Piano e Pauta
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Sete óperas que ficaram por acabar

Vários foram os compositores que não conseguiram terminar as óperas que tinham dentro da cabeça – o que não impede que algumas delas façam parte do repertório.

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“Ars longa vita brevis” reza um aforismo latino (com origem grega) que costuma ser traduzido literalmente como “a arte é longa e a vida breve” e que chama a atenção para o facto de ser necessário muito tempo, disciplina e determinação para adquirir e dominar a “arte”, sendo esta entendida no sentido lato de “técnica, conhecimento” – quer diga respeito à composição musical, à ginástica nas barras paralelas ou à preparação de sushi.

Em tempos em que os cuidados de saúde e o poder da medicina eram incipientes, a esperança média de vida era mais breve e as doenças mais debilitantes, pelo que aconteceu que vários compositores partiram deste mundo sem conseguir concluir a obra que tinham em mãos. Mas também houve óperas que foram deixadas a meio por o compositor não conseguir dar-lhes concretização satisfatória, ou por não se sentir inspirado pelo libreto ou simplesmente por se ter enfadado. Como se verá pelos exemplos que se seguem, são diversas as razões para deixar uma ópera a meio – e também diversas são as motivações de terceiros para a completar, ou para impedir que sejam completadas.

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Sete óperas que ficaram por acabar

Die Drei Pintos, de Weber

Ano: 1821-24
Estado: fragmentário

A fama operática de Carl Maria von Weber (1786-1826) assenta quase exclusivamente em Der Freischütz (1821), mas o compositor deixou outras óperas, algumas completas e outras em estado fragmentário. Uma das óperas incompletas é Die Drei Pintos, sobre um libreto do seu amigo Theodor Hell, a partir de uma obra de Carl Seidel. Weber não gostou do título Der Brautkampf (A Batalha pela Noiva) e converteu-o em Der Drei Pintos, ou seja, Os Três Pintos, já que, no enredo, há dois impostores que se fazem passar por Don Pinto de Fonseca, a personagem principal.

Weber deu início à composição, mas passado pouco tempo redirigiu a sua inspiração para outra ópera, Euryanthe – esta estreou em 1823, mas Weber não parece ter voltado a interessar-se seriamente por Die Drei Pintos e quando faleceu a ópera era apenas um esboço. Caroline, a viúva de Weber, tentou que Giacomo Meyerbeer, um dos mais populares compositores de ópera da época, a terminasse, mas este devolveu os fragmentos, 26 anos depois, sem ter escrito uma única nota. A família de Weber tentou, sem sucesso, encontrar candidatos a terminar a ópera, até que o capitão Carl von Weber (1849-1897), neto do compositor, se cruzou em Leipzig com um então ainda jovem e desconhecido Gustav Mahler, que manifestou interesse no projecto – na verdade o seu interesse era Marion, a esposa de Carl, mas, como era admirador do compositor, lá deitou mão aos fragmentos e acrescentou quantidade substancial de música de sua lavra, inspirada nas melodias de Weber. A Carl não passaram despercebidos os avanços de Mahler a Marion, mas estava tão empenhado em que a ópera fosse completada, que fez por ignorá-los. A ópera estreou no Neues Stadttheater de Leipzig em 1888.

[Dueto de amor do I acto, por Eapen Leubner (Gaston), Hannah Rosenbaum (Inez) e Bronx Opera Orchestra, com direcção de Michael Spierman e encenação de Ben Spierman]

