Mário Laginha e Camané
©Inês FélixMário Laginha e Camané
©Inês Félix

O fado antigo de Camané e Mário Laginha

“Aqui Está-se Sossegado” é o resultado de um ano de concertos e Camané e Mário Laginha. É um disco de fado, sem vestígios de jazz.

Hugo Torres
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Fado ao piano não é uma excentricidade. Em meados do século XVIII, era assim que se ouvia nos salões de Lisboa, longe do circuito popular. Não sabemos como soava. Mas o precedente bastou para dar paz de espírito a Camané e a Mário Laginha, quando há pouco mais de um ano se juntaram para criar um espectáculo de fado apenas com voz e piano. Não para imaginar a música de outrora, da qual não há registos, mas para fazer algo que fizesse sentido hoje. Agora, mais de 20 concertos depois, lançam um disco com parte do reportório que têm tocado ao vivo.

Aqui Está-se Sossegado, que é lançado nesta sexta-feira, não estava nos planos. “Desafiei o Mário para fazermos uns espectáculos. Depois é que decidimos fazer o disco, quando percebemos que as coisas estavam a funcionar, e estávamos a gostar imenso de tocar juntos”, diz Camané. “O facto de não pensarmos no disco fez com que as coisas fossem ganhando forma.” Laginha gostou desse modelo, que permitiu amadurecer os temas: “Em vez de fazer aquela história de gravar quando as coisas ainda estão verdes, ir para a estrada e no fim pensar que agora é que se gravava, fizemos concertos, concertos, e no fim é que gravámos”.

O entrosamento era tal que só gastaram dois dos três dias reservados para gravar os 14 fados. “O Camané tinha uma ideia bastante clara do que queria: não ter medo de tocar tradicionais, mas não tocar só tradicionais; não ter medo de tocar clássicos, mas não tocar só clássicos; e ter inéditos. E tentar que houvesse uma linha condutora”, recorda Laginha. Isso para os concertos, cuja duração se aproxima das duas horas. Para o álbum, foi preciso seleccionar. Aqui Está-se Sossegado (o título de um fado do bisavô de Camané, José Júlio Paiva, também incluído) abre com “Não venhas tarde” e avança para uma ousadia: “Com que voz”. “Foi uma forma de homenagear a Amália, mas também [o escolhemos] por ter sido composto ao piano”, nota o fadista, que gravou ainda “Abandono”, ele que sempre evitou temas cantados pela diva.

“Com que voz” é uma das duas composições de Alain Oulman aqui. A outra é um inédito: “Fogo que arde sem se ver”. (Ao vivo, tocam mais duas: “Sei de um rio” e “Te juro”.) Mas mesmo fados tradicionais como “Quadras” ou “Casa da Mariquinhas” foram suficientemente maleáveis. “À partida não sabíamos se funcionavam bem no piano. A verdade é que conseguimos dar a volta”, observa Camané. Sem lhes retirar a identidade. “Uma preocupação que tive foi em não ajazzar o fado. Não o quis em nenhum momento. Se o fiz, falhei”, atira Laginha. “Tentei ouvir muita coisa de viola e guitarra portuguesa, para tentar perceber como acompanhar.”

“Quando as coisas acontecem, é fantástico. O ambiente do Fado Mouraria [“Casa da Mariquinhas”] está lá todo. Ele conseguiu isso”, sublinha Camané. “Sinto-me como se estivesse a tocar com viola e guitarra. É incrível. Porque na minha interpretação quase não foi preciso mudar nada. A única coisa que fiz foi cantar diferente do que fiz noutros discos. Aquele chão musical está lá.” Laginha, aliás, contribui com três inéditos para o disco: “Se amanhã fosse domingo” (letra de João Monge), “Rua das Sardinheiras” (letra de Maria do Rosário Pedreira) e os instrumentais “Rua da Fé” e “Fado Barroco”. São fados? “Os fados são músicas que só o tempo dirá se são clássicos ou se são fados”, esclarece Camané. “É evidente que é a visão do Mário do fado, mas quem está a cantar é um fadista, que tem uma maneira de pegar nas palavras e no contexto da música que torna muitas vezes as coisas em fados. Mas o tempo é que dirá. É evidente que há coisas que se percebe logo que não são fados, mas estas têm tudo para ser.”

“Ela Tinha uma Amiga” e “A Guerra das Rosas”, de José Mário Branco, também têm versões ao piano. A 20 de Dezembro, no Coliseu, o alinhamento deverá incluir mais um tema do autor de FMI: “Chega-se a este ponto”. Será uma das três “surpresas” do concerto (preferiram não revelar as outras). “Para além de outros que já incluímos nos concertos e que não estão no disco”, antecipa Laginha. Uma das quais é, inevitavelmente, “Ai Margarida”, que o pianista compôs para a colectânea de 2013 de Camané (na sequência do projecto Vadios, com Sassetti e Carlos Bica). Depois continuarão na estrada. Pelo menos até Junho de 2020. “Com alegria.”

Coliseu dos Recreios. 20 de Dezembro (Sex) 21.30, 20-40€

Crítica: Camané & Mário Laginha

“Aqui Está-se Sossegado” (Warner Music)

★★★★★

Dizem que o fado se começou a ouvir assim, em tempos idos, quando era convidado de salões aristocráticos. Que se cantava deste jeito, ao piano, antes de se agarrar a uma viola e a uma guitarra. Pois bem, arriscaremos dizer que dificilmente alguma vez o fado se ouviu desta maneira. Diremos que sim, que já houve fado ao piano, em soirées palacianas de antanho, depois em serões geniais de Amália e Oulman, mais tarde nos encontros de Laginha, Sassetti e Camané que haveriam de conduzir até este disco. Mas insistiremos que jamais o fado se ouviu assim. Aqui Está-se Sossegado é a destilação de tudo isso numa conversa final de inteligência e bom gosto entre um piano e uma voz. Camané continua a cantar cada fonema com a precisão dos predestinados e a intenção dos poetas. E Laginha ora entra em diálogos virtuosos, num contraponto lúdico que invoca essas noites de salão (acontece em “Dança de Volta”, “Casa da Mariquinhas” ou “Guerra das Rosas”); ora se recata, cede espaço, e se entretém a tecer harmonias como quem recorta uma luz de palco (acontece em “Com que Voz” e “Abandono”, monumentos que julgávamos presos à voz definitiva de Amália, no tema-título ou no notável inédito “Se Amanhã Fosse Domingo”). De uma ponta à outra, estamos diante de um admirável exercício de caligrafia e silêncio, difícil de descrever sem adjectivação ruidosa. João Pedro Oliveira

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