Passados 20 anos, os CAVEIRA editaram finalmente o álbum que o líder Pedro Gomes tinha na cabeça, onde o free-jazz, o rock e os blues se reconfiguram. Valeu a pena esperar por ficar vivo.
Os discos lançados por Bruno Berle nos dois últimos anos, com a chancela da editora londrina Far Out, esquivam-se à adjectivação e ao acantonamento. No primeiro, No Reino dos Afetos (2022), a música brasileira dá as mãos ao r&b, à indie-pop e ao highlife nigeriano, em diferentes momentos. A sonoridade é arisca, tem baixa definição, mas a sua voz e violão acalentam-nos. No segundo, No Reino dos Afetos 2, editado em Abril e prestes a ser apresentado perante uma sala Lisa esgotada, continuam a escutar-se ecos de r&b, se bem que o som parece mais definido, há ambientes pós-dubstep e paisagens folk – sempre observadas a partir do nordeste do Brasil. Há violões acústicos e batidas digitais; a voz ora aparece clara e limpa, ora surge afogada em auto-tune. É uma caldeirada.
Uma óptima e rica caldeirada, atenção. O cantor e compositor brasileiro pretende, não obstante, combinar e misturar melhor todos estes ingredientes no próximo disco, que já está em marcha. “Com os recursos que a gente tinha, não conseguia fazer um disco pensado do começo ao fim e que tivesse uma estrutura legal para isso. Então foi o jeito que tivemos de fazer música”, explica. “O primeiro álbum é uma colectânea de ideias que a gente veio fazendo em 2017 e 2021. São as melhores ideias. Uma coisa meio espontânea, que não foi pensada para ser diversa – apenas é. Mas acho que, em breve, vou fazer coisas mais concisas. Com a unidade mais clara”, garante.
Se o primeiro álbum acabou por ser uma compilação de esboços e canções feitas entre 2017 e 2021, o segundo não foi muito diferente. Optou “por revisitar músicas e ideias que não se tinham realizado no primeiro, por várias razões: financeiras, estéticas, empecilhos de compositores”. Agora, contudo, com mais recursos. “Pude trabalhar mais em estúdios, em São Paulo e no Rio de Janeiro. Ainda assim, contém muitas gravações que fizemos em Maceió durante o processo do primeiro disco, como a ‘Tirolirole’, que ainda tem a bateria da música que gravei lá. Os pianos da ‘É Só Você Chegar’ também foram gravados na mesma altura”, detalha. “A ‘Sonho’ também foi praticamente toda gravada em Maceió, excepto os sintetizadores. Essa é a razão de ser o [No Reino dos Afetos] 2. Acho que ainda não apresento ideias assim tão novas. Elas existem, mas ainda não lhes dei vazão.”
Que ideias são essas? “Desejo fazer uma música mais enérgica. Diria até mais violenta”, resume. “Um lado que ainda exploro pouco na música, mais na vida. A energia que coloco no meu trabalho, a dedicação, a força para viajar muito. Também o meu descontentamento com o que acontece comigo e com as pessoas de cor como eu... Coisas relacionadas com todo esse preconceito de raça, classe e género”, desembrulha. “É esse descontentamento, essa raiva, esse ódio, que preciso colocar para fora.” No novo álbum, que tem estado a compor e desenvolver com Batata Boy, produtor e companheiro musical dos últimos anos, actualmente em digressão com ele, já há uma música que “tem um pouco disso, dessa revolta”, garante. “Uma revolta que estava muito contida.” Até agora.
Por uma nova música popular brasileira
Bruno Berle fala do álbum No Reino dos Afetos como se fosse o seu debute. Realmente, é o primeiro que está no Spotify. Porém, noutros lados e plataformas, ainda se ouve um registo anterior, intitulado Arapiraca, Maceió, 2013. Foi com esse álbum que se estreou em 2014, mas hoje prefere esquecê-lo. E que os outros o esqueçam. “Foi quando comecei a compor. Tinha muitos vícios e muitas ideias de outras pessoas ao meu redor”, começa a explicar. Não gosta sequer da sua pronúncia. “No Brasil, no geral, os artistas são muito incitados a cantar com o sotaque do sudeste. O que é terrível, porque mata a nossa espontaneidade, tanto na forma de cantar, como na maneira de compor”, considera.
Hoje, o sotaque, a poética e os ritmos do nordeste, e em particular do estado de Alagoas, onde cresceu e formou a banda indie Troco Em Bala, moldam o seu trabalho. Acredita que é isso que o torna especial, sobretudo no contexto da chamada nova música popular brasileira que tem brotado de São Paulo, onde vive desde 2021. “Estou inserido numa cena, digamos assim, de vários artistas do sudeste, que cantam com o seu sotaque paulista ou carioca. E a minha música, a minha composição, já parte de outro lugar”, afirma. “A poesia é outra quando se fala de outra maneira.”
O cantor alagoano não adora que chamem mpb – seja ela nova ou velha – à música que faz e canta. Mas aceita. “Cansei de me opor”, sintetiza. “Quando me dizem parte da mpb, nesse momento, estou do lado de artistas grandes, importantes, que fazem uma música rica e interessante. Mesmo que não me relacione tanto. O meu trabalho é completamente diferente do que faz o Tim [Bernardes], ao mesmo tempo que é completamente diferente do Rubel, que é completamente diferente do Tim e de Bala Desejo. Também da Ana [Frango Elétrico]... O que eu gosto dessa cena é que somos muito diferentes entre nós. Gostemos ou não um do trabalho do outro, somos diferentes.”
Apesar das diferenças, considera que os ritmos que enformam muita desta nova mpb ainda são os mesmos de sempre – principalmente a bossa nova e o samba. Uma oportunidade perdida, quando “o Brasil tem infinitos ritmos. Tem o maracatu, tem o coco, tem os ritmos do norte, tem tantas outras coisas que a gente precisa de trazer à luz”. E que inspiraram os dois volumes de No Reino de Afetos, que define como uma “música [aberta ao] mundo com raízes muito nordestinas, muito alagoanas”. Que vamos ouvir esta quarta-feira, na Lisa, a fluírem da voz e do violão, com Batata Boy ao seu lado.
Lisa. 22 Mai (Qua). 21.00. 10€