas não me pareceu o ideal. Tinha de ser claro que [o Misfit] não é um americano, que é um europeu que está na América. Isso era importante no filme. Por outro lado, também era importante que fosse a minha voz, era mais pessoal.