L’Africaine, de Meyerbeer

Ano: 1837-1864

O contrato assinado por Giacomo Meyerbeer (1791-1864) em 1837 previa que o libreto de L’Africaine, da autoria de Eugène Scribe, lhe seria entregue dentro de três meses e que ele deveria entregar a partitura dentro de três anos, mas a sua disposição fora esmorecendo, pois não encontrava interesse no enredo que envolvia a paixão da princesa africana Sélica pelo marinheiro espanhol Fernando, que, não obstante, se mantém fiel à sua noiva Estrella. Os persistentes problemas vocais da soprano designada para o papel de prima donna vieram trazer ainda mais incerteza ao projecto e Meyerbeer acabou por focar-se noutra ópera, Le Prophéte. Quando retomou L’Africaine, em 1841, foi ainda com menos empenho e estava disposto a abandonar a partitura quando, em 1849 descobriu Os Lusíadas e a epopeia de Vasco da Gama lhe deu a ideia de fundir a descoberta do caminho marítimo para a Índia com a xaroposa história de amor inter-étnico de L’Africaine. Mudou o título da ópera para Vasco da Gama e regressou ao trabalho com energia redobrada – para voltar a abandoná-lo em 1853. Foi trabalhando nele intermitentemente e, após a intervenção de vários libretistas – Scribe falecera em 1861 – acabou por terminar a orquestração em Novembro de 1863. A ópera estaria completa, não fosse Meyerbeer ter o hábito de “afinar” a partitura durante os ensaios – só que desta feita não teve esse ensejo, pois faleceu subitamente a meio da revisão. O musicólogo belga François-Joseph Fétis foi chamado para o substituir, mas logo tratou de imprimir a sua marca, repondo o título L’Africaine e fazendo cortes e alterações no libreto, por entender que a ópera era longa demais. Foi na versão “completada” (ou melhor, amputada e desvirtuada) por Fétis que a ópera estreou em Paris a 28 de Abril de 1865 e foi assim que foi apresentada durante muito tempo. Só recentemente surgiu a tendência de regressar ao manuscrito e libreto originais, graças a edições críticas surgidas em 2013 e 2018.

[“Ô Paradis”, por Nicolai Gedda e Orchestre National de la Radiodiffusion Française, com direcção de Georges Prêtre, 1962]

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Os Contos de Hoffmann, de Offenbach

Ano: 1873-80
Estado: Prólogo e I acto completos, restante material por orquestrar

Jacques Offenbach (1819-1880) nasceu em Colónia, numa família judia, mas foi em Paris que fez carreira, primeiro como virtuoso do violoncelo e, a partir de 1847, como compositor de operetas que geraram entre os parisienses uma frisson sem precedentes. Talvez com o intuito de não ficar na história como fabricante em série de música popularucha, decidiu em 1873 produzir uma obra com mais substância, a partir da peça Les Contes d’Hoffmann (1851), de Jules Barbier e Michel Carré que aglutinava três contos de E.T.A. Hoffmann, com temas comuns – o engano, a traição e a morte. Carré falecera entretanto, pelo que foi Barbier a converter a peça num libreto com três actos (mais um prólogo e um epílogo); a ópera foi programada pelo empresário Albert Vizentini para a temporada 1877-78 do Théâtre de la Gaîté-Lyrique, mas o projecto foi retardado pela falência de Vizentini, pelos avanços e recuos de Barbier, pelas enfermidades de Offenbach, pela imposição de alterações de Léon Carvalho, o director da Opéra-Comique e, sobretudo, pelo facto de Offenbach continuar a compor operetas “comerciais” a um ritmo torrencial. Em Setembro de 1880, tiveram início os ensaios de Os Contos de Hoffmann, apesar de a orquestração estar por completar. O compositor faleceu a 5 de Outubro sem conseguir concluir a tarefa, que foi confiada a Ernest Guiraud, que, seguindo as imposições de Carvalho, acabou por produzir uma obra distorcida e amputada, que estreou a 10 de Fevereiro de 1881. Foi preciso quase um século e incontáveis edições e revisões para que, graças a manuscritos autógrafos entretanto redescobertos, fossem repostas as intenções originais de Offenbach.

