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A primeira vez num Michelin: “É engraçado que depois está cá tudo, os sabores estão cá todos”
Por falta de tempo, interesse ou oportunidade, os restaurantes Michelin ficam muitas vezes inacessíveis a quem da cozinha vive. Sentámos cozinheiros tradicionais à mesa destes restaurantes. O chef Gil Fernandes convidou João Duarte.
Passam uma vida no restaurante, de avental posto, entre tachos e travessas de inox. Partilham o espaço com a família, uns na cozinha, outros a servir às mesas, e às tantas já não distinguem a casa do trabalho. Sabem o nome de praticamente todos os clientes que ali se sentam, decoram-lhes as preferências e mimam-nos como se de casa também fossem. O tempo livre é pouco, serve habitualmente para escapar. Vivem numa bolha tal que se esquecem muitas vezes de parar para apreciar o caminho, a conquista. Nem se prestam, na maior parte das vezes, a mimos. Quando acontece, desfazem-se em memórias e histórias e recordam elogios, habitualmente de caras conhecidas, como que a reforçar a credibilidade.
Foi precisamente o que aconteceu aqui. Sem esperarem, foram convidados por chefs para uma experiência nos seus restaurantes premiados pelo Guia Michelin. Gil Fernandes, Alexandre Silva, Martín Berasategui e Filipe Carvalho aceitaram o desafio da Time Out e fizeram uma troca que raramente acontece – ou nunca. João Duarte, Luciano Laurêncio, Dália e Fernando Soromenho sentaram-se pela primeira vez num restaurante estrelado e maravilharam-se. Descobriram novos sabores, ingredientes que não sabiam existir e técnicas que nunca ousariam experimentar. Ouviram muito, perguntaram ainda mais e, no final, agradeceram uma e outra vez.
O contrário também aconteceu. O amor à cozinha não distingue chefs e cozinheiros, tascas e restaurantes de fine dining. Por mais alta que a cozinha seja, há uma base que é partilhada e uma história que se reconhece nas horas de esforço e trabalho. “A partilha tem que acontecer”, diz à mesa Gil Fernandes, que em 2018 assumiu a cozinha da Fortaleza do Guincho, tornando-se no mais jovem chef português à frente de um restaurante com estrela Michelin – tinha então 28 anos. “O senhor João tem muito a acrescentar, eu gosto de ouvi-lo, honestamente. Revejo-me muito, temos muito a mesma paixão. E depois tem o triplo da experiência e aporta muito às conversas”, continua, sentado à mesa, lado a lado com João Duarte, também conhecido como o João da Vila Velha, nome do restaurante tradicional afamado em Mafra.
É em Mafra que Gil vive e foi no confinamento que recorreu tantas vezes ao João da Vila Velha, que se viu obrigado a inovar, quase duas décadas depois de ter aberto. Fechar nunca foi opção e, por isso, quando a covid-19 parou o país, o take-away foi a solução. “Mas fiz um take-away com uma escolha quase de A a Z, abrangente, para servir uma casa de família. Se fizesse apenas um, dois ou três pratos, não servia. Imaginemos uma feijoada, podia não dar para todos e ainda acabavam a ir ao McDonald’s”, brinca João.
Mas a conversa do take-away não surge por acaso. Foi numa das idas do chef ao restaurante para ir buscar comida que acabou sinalizado. O senhor João já conhecia Gil, mas não fazia ideia da sua profissão. “Um dia, à mesa com o presidente da Câmara [de Mafra, Hélder Sousa Silva], ele chamou-me a atenção: ‘olhe que é uma grande responsabilidade cozinhar para aquele senhor que está ali, tem uma estrela Michelin’”.
O cozinheiro registou a informação, mas nem por isso se descaiu. “Não sabia disso”, diz, entre gargalhadas o chef. “Foi muito giro”, continua João. “Nunca esperei foi estar ao lado de um Michelin, e o Gil parece uma pessoa espectacular, sinto-me à vontade”, diz logo de seguida.
Nesta noite, no final de Janeiro, Gil Fernandes despiu a jaleca e soltou o cabelo, assim que percebeu que João Duarte estava a chegar à Fortaleza do Guincho. Trabalhou e orientou o serviço até à chegada do convidado, que fez questão de receber à porta. Apresentou-o à equipa de sala e deixou-o à vontade, tanto quanto os nervos permitiam. “Eu penso muito nas coisas e pensei muito, passei o dia a pensar onde é que vinha hoje. Fiquei já apreensivo”, descreve João. “Esta ideia para mim é única. Conheço tanta coisa neste país, mas vou basicamente à cozinha portuguesa, e não quer dizer que não esteja aqui a verdadeira cozinha portuguesa, tem é um contexto completamente diferente”, apressa-se a justificar, para ser interrompido por Virgílio Tabosa, chefe de sala, que se preocupa em explicar que será servido o Menu Experiência (190€/295€ com harmonização de vinhos), que se divide por 16 momentos. “O que acontece é que temos uma harmonia para acompanhar, teremos oito vinhos diferentes. São demasiados?”, questiona. “Com toda a certeza que pode abreviar. Eu provo um ou dois vinhos”, responde o convidado, meio atrapalhado e entre risos, deixando a decisão nas mãos do chef. “Eu vou provar todos”, diz Gil.
