Salvador está tranquilamente a acabar de almoçar, numa esplanada discreta de uma ainda mais discreta zona de Carnide. É ali que fica a Fado In a Box, a agência que o representa, e com ele estão as três mulheres que lá trabalham. A primeira pergunta é dele: a companhia é intimidatória? De modo algum. Aliás, até calha bem. O novo Paris, Lisboa é um disco em que o vencedor da Eurovisão se rodeia de familiares e amigos. Logo, são as condições certas para uma conversa antes da estreia no Coliseu do Recreios, dia 10.
Para começar, pedia-te que arrumássemos já o título da entrevista: qual é a frase polémica que vamos escolher?
Não te preocupes. Há sempre uma daquelas frases em que não interessa nada do resto do que eu digo. Vais apanhar uma.
Essa franqueza vale-te muitas dores de cabeça. Sentiste necessidade de criar um filtro entretanto?
Vivo neste conflito: a liberdade está em dizer o que quero? Acho que não. Porque depois sinto-me mal quando escrevem coisas erradas, fora de contexto. Não durmo nada. Se calhar, a liberdade está em arranjar um filtro para estar mais livre desse tipo de coisas.
“Apaguem as máquinas, arranquem os fios”. Quando ouviu estes versos, quem estava no CCB [vídeo abaixo], após a vitória na Eurovisão, pensou que estavas a cantar sobre ti e os teus problemas de saúde. Mas há um twist na canção.
Tinha escrito essa canção numas das minhas insónias produtivas. Imaginei um gajo em coma. À medida que ia escrevendo o poema, apercebi-me que tinha estado num acidente de carro e que tinha matado uma pessoa. E está com dúvidas. Se acordar, tem que arcar com as consequências. Legais e emocionais. Depois, pensei em fazer a letra mais ambígua para pensarem que podia ser autobiográfica.
Agora a canção “180 Dias” tem mais 24 horas, passou a chamar-se “180. 181 (catarse)” e abre este disco.
180, 181. É o primeiro dia de esperança. O renascimento. O “Presságio”, que é o presságio de um bom futuro, começa um bocadinho depois. Há imensos segundos de silêncio.
Anseias pelo tempo em que o transplante cardíaco deixe de ser assunto e que quem te ouve deixe de procurar vestígios clínicos nas canções?
[Risos.] As pessoas estão sempre à procura de sangue, são mórbidas. Olha! Tens aqui o título!
Paris, Lisboa remete para o Paris, Texas. Sabemos que gostas de cinema, mas também que há uma canção de nome “Paris, Tokyo II” no álbum. Qual é a relação?
É bastante pessoal. O Tokyo é o Tokyo no Cais do Sodré. Vivi lá coisas muito bonitas. Houve um “Paris, Tokyo I”, que escrevi numa noite em que estava apaixonadíssimo, mas essa não era uma canção para ser pública.
Rodeaste-te de amigos para este disco. Além do sempre-presente Júlio Resende, a produção é do Joel Silva, que toca contigo em Alexander Search e no Mutrama. O André Santos, do Mutrama, também cá está ["Anda Estragar-me os Planos", vídeo abaixo]. É também pela companhia que se faz um disco mais solar?
Sim. Quanto mais as pessoas esperavam que, depois da Eurovisão, fosse chamar o produtor X ou tocar com estes gajos lixados americanos, mais eu me fecho nos meus amigos e faço música com malta que admiro.
Na apresentação do disco no Nimas, dizias que agora tinhas dinheiro para distribuir pelos teus amigos.
Adoro isso. Poder pagar-lhes pela arte deles.
A família também cá está: “La Souffleuse” [escrita pela mulher, a actriz Jenna Thiam], “Prometo Não Prometer” [pela irmã, Luísa Sobral]. Era um conforto necessário?
É um disco feito em casa, por nós, e está aí no mundo inteiro. E a minha irmã tinha de estar presente. Ela é uma grande conselheira.
Nos agradecimentos, falas em “conselhos assertivos”. Que tipo de contributos é que estamos a falar?
Todo o tipo de conselhos. É a pessoa mais sensata que conheço. Ouço-a sempre.
Todo o disco passou pela Luísa então?
