Entre o Minho e Nova Iorque dos trópicos. O quarto disco dos Capitão Fausto, A Invenção do Dia Claro, foi gravado em trânsito. E o resultado são canções tão luminosas quanto possível, focadas no quotidiano e no pouco que podemos fazer para o melhorar. O concerto de apresentação no Capitólio, dia 6, está esgotado. O amanhã chegou – e é bom.
O que aconteceu para decidirem gravar em São Paulo?
Manuel Palha – Queríamos ir ao Brasil fazer qualquer coisa. E surgiu a oportunidade através da Red Bull, que tem estúdios em muitas cidades. Escolhemos São Paulo. O estúdio fica no meio de betão, numa zona deteriorada e poluída.
Esse ambiente não influenciou um disco que se pretendia mais solar?
Coro: Não.
MP – O sol estava sempre presente. Aquilo é relativamente central. Íamos a pé. Demorávamos dez minutos. E esse passeio matinal era sempre bonito.
Francisco Ferreira – O estúdio é no meio de imensa confusão de cimento, mas o espaço em si, uma antiga central eléctrica, parece um pequeno oásis. Tem um terraço incrível, por cima do trânsito todo. Lá dentro é muito calminho, tem imensos espaços amplos. Entrávamos lá e estávamos noutro sítio.
Quanto tempo ficaram?
Domingos Coimbra – A gravar, 11 dias. Chegámos três dias antes e ainda fomos para o Rio de férias. MP – No total, para aí 20 dias. A primeira canção, “Certeza”, termina quase em música de salão. É fruto das colaborações que encontraram no Brasil?
Tomás Wallenstein – Na verdade, aconteceu aqui [em Lisboa], na fase de mistura. Houve uma altura em que pusemos só o conjunto de choro a tocar e ficou completamente diferente. E acabámos por incluir essa parte.
MP – A expô-la totalmente.
TW – É a única parte de um disco nosso em que nenhum de nós está a tocar.
Como chegaram aos músicos que trabalharam convosco no Brasil?
MP – Através de um amigo da faculdade, o Eduardo Pereira, que toca violão de sete cordas, bandolim, cavaquinho. Pedimos-lhe para arranjar um ensemble com o que idealizámos, que era uma coisa muito simples: sopros, cordas e percussões. Ele trouxe o Geremias Tiófilo Jr. e o Gabriel Peregrino.
Estiveram no Brasil numa altura muito tumultuosa do ponto de vista social e político.
TW – Foi no “Fora Temer”.
DC – Ainda não era o Bolsonaro. Vimos coisas que nos fizeram confusão. Estás a andar numa metrópole que é quase uma Nova Iorque tropical, por ruas incríveis, mas ao mesmo tempo que vês helicópteros a andar de um lado para o outro, tropeças de dois em dois segundos em pessoas que estão na rua. Houve um dia em que andámos seis horas a pé. À posteriori, disseram-nos que tínhamos sido completamente loucos.
TW – Éramos presas fáceis: um grupo de gringos atrás do Google Maps.
Voltando ao disco. As canções são sofisticadas, com muitos detalhes, e a produção, que é vossa, cristalina. Estavam a trabalhar nestes temas há quanto tempo?
TW – Há dois anos.
DC – Fomos para o Minho compor. Depois viemos para Alvalade fazer pré-produção: gravar ideias. Fomos para o Brasil com os esqueletos. Eram nove; ficaram só oito.
Por que caiu a nona?
TW – Não encontrámos consenso.
DC – Há sempre uma ou outra que sai. Depois de gravarmos os esqueletos, tivemos um período mais longo em Alvalade. Algumas músicas já tinham melodias, mas à medida que o Tomás desenvolveu as vozes, o instrumental moldou-se um bocadinho.
TW – Foi uma coisa a que tivemos mais atenção neste disco. A melodia da voz acaba por ser a principal e portanto faz todo o sentido que o resto se volte a jogar.
MP – O que fizemos lá foi uma coisa muito mais de improviso do que alguma vez fizemos. “Toca aí qualquer coisa.” Tínhamos várias ideias e depois foi agarrar o material em bruto e juntar. Talvez a fase mais longa tenha sido a produção em conjunto com a mistura. Desta vez quisemos fazê-lo nós. Isso foi um desafio grande: não é fácil lidar com canções com muitos pormenores e tornar aquilo tudo harmonioso.
O fatalismo do álbum anterior está aqui, mas de forma menos evidente. Há uma narrativa latente no disco?
TW – O tema dos nossos discos, no geral, é muito à volta do fatalismo. À volta de sermos reféns das coisas que acontecem e do pouco poder que temos para as mudar. E este é mais sobre isso, justamente. Quais são as receitas que podemos aplicar para o nosso dia a dia melhorar ou continuar a ser bom.
É aquilo da música de auto-ajuda de que falaram recentemente. De que é que estamos a falar?
TW – Do que podemos fazer para sobreviver com alegria com as pessoas de quem gostamos, a fazer o que gostamos nos sítios de que gostamos. É uma junção entre um livro de receitas e um DVD de auto-ajuda.
As personagens das canções são fictícias?
TW – Não. São sempre as mesmas.
Há sempre uma carta à mãe. “Faço as Vontades” agora, “Morro na Praia” no Dias Contados.
TW – Tem uma carta à mãe, que na verdade não o é. Nessa música, a mãe é a terceira pessoa. Uma espécie de ajuda num diálogo.
As canções estão aparentemente mais tranquilas. A sonoridade dos vossos discos vai ficando mais calma, mais pausada. É uma evolução natural?
TW – Aconteceu assim, mas não digo que o próximo disco seja ainda mais pousado e calmo, nem menos. Não há uma lógica.
Os “dias claros” são a bonança dos Capitão Fausto – com concertos cheios, boas críticas, notoriedade?
TW – É evidente que esses resultados são provas que nos dão para conseguirmos fazer aquilo de que mais gostamos.
O título remete para um livro de Almada Negreiros. O modernismo assentava-vos bem? Isto é: um movimento que é vanguardista mas já está no passado.
TW – Gosto dessa definição. Por um lado, a escolha do título é pura e simplesmente pelo significado, pela poesia, porque alguns textos do livro se aproximam do que escrevi. Mas por outro sempre gostei da estética modernista e desta ideia de vanguarda, apesar de ser uma coisa com 100 anos.
MP – É um resumo do disco. Essa coisa de trabalhar para o dia seguinte ser melhor, que é algo em que toda a gente pensa.
TW – E que, de alguma maneira, se nos obrigarmos a melhorar o dia das pessoas com quem vivemos, o nosso dia também melhorará, eventualmente.