[“Les Oiseaux dans la Charmille” (I acto), por Kathleen Kim (Olympia) e a Orquestra da Metropolitan Opera de Nova Iorque, com direcção de James Levine e encenação de Bartlett Sher, Metropolitan Opera, 2009]

A Queda da Casa de Usher, de Debussy

Ano: 1908-17
Estado: fragmentário

Os aficionados do teatro lírico erguerão um sobrolho à menção da ópera A Queda da Casa de Usher (La Chute de la Maison Usher) de Debussy – é certo e sabido que o compositor francês compôs apenas uma ópera, Pelléas et Melisande, estreada em 1902. Mas a verdade é que se esta foi a única ópera que Debussy concluiu e estreou, não foi a sua única incursão no género: deixou incompleta Rodrigue et Chimène, em parte por não se identificar com o medíocre libreto, e planeou duas óperas de um acto baseadas em contos de Edgar Allan Poe. De Le Diable dans le Beffroi não sobrou uma nota, mas de La Chute de la Maison Usher, na qual Debussy trabalhou intermitentemente restaram alguns fragmentos. Estes foram tentativamente reconstituídos por Carolyn Abbate, cuja versão estreou em 1977, e por Juan Allende-Blin, cuja versão, com apenas 20 minutos de duração, estreou em versão radiofónica também em 1977 e subiu ao palco em 1979. Em 2004 surgiu nova proposta, por Robert Orledge.

[Excerto, na versão de Robert Orledge, por Edward Nelson (L’ami), Brian Mulligan (Roderick Usher), direcção de Lawrence Foster e encenação de David Pountney, San Francisco Opera, 2015]

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Turandot, de Puccini

Ano: 1921-24
Estado: Actos I e II completos, final do III acto incompleto e por orquestrar

Quando Giacomo Puccini mergulhou na pesquisa de um assunto para a ópera sucessora de Il Trittico, estreado em 1918, foi parar à peça Turandot (1762), de Carlo Gozzi, que, por sua vez, se inspirava numa das histórias de Haft Peykar, do poeta persa do século XII Nizami. A peça de Gozzi fora alvo de sucessivas adaptações e encenações, sendo uma das mais recentes a levada a cabo em Berlim, em 1911, por Max Reinhardt, cujo texto serviria de base à ópera Turandot de Ferruccio Busoni, estreada em 1917. A existência desta não dissuadiu Puccini de começar uma ópera sobre o mesmo tema, com a colaboração dos libretistas Giuseppe Adami e Renato Simoni. O processo foi conturbado e no final de 1922, com os actos I e II já bastante avançados, Puccini chegou a pensar em abandonar a partitura e buscar um novo assunto. Retomou a tarefa, mas em Outubro de 1924 recebeu a notícia de que tinha um cancro na garganta e que este não era operável – a radioterapia não surtiu efeito e o compositor faleceu a 29 de Novembro, deixando por finalizar o III acto. Puccini pretendia que a tarefa fosse realizada por Riccardo Zandonai, mas esta, após terem sido consideradas e rejeitadas as possibilidades Vincenzo Tommasini e Pietro Mascagni, acabou por caber a Franco Alfano. As hesitações em torno do responsável pela finalização atestam as elevadas expectativa em torno da ópera – que voltaram a manifestar-se quando Alfano foi forçado a rever a sua primeira proposta de final, por não ser suficientemente fiel aos esboços de Puccini.

A ópera estreou no Teatro alla Scala, em Milão, a 26 de Abril de 1926, sob a direcção de Arturo Toscanini, mas, quando chegou ao último compasso composto por Puccini, o maestro deteve-se, voltou-se para o público e anunciou: “Aqui termina a ópera, pois foi aqui que faleceu o mestre”. A maioria dos maestros segue o final de Alfano.

Lulu, de Berg

Ano: 1928-35
Estado: Actos I e II completos, parte do III acto por orquestrar

A composição da primeira ópera de Alban Berg (1885-1935), Wozzeck, já tinha sido penosa e a segunda incursão no género, Lulu, padeceu dos mesmos problemas. Berg começou a trabalhar nela em 1928, segundo libreto com base em duas peças de Frank Wedekind, mas progrediu tão lentamente que quando terminou a partitura – ainda por orquestrar – em 1934, já Hitler subira ao poder e o clima na Áustria ou na Alemanha tornara-se pouco propício à estreia de uma ópera com temática tão escabrosa (Lulu começa carreira como amante de luxo em Viena e acaba como prostituta de rua em Londres). Berg foi avançando na orquestração, mas interrompeu-a para compor o Concerto para violino e acabou por falecer no final de 1935, aos 50 anos, sem a terminar.

