Seis cantores associam-se à despedida de Carlos do Carmo dos grandes palcos. Cada um escolhe três fados que vão ficar para sempre.
Ninguém sabe dizer adeus. O Coliseu dos Recreios, cheio e engalanado para o último espectáculo da longuíssima carreira de Carlos do Carmo, voltou a prová-lo neste sábado. O público absteve-se de comoções e euforias; o fadista cumpriu o alinhamento à risca, emprestando à noite a sua inconfundível e ainda pujante voz, gracejando, agradecendo, recordando, mas com uma serenidade contrastante com o momento. Ninguém sabe dizer adeus, ou talvez ninguém esteja convicto de que não voltaremos a ver Carlos do Carmo ao vivo. A chave, quem sabe, está nos primeiros versos que cantou: “Vim para o fado e fiquei.../ Sou corda de uma guitarra/ A que mais geme e soluça”. E por muito que tenha terminado, com um impressionante “Por Morrer Uma Andorinha” sem amplificação, como se estivéssemos numa enorme casa de fados, o pássaro que se apresentou em palco estava longe de se encontrar moribundo, muito menos se vislumbrou um perigo para a Primavera.
Foi difícil ver um fim no concerto deste sábado, embora fosse esse o declarado propósito. E por isso o alinhamento estava impregnado de temas intemporais – como “Lisboa Menina e Moça”, “Gaivota”, “O Cacilheiro”, "Homem das Castanhas" ou “Os Putos” –, com memórias antigas e mais recentes (a colaboração com a Count Basie Orchestra em 2010, o Grammy em 2014), homenagens a parceiros de outrora como José Carlos Ary dos Santos e Bernardo Sassetti, e mensagens em vídeo gravadas por artistas e amigos de Carlos do Carmo. Foi aqui que o Presidente da República declarou o fadista, prestes a fazer 80 anos, como um “príncipe republicano”. Marcelo estava na sala. Ana Moura, Camané, Aldina, Mariza, Jorge Palma, José Cid, Sérgio Godinho, Pedro Abrunhosa, Simone… tantos naqueles vídeos. Todos: apesar de caído em desgraça, Carlos do Carmo não deixou cair o amigo Carlos Cruz, e ele lá estava, na tela.
A devoção a Sinatra não faltou; à mulher, Maria Judite, com quem está casado há 55 anos, quase tantos como os que leva a cantar (57), também não. O ramo de flores foi para ela, chamada a palco por António Costa. O primeiro-ministro juntou-se à ministra da Cultura, Graça Fonseca, para condecorar o fadista com a medalha de mérito cultural. Minutos antes, Fernando Medina tinha entregado a Carlos do Carmo as chaves da cidade de Lisboa. “Ele merece”, alguém gritou da plateia. O público acompanhou-o em alguns dos êxitos, cantado amena e envergonhadamente, e sempre incentivado. Mas Carlos do Carmo não conseguiu terminar a sua carreira de palco sem aplicar a mesma reprimenda que bem lhe conhecemos, quando a audiência se entusiasmou: “O fado é só cantado. Palmas é no folclore”.
No final, quando se chegou à boca de cena para a derradeira ovação, houve um indivíduo que confundiu o último espectáculo do maior fadista vivo por um evento protocolar, e chegou-se à frente para desviar a atenção do protagonista – razão única para toda aquele gente se ter deslocado às Portas de Santo Antão – e avisá-lo de que se tinha esquecido de agradecer a presença do secretário-geral da ONU, António Guterres, que ocupava o camarote frontal com a restante comitiva política. Carlos do Carmo ficou visivelmente transtornado, recusando sair de palco com os restantes músicos (José Manuel Neto, Carlos Manuel Proença, Marino de Freitas e João Santos), revistando atarantado a abertura do pano de boca, já descido, para de lá de trás tirar um microfone e apresentar as suas desculpas. O seu acto final em palco foi um pedido de desculpas. É meramente simbólico, mas não merecia.
O novo disco, prometido para daqui a poucos meses, com letras de Herberto Helder ou Hélia Correia, terá a função acrescida de nos fazer esquecer este momento. E a julgar pelo inédito que se ouviu no Coliseu, "Mariquinhas.com" (obra de um Vasco Graça Moura "brejeiro"), será bem-sucedido. Voltaremos a ouvi-lo, e talvez nem nos fiquemos por aí.