Todos os anos é a mesma coisa: em Março acabam-se os passes de três dias, acabam-se os bilhetes para um dos dias, acaba quase tudo do NOS Alive. O que não parece terminar é a vontade portuguesa de consumir bandas e música à grande e à francesa.
Jeanny Beth surfa sobre um mar de mãos. Atrás dela, em palco, as três outras Savages partem a loiça: o baixo de Ayşe Hassan faz um barulhinho bom, Fay Milton espanca a bateria com um sorriso na cara e Gemma Thompson serve-se da guitarra para testar os limites do sistema de som da sala de concertos londrina The Dome. De repente faz-se silêncio, o público – putos indie, velhos punks e tudo o que se encontra pelo meio – devolve Beth ao palco e as Savages desatam a tocar a última canção da noite. Começa assim: “Don’t let the fuckers get you down”...
Os concertos das Savages são extáticas comunhões de rock’n’roll. Digam o que quiserem, mas no meio do som e da fúria da banda sentem-se as barreiras emocionais que separam a banda do público a ruírem. E é estranho que, quando nos encontramos com Beth e Thompson no dia seguinte, esses muros tenham voltado a ser erguidos. De casacos pretos e olhares impassíveis, difíceis de ler, Beth e Thompson parecem cautelosas – desconfiadas, até.
Em todos os concertos das Savages a que assisti senti um forte vínculo entre a banda e o público. Da última vez não havia grades nem seguranças à frente do palco. Isso é deliberado?
Jehnny Beth: Sim, nós pedimos para não haver barreiras. Mas, mesmo que haja barreiras, há sempre maneiras de chegar ao público.
No entanto, têm fama de serem austeras e reservadas. Eu sou vosso fã, mas vocês estão a olhar para mim como se vos estivesse a tentar vender um iPhone em segunda mão.
JB: [Risos] Desculpa.
Gemma Thompson: Não sei o que dizer. Para nós o mais importante são os concertos. É aí que tudo faz sentido, que todas as peças encaixam. No primeiro disco éramos altamente protectoras: tínhamos mentalidade de gangue. Passámos por várias situações que quase nos separaram. Mas o mais importante para nós é a música e os concertos, e faremos o que for preciso para proteger isso. Se parecemos frias é para proteger isso.
Estão sempre na defensiva nas entrevistas?
GT: Depende da pessoa com quem estamos a falar. Não podes estar à espera de criar, de repente, uma conexão com alguém para falares sobre algo que é tão importante para ti.
JB: Responder a perguntas sobre o que estás a fazer, quando queres manter as coisas instintivas, é difícil para todos os artistas que eu conheço. Acabas por ter de intelectualizar tudo, e tentar ter uma resposta para tudo pode ser cansativo.
Estás a dizer que se começares a analisar muito as coisas vais começar a pensar demasiado?
GT: E é o oposto daquilo que fazemos.
JB: Havia uma frase que eu repetia sempre antes de ir para o palco. Isto era ao início, quando eu tinha muito, muito medo de actuar ao vivo, e por vezes esquecia-me da frase antes de começar. Sabia que tinha de me lembrar dela antes de pisar o palco, e às vezes estava cinco minutos a ver se lembrava. Sabes qual era a frase? “Não penses.”
Já se escreveu que vocês não têm sentido de humor. Achas que fazem coisas com piada?
JB: Acho que sim. Quando salto como um esquilo em palco, sem dúvida.
E parto do princípio que vocês não estão sempre a ter conversas profundas quando estão juntas.
GT: Oh meu deus, de todo.
JB: Pelo amor de deus – nunca.
GT: Nós somos ridículas.
JB: Somos hilariantes, a sério.
Mas percebem porque é que as pessoas podem achar que estão sempre com cara de frete?
GT: Não podemos pensar muito sobre isso – sobre como as outras pessoas nos vêem – porque não queremos que essa percepção afecte aquilo que fazemos. “Oh, se calhar se fizer isto, alguém vai...” Tem de haver um momento em que pensas: Não quero saber. Vou continuar a fazer o que faço.
Então o que é que vos irrita? Qual é a pior palavra que podia ser usada para vos descrever enquanto banda?
GT: [Sussurros] É uma pergunta muito difícil.
JB: [Sussurros] Não sei.
GT: Bam, acho que o título do The New York Times...
JB: Oh, sim – conta isso.
GT: Temos evitado falar sobre isto, porque não é preciso empolar este caso, mas vou referi-lo na mesma. O The New York Times fez uma crítica a um concerto nosso concerto e referiu-se a nós como “uma banda de rock de mulheres”. Um fã fotografou, riscou “de mulheres” e postou na internet. Nós partilhámos isso, a situação começou a ganhar visibilidade e no dia seguinte eles mudaram para a frase para: “Savages, uma banda de rock”.
Essa conversa de serem uma banda “de mulheres” deve ser cansativa.
JB: Sim. “Como é que se sentem por serem quatro mulheres numa banda?”
GT: É bom chamar a atenção para o ridículo da pergunta. “Como é que te sentes por seres um gajo sentado numa cadeira?”
Estou-me a sentir um bocado desconfortável. Mas pronto: de que forma é que o vosso som evoluiu neste segundo álbum?
GT: É uma progressão natural do primeiro disco. Dois anos passados em digressão tornaram-nos melhores intérpretes, mas não mudámos a nossa forma de tocar. Baixo, bateria, guitarra e voz: não há mais nada. Fizemos overdubs e assim, mas isso é só para reproduzir a energia e o volume dos concertos, porque nós tocamos muito alto e é uma experiência muito física. É impossível reproduzir isso em estúdio.
No refrão da primeira canção do novo disco dizem que “Love is the answer” [“O amor é a resposta”]. Isso não é um pouco ingénuo, tendo em conta todas as coisas horríveis que estão a acontecer no mundo?
JB: Não. É muito mais pessoal do que isso.
GT: Queríamos cantar sobre amor de determinada maneira, mas como é que cantas sobre um assunto desses quando és uma banda como as Savages. E tínhamos um trecho instrumental circular – na altura era a coisa mais pesada que tínhamos gravado.
JB: Subitamente era possível dizer estas palavras frágeis e ingénuas. No coração da tempestada: é aí que se encontra a humanidade.
Não havia canções de amor no álbum de estreia.
JB: Isso foi intencional. Não queria escrever canções de amor. Para falar de amor as pessoas têm de se conhecer melhor. É preciso não ter medo de cometer erros e mostrar fraqueza. É uma das coisas mais bonitas da vida e das relações com outras pessoas.
Não é sempre difícil falar de coisas mais profundas?
JB: Bem, as coisas profundas foram o que sempre nos interessou. Eu aborreço-me de conversa da treta muito depressa. Quero sempre saber as coisas importantes: aquilo que dá às pessoas vontade de viver. É a perda de alguém, ou o amor de alguém? Todos temos esqueletos no armário.