Uma vez que restavam por orquestrar apenas 268 compassos do III acto, seria de esperar que a sua conclusão fosse rápida. Helene, a viúva, parecia empenhada em que a obra fosse finalizada, mas após Schoenberg, Webern e Zemlinsky terem rejeitado tal encargo, começou a mudar de ideias. Lulu acabou por estrear em Zurique, em 1937, só com os actos I e II, uma opção insatisfatória do ponto de vista dramático, e Helene acabou por opor-se firmemente a que alguém terminasse a orquestração: anunciou-o em 1960 e reafirmou-o no testamento que lavrou em 1969. Quando da sua morte, em 1976, foi anunciado que o compositor Friedrich Cerha fora encarregado, em 1962, da finalização da orquestração desde 1962, a pedido da Universal Editions, mas, apesar de já não fazer parte do mundo dos vivos, Helene continuava a fazer valer a sua obstinação: a Fundação Alban Berg tentou impedir a apresentação da versão de Cerha por via judicial e a ópera só estreou na versão completa em Paris, em 1979, com direcção de Pierre Boulez e encenação de Patrice Chéreau.

[Prólogo, com Teresa Stratas (Lulu), Gerd Nienstedt (domador), Franz Mazura (Dr. Schoen) e a Orquestra da Ópera de Paris, com direcção de Pierre Boulez e encenação de Patrice Chéreau, 1979]

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Moisés e Aarão, de Schoenberg

Ano: 1930-37
Estado: O III acto ficou por compor

Arnold Schoenberg (1874-1951) tinha-se convertido ao cristianismo em 1898, mas as manifestações de anti-semitismo com que foi confrontado no pós-I Guerra Mundial fizeram-no voltar a reflectir sobre a sua identidade judaica. Foi assim que começou a planear uma cantata com o título Moisés e a Sarça Ardente (Moses am Brennenden Dornbusch), projecto que em 1927-28 se converteu num libreto para a oratória Moses und Aron, que acabaria por assumir o formato de ópera em três actos. Os actos I e II ficaram terminados em 1932, mas o III pouco ou nada progrediu. Entretanto, no início de 1933, Hitler subiu ao poder e Schoenberg, que se encontrava de férias em França, achou mais prudente não regressar ao seu posto de professor na Academia Prussiana das Artes, em Berlim.

Após se ter reconvertido ao judaísmo, em Paris, Schoenberg viajou para os EUA, onde viveria até ao final da vida. Embora não tenha voltado a mexer na ópera a partir de 1937, foi sempre alimentando a ideia de a completar e só já perto da morte aceitou a ideia de que nunca iria compor o III acto – a ópera foi estreada, em versão de concerto, em 1954 (três anos após a morte do compositor), com o III acto a ser lido, sem música, por sugestão do próprio Schoenberg. A prática não teve seguimento e Moses und Aron tem sido levada à cena com os dois únicos actos musicados.

[Excerto da produção de 2006 da Wiener Stastsopern, com Franz Grundheber (Moses) e Thomas Moser (Aron), direcção de Daniele Gatti e encenação de Reto Nickler]

Mais ópera

  • Música
  • Clássica e ópera

A tradição cristã atribui a autoria do texto do hino Te Deum aos santos Agostinho de Hipona e Ambrósio de Milão, no ano de 387, mas alguns especialistas apontam antes para Aniceto, bispo de Remesiana, que também viveu no século IV. O hino foi musicado por diversos compositores, a fim de abrilhantar a coroação de reis, o nascimento de príncipes ou a celebração de tratados de paz, ou em sinal de reconhecimento por tudo o que de bom se recebera durante o ano – esta prática de tocar um Te Deum no último dia do ano era corrente na Lisboa setecentista.

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