Ela ilumina. Lembra a magia de uma canção, de fazer acreditar num mundo melhor, com mais amor. Selma Uamusse lançou em Julho passado o seu segundo registo em nome próprio, Liwoningo, que significa luz em chope, uma língua tradicional de Moçambique, o seu país natal. É um disco que acentua o património imaterial africano, mas que se mistura no mundo.
Desde que Mariza apareceu, nunca mais olhámos o fado da mesma forma. Num mundo globalizado, deu-lhe novas cores e coordenadas, mas sem desrespeitar a tradição. Agora a completar 20 anos de percurso musical, Mariza canta Amália, no centenário do nascimento da diva. Já a interpretou várias vezes, mas é a primeira vez que lhe dedica um álbum inteiro, que será editado a 20 de Novembro. Gravado entre Lisboa e o Rio de Janeiro, o disco conta com arranjos do músico e produtor brasileiro Jaques Morelenbaum, cúmplice de Caetano Veloso e Ryuichi Sakamoto. Com guitarra portuguesa, viola e orquestra, afloram influências do jazz e da música clássica, mas também da lusofonia. Todos nós temos Amália na voz, mas a majestosa Mariza apodera-se destes temas sem ser assombrada pelos antepassados, com uma abordagem tão pessoal que nunca soa a imitação.
Lembras-te da primeira vez que ouviste Amália?
Devia ser nos meus 16 anos, ia a passar numa rua da Baixa com amigos e ouço uma voz a cantar a “Barco Negro”. Fui perguntar quem era e o senhor não acreditava que eu não conhecia. Canto fado desde pequena, mas o que ouvia em casa não eram vozes femininas, o meu pai nunca gostou muito de vozes femininas. Talvez hoje goste mais (risos).
O que te atraiu na Amália na primeira vez que a ouviste?
A voz. Era uma voz diferente, com um grande carisma. Depois, mais tarde, comecei a prestar atenção, a ler os poemas, a perceber que a Amália escreveu poemas. E a forma como se rodeou de poetas tão importantes na época, e os compositores, principalmente o Alain Oulman, que fazia com que aquelas palavras ganhassem um sentido e uma roupagem tão nobre.
Essa primeira canção que ouviste da Amália, "Barco Negro", entrou no teu primeiro disco e também neste novo, mas com uma roupagem totalmente diferente.
As pessoas evoluem, crescem, começam a sentir. Já perdi essa inocência de cantar igual ao que cantava no primeiro disco. É impossível, já passaram tantos anos.
A experiência também pesa muito na interpretação.
Nem é a experiência, acho que é a vida. Conforme vamos vivendo, a vida vai-nos trazendo novas emoções. Independentemente de serem más ou boas, essas emoções vão fazendo parte do caminho e vão-nos moldando.
A tua voz também foi mudando, ficou mais profunda.
Se isso não acontecesse, ficaria preocupada (risos). Eu prefiro-a agora, há uma maturidade, um corpo, um calor, é completamente diferente. Mas acho que também é o peso da idade.
Porque é que é importante continuar a cantar Amália?
É a mesma coisa que me perguntarem porque é que é importante continuar a cantar Ella Fitzgerald, Nina Simone ou Frank Sinatra...
Mas a música renasce com a leitura de outras pessoas.
A música renasce e quando é um legado tão interessante, tão bonito, tão bem feito e tão respeitoso, é para continuar a viver durante os tempos. Há uma diferença muito grande entre a música pop, que é de consumo rápido, e estas músicas que foram feitas para durar séculos, para durar uma vida.
Descobres coisas novas de cada vez que interpretas estes temas?
A "Lágrima" não era para fazer parte do disco. Quando eu cantava para mim esse tema, em casa, na minha cabeça soava a outra coisa, não tinha nada a ver com aquilo que já tinha ouvido por outras vozes, ou em casas de fado, ou mesmo pela própria Amália. Sinto-a como uma balada de alguém que canta no sentido de: por mais triste que possa ser um amor que não ficou, tive a alegria de poder saber o que é o amor. É o que faz sentido para mim quando canto esse tema. E então eu dizia ao produtor Jaques Morelenbaum que tenho de a tirar porque não me vejo a cantar isto da forma que seja. E ele dizia: "Mas isso não existe, Mariza. Cada um interpreta e sente à sua maneira. Vamos experimentar". Quando começo a ouvir os acordes, aquilo começou a fazer tudo tão sentido... Quando acabou, estávamos todos em suspense.
Existe alguma responsabilidade acrescida, algum receio quando se interpreta Amália?
Acho que essa responsabilidade existe sempre, de cada vez que se toca no legado de alguém tem que haver uma grande responsabilidade. Tenho-a sempre, cantando temas da Amália ou cantando temas que me foram oferecidos por outras pessoas. Acho que isto se nota cada vez mais, nos últimos concertos. Não sei se é por agora não cantar tanto, mas estou cada vez mais nervosa. Eu pensei que com o tempo ia passar e não passa.
Mas porquê esse nervosismo?
