Os concertos das Savages são extáticas comunhões de rock’n’roll. Digam o que quiserem, mas no meio do som e da fúria da banda sentem-se as barreiras emocionais que separam a banda do público a ruírem. E é estranho que, quando nos encontramos com Beth e Thompson no dia seguinte, esses muros tenham voltado a ser erguidos.
Casa simples, coração grande. Pode até ser um provérbio acabado de inventar, mas serve a Ricardo Ribeiro que nem ginjas. Foi na casa dele, na Ajuda, por entre esculturas do avô e discos de Fausto e de Fernando Maurício, que o fadista embateu em José Afonso, um artista que “reúne a curiosidade do povo português”, afirma. E que ele vai cantar esta quinta-feira no CCB.
Como é que surge esta ideia de homenagear o José Afonso no CCB?
Sempre fui fã do José Afonso. Do compositor que ele era, da criatura inspirada, do gosto poético que tinha. O José Afonso não era só aquela música política e relativa à liberdade. Também existia um José Afonso romântico, profundo, apaixonante nas palavras. Então pus-me a pensar: e que tal lembrar José Afonso num mês que não é Abril? Dá-me a sensação que só o recordamos como um cantor e um pensador de Abril e ele é muito mais do que isso.
Como é que tencionas aproximar-te da linguagem de José Afonso?
Isto é como aquela história que diz que os artistas não estão para julgar, estão para entender. Não sou circunscrito ao fado, já trabalhei com “n” músicos de outras áreas. Sairá agora um disco chamado Fado Barroco, onde canto uma pequena ária de uma opereta, uma cantiga de Santa Maria, com uma orquestra barroca...
Estamos a falar de um disco a editar quando?
Não sei ao certo, até ao final do ano sairá, é de uma etiqueta francesa ligada à música clássica. Mas continuando, sou primordialmente fadista e chega-me e sobeja-me esta arte, mas também sou outras coisas.
Ambicionas outras coisas, é isso?
Não é uma questão de ambição, é uma questão de ideal estético e artístico. Posso toda a vida ser visto como fadista, mas um fadista que também gostava de cantar outras coisas, que também gostava de ter outros motivos. Acho que confundimos muitas vezes a estética com a ética.
Como assim?
A ética obedece a padrões, a um conjunto de regras. A estética não, não tem regras nem padrões.
E o fado impõe uma ética, correcto?
Sim, é impossível não o fazer. O fado obriga-me a determinadas características a que tenho que obedecer por uma questão de formação e de sensibilidade. Não é que seja mais fadista que os outros, simplesmente é esta a minha maneira, há um conjunto de características que me faz cantar o fado como ninguém, tu ouves-me e sabes que sou eu. E isso é que forma um artista. Como diz uma frase do Da Vinci: “A música é a estrutura do invisível”... É essa estrutura que tento sempre procurar.
E que estrutura encontraste em José Afonso?
Era um artista muito português. A maneira como a música dele é transportada, o seu traço de beleza é profundamente português. Não querendo fazer do português um povo eleito, não existem povos mais importantes que outros – isso é uma mentira – mas é um povo curioso, foi isso que nos trouxe o mar e a ideia de ir para outro lado.
E o José Afonso captura bem essa identidade.
O José Afonso reúne a curiosidade do povo português. [Começa a cantar]“Maio, maduro Maio...ti ri tu ri”... se não cantas ao ritmo dele soa a uma coisa de Trás-os-Montes. Ao mesmo tempo parece que estás num barco no Atlântico ou no Mediterrânico, quase arábico, judio, chego ao José Afonso por essa beleza.
Em que altura?
Já tinha alguns dezasseis ou dezassete anos. Estudei num colégio diocesano, de padres, e deve ter sido por algum colega que ouvi falar dele. O meu pai também o adorava, tal como ao Fausto.
E que impacto teve José Afonso à data?
Não sei explicar, não é uma coisa natural. A primeira música que aprendi foi a “Vejam Bem”. Claro que naquela idade não entendia a letra, mas adorava a melodia. Arrepiava-me ouvir “Vejam Bem / que não há só gaivotas em terra / quando um homem se põe a pensar”.
Fazia-te sentir bem?
Sem dúvida. Como esta, outras, agora que estou mais centrado na Carta Branca descobri mais ainda a sua magia, entrei num mundo de poesia, de uma beleza profunda e intensa. Não é só a luta, também é esperança, é vida, é um apaziguamento. Não é só um borbulhar.
Já que falas nisso... O que podemos esperar do concerto de quinta-feira?
Vou cantar 17 canções, mais coisa, menos coisa. São as canções de que mais gosto e aquelas que mais têm a ver com aquilo que lhes possa dar, não vou fazer das canções melhores, acho que não consigo, mas quero dar-lhes algum cunho pessoal. Uma noite muito agradável, muito viva, faço questão que o José Afonso esteja vivo.
Com quem é que vais estar em palco?
O Filipe Raposo no piano e na direcção musical, o Ricardo Toscano no saxofone, o António Quintino no contrabaixo, Jarrod Cagwin nas percussões e o Mário Delgado nas guitarras. Quis trazer um quinteto, sexteto comigo, que não fosse tão óbvio na instrumentação que o José Afonso utilizava. Vai ser um ambiente muito português.