Não! Mas, quando alguma coisa me está a chatear, sei que ela me vai dar uma resposta sem merdas. Foi a pessoa mais importante a dizer que gostava do disco. Fiquei super feliz. A ela e à malta do jazz é a quem quero agradar.
Houve alguém a quem o disco não tenha agradado?
Há pessoas que acham que não é coerente. Mas eu não sou coerente, portanto o disco e a minha música nunca o seriam. Estou sempre a contradizer-me. Estou sempre a dizer que sou contra a competição na música e fui aos Ídolos, ao Bravo Bravíssimo e à Eurovisão. Não há gajo que tenha feito mais talent shows do que eu.
“Mano a mano” é outro momento de intimidade. Tem a ver com a forma como gravaste o tema com o Zambujo.
Ele estava numa sala, eu noutra e o Júlio [Resende] noutra a tocar. Não estava a soar mal, mas não tínhamos a sensação de ter encontrado o take. E decidimos experimentar gravar todos na mesma sala. Quando o Júlio vai a tocar, o Zambujo começa a falar: “Eh pá, vamos experimentar tocar muito sussurradamente, como se houvesse um bebé que não podemos acordar.” O Júlio disse: “Ia fazer exactamente isso.” E aí voou. A magia no estúdio não acontece muitas vezes. Dessa vez aconteceu. Se calhar, ao vivo seria natural, mas no estúdio é difícil de criar a magia.
Apresentaste as canções, uma a uma, para uma plateia circunscrita no Nimas. Porquê?
Muitas vezes dizem-me que adoram ouvir a minha música a trabalhar. É fixe. É melhor do que não ouvirem. Mas gostava que se sentassem a ouvir. Queria proporcionar uma audição só pela audição e obrigar os jornalistas a ouvir o disco do princípio ao fim.
Foi uma forma de diluir a apresentação aos jornalistas na companhia da família e dos amigos? O cinema parecia uma extensão do lar, até com comida da mãe.
É que eu adoro os jornalistas, pá!
Receias mesmo que o Coliseu esteja vazio?
Nunca percebo porque é que as pessoas hão-de querer ir. Ainda por cima, os bilhetes são caríssimos. Ai! Não se pode dizer...
Está aí outro título: Salvador diz que bilhetes para os seus concertos são caríssimos.
O Palau de la Música Catalana já pegou nesse título. Não serias o primeiro. Acho sempre estranho as pessoas tirarem duas horas da sua vida para me irem ver.
Um vencedor da Eurovisão, um concurso com televoto, tens assim tanto medo de não agradar ao público?
Estas inseguranças são típicas. A menos que sejas o Fernando Tordo, cheio de segurança...
Quem te vai acompanhar em palco? Haverá surpresas?
Não vão acontecer assim tantas coisas: à parte as strippers, os anões, as sereias e o concurso de comida, claro. Vai haver canções novas.
É obrigatório “Amar Pelos Dois” estar no alinhamento?
Ainda tenho vontade de a tocar. No dia em que não sentir aquela coisa, não a vou tocar. A malta toca-a sempre de maneira diferente. É essa a magia do jazz.
A propósito de Festival da Canção, a proposta de Conan Osiris é muito distinta da que apresentaste em 2017...
Diferente mas igualmente legítima.
O que as separa não é só a música, pois não?
A mensagem é muito diferente. Este ano aquilo é muito duro. A situação da ocupação de Israel. Adorava dizer que não iria. Mas não sei porque não sou eu que estou lá. Quando fui à Ucrânia, existia a situação da Crimeia – e fui.
Levaste a camisola com a mensagem S.O.S. Refugees.
Será que levava uma camisola a dizer “Libertem a Palestina”? Não sei se teria coragem. É uma situação muito delicada. Mesmo a minha posição, em relação a este conflito, é complicada. Porque os israelitas também não têm terra. Para onde é que eles vão?
O que acabaste de fazer, parece-me, acontece quase sempre: alguém pergunta sobre o Conan Osiris e tu escapas-te para outro assunto.
Eu conheci-o e acho-o simpático. Mas não é a minha música. E a minha música também não é a dele. Nunca vou comprar o disco dele e acho que ele não vai comprar o meu. Musicalmente, não me toca. Se calhar ele também não se sente tocado pela minha. Aqui está outro título!