Cada um tem a sua forma de sentir o palco. Eu sinto o palco como um santuário. Apesar de brincar e desanuviar, nos primeiros três temas há sempre um conflito de emoções comigo e com a música, com entender o que é o espaço que me rodeia. É como se entrasse numa dimensão completamente diferente. No fundo, mostrar tanto as emoções quando se canta, é isso que apavora. É o respeito de cantar a língua portuguesa, de tentar fazer o melhor que se sabe, mas também porque sou um ser humano, as emoções estão lá todas.
Nestes 20 anos, a imagem do fado mudou completamente em Portugal...
Sim, não havia tantas vozes, havia o Camané, a Mísia, a Cristina Branco, pouco mais. Hoje há um leque gigante de cantores, de vozes muito bonitas. Lembro-me que, quando fiz o primeiro disco, nenhuma editora queria uma cantora de fado. Não podia cantar com o cabelo curto louro, ou usar vestidos diferentes. Hoje tudo é permitido, o panorama mudou muito. É formidável perceber que com os concertos que faço no mercado internacional as pessoas procuram aprender português, procuram entender as letras que canto. Há pessoas que por causa da minha música quiseram conhecer Portugal, quiseram conhecer a gastronomia, a história, apaixonaram-se por fado, pessoas que até compraram casa em Portugal. É engraçado perceber o poder que a música tem no mundo das pessoas. Não é só como banda sonora, muda mentalidades.
Costuma dizer-se que no fado há um antes e um depois de Amália. Podemos também dizer que há um antes e um depois de Mariza?
Eu acho que já começa a fazer sentido... (Risos.) Mas as pessoas ainda olham para mim e vêem uma miúda.
A sério? Com tudo o que já fizeste e alcançaste?
Acho que sim, ainda olham... Os tempos mudaram muito, da época da Amália para hoje, mudou a forma como trabalhamos a informação, a forma como a informação chega à pessoas, a forma como lidamos com tudo. Eu consigo olhar para 20 anos atrás e perceber como era no final dos anos 80, nos anos 90, o que é que se passava no fado, o que é que existia e o que é hoje. São coisas completamente diferentes. Nesses tempos as rádios não passavam fado.
E as pessoas não compravam discos de fado.
Lembro-me de dizerem que se um disco de fado vender 3.000 cópias ficavam muito felizes. E o meu primeiro disco, na primeira saída, vendeu 120.000. Mas hoje os discos de ouro, de platina, são números muito baixos. A platina era uma coisa gigante.
Hoje só os discos multiplatinados é que são realmente sucessos de vendas.
Temos de ver que somos um país muito pequeno e cada vez menos as pessoas compram discos. Eu continuo a gostar do vinil, do CD, de comprar um livro. Mas tenho um filho com nove anos que é da era digital e mexe em tudo muito melhor que eu. Desde há 20 anos mudou a forma como se canta, a forma das pessoas crescerem, o que escrevem. O fado mudou, voltou a estar outra vez no seu auge e espero que continue assim durante muito tempo.
Sentes que abriste caminho a outras mulheres no fado, para serem mais livres?
Sinto, talvez tenha a ver com estes meus dois lados, eu sou portuguesa e sou africana, canto fado desde muito pequena e quando apareço não tenho aqueles tabus. Eu sou eu. Acho que fiz muita gente ver que não é a forma como se veste que nos faz cantar melhor ou pior.
O som da lusofonia está muito presente na tua discografia e este disco não é excepção. É algo que procuras fazer de forma consciente ou é-te natural?
É inconsciente, nem me passou pela cabeça que estava fazer algo do triângulo lusófono. Acho que a música só sobrevive quando é pura e feita com o coração. Se pensar muito, se for tudo esquematizado, não resulta. Nunca fiz música assim. Pergunto-me sempre: se eu fizesse um disco neste momento, o que é que gostaria de ouvir?
E o que é que gostas de ouvir agora?
Por causa do meu filho, que é um rapaz incrivelmente pop, ando a ouvir Post Malone, Harry Styles... Ele está sempre ao pé de mim a pôr música, ele só ouve música. Anda a ouvir aquela música "Dynamite" de um grupo sul-coreano....
Os BTS.
Exactamente. E a Dua Lipa, The Weeknd, ele ama The Weeknd. E já me pediu para instalar o TikTok. Não me digam que eu vou começar a fazer TikToks com o meu filho (risos). Ele até sabe as voltas do Michael Jackson na "Smooth Criminal". Não sei o que vai acontecer aqui. Portanto, ando numa fase mais pop.
Vamos ter uma Mariza mais pop?
Eu acho que se as pessoas olharem bem para mim, eu sou meia pop. Mas a música que me apaixona, embora talvez tenha uma roupagem um pouco diferente, passou por muitas mudanças e já viajou por muitos cantos... Sou como o professor Joel Pina, que acompanhou Amália a vida toda. No outro dia, ele disse-me: “Sabes, eu gosto muito daqueles fados mais... livres. Mas os fados, os fados, os fados daqueles, os mais melancólicos, eu tenho de dizer – eu sou dos melancólicos”. Acho que é por aí. Eu gosto mesmo das letras densas, que nos façam pensar e que ao mesmo tempo façam sentir na vida de todos os dias. Porque a vida é maravilhosa com os seus baixos e com os seus altos. A vida é genial, mas é preciso entendê-la e saber viver.