Enquanto a comida não chega à mesa, a conversa flui, entre a curiosidade de um e de outro, as histórias de João sucedem-se, recuando ao início de tudo, quando durante umas férias no Algarve viu “uns alemães à beira da estrada a fazerem hambúrgueres”. “Achei curioso e digo assim: eu tenho o tipo de cliente para trabalhar isto. Ao lado do liceu, era só gente nova. Estamos a falar de 1986, o pão de hambúrguer ainda não existia em Mafra. Quando percebi, já estava a fazer 100 hambúrgueres por dia”, conta orgulhoso. “Eu não fazia restauração. É o tal clique. Vivi bem, mas perdi o liceu no ano seguinte porque mudou de sítio. Então, nessa altura, e por necessidade, comecei a fazer mini-pratos e quando me apercebi já tinha clientes que iam do presidente da Câmara a figuras públicas, comecei a ser conhecido pelos petiscos, as saladinhas de polvo.”
Hoje, o João da Vila Velha é uma casa feita de comida tradicional. Ora se come ensopado de borrego (12€), ora chanfana de javali (10€), ora cozido à portuguesa (10€), ora arroz de cabidela (10€), ora ensopado de peixe (12€), ora o que o senhor João se lembrar. Um dia, recorda com brio, um pescador levou-lhe umas cavalas fresquinhas e o humorista António Raminhos estava na sala. “Ele queria provavelmente qualquer coisa que não era nada daquilo e eu disse que ia fazer ómega 3 à Bulhão Pato. Não lhe podia falar em cavalas, senão ele não as comia”, diz. “E saiu-lhe assim?”, pergunta Gil. “Olhei para elas e pensei. E ele adorou. Foi tão giro, que no dia a seguir na rádio com o Pedro Fernandes foi o tema de conversa.”
À mesa da Fortaleza do Guincho, chegam os primeiros snacks, todos eles baseados em memórias do chef, tal como todos os pratos que se seguirão, ou não fosse este menu de degustação todo ele feito a partir das recordações de Gil Fernandes. Do desporto, da infância, da avó, do Norte, da Praia do Abano… Entre um “choco surfista”, uma espécie de dim sum invertido, feito com choco e no interior uma açorda de choco, ou um “conta-gotas”, qual sistema de irrigação que finaliza uma mini-couve recheada com tártaro de camarão, as atenções tendem a dividir-se, mas João ouve tudo atentamente e saboreia cada pedaço. “É engraçado que depois está cá tudo, os sabores estão cá todos.”
Os momentos sucedem-se, qual orquestra afinada com o maestro à mesa. Apresenta-se um vinho, chega outro prato, conta-se uma história. “Esta casca aqui é comestível. É como se fosse a casca do bivalve, só que fazemos com massa de pão, portanto parece a casca, mas é comestível”, aponta a determinada altura o chef. “Olha que giro, não fazia ideia. Tudo isto é comestível? Gil, isto para mim é coisa única”, diz João, maravilhado.
“Sabe, vou confessar-lhe, se não houvesse esta ocasião, eu queria trazê-lo cá na mesma porque revejo-me, revejo em si muito esforço, muita dedicação, o que acontece também comigo. Veste a camisola como ninguém”, confessa o chef Gil.
Em menos de nada, a cada prato que chega à mesa e a cada memória evocada, esbatem-se as fronteiras entre as duas cozinhas. Também João Duarte tem pratos que criou de memórias antigas, histórias que se materializaram entre ingredientes, como a “sopa de Jericó” que chamou assim por usar “uns agriões fabulosos que existiam junto à margem do rio”. “Jericó é um riozinho que passa ali junto ao Quintal, onde nasci e cresci. Toda a gente achou graça, perguntavam-me como é que me fui lembrar do Jericó. Foi giríssimo”, lembra. “Sabe que a gastronomia é [feita de] memórias e temos de partilhar essas memórias”, argumenta Gil. “E essas memórias mexem com as pessoas”, conclui João, ao mesmo tempo que sente necessidade de dizer que a Fortaleza do Guincho fica a quilómetros de distância daquilo que faz no seu restaurante.
Não está completamente errado, mas Gil não deixa nunca o cozinheiro para trás. “Também tem a ver com experiências diferentes. Eu sou de um momento onde já se pratica muito esta cozinha, o senhor não vem dessa altura da sua vida e isso ajuda a que haja esta diferença, mas a essência, o sabor, a paixão pela cozinha, o sentir o produto e a confeccção é a mesma. Pelo menos, é isso que eu sinto”, admite. “O objectivo não é comparar restaurantes. No outro dia, fui ao seu restaurante buscar mão de vaca para take-away. Estava espectacular. Saí com muita satisfação, igualmente como saio de uma refeição destas. É diferente, mas a satisfação não.” E exemplifica: “O que eu fiz aqui foi pegar na forma como cozinhavam um produto, claro que com outra técnica. E você fez a mesma coisa, chamando Jericó a uma memória.”
O jantar prossegue e parecem faltar adjectivos a João. É com uma salada de polvo, quinoa e puré de batata doce fermentada em forma de tentáculo, que mais se deslumbra. “Ó, Gil, é preciso ter uma capacidade estrondosa para ir buscar estes sabores e estas ideias.” Ao que o chef responde prontamente: “Tem de se viver o trabalho”. “Mas muito, muito. É muita arte”, delicia-se João. “Há aqui sabores únicos, equilíbrios espectaculares, uma conjugação de sabores, harmonia…” O mesmo acontece num surpreendente prato que junta um robalo de anzol com couve a um caldo de cozido à portuguesa (a sopa do cozido vem a seguir). “É engraçado como não há choque entre peixe e carne. Estava excelente.”
João pode até desconhecer as técnicas e as regras que a alta cozinha exige, mas sabe bem a quanto uma cozinha obriga. “Eu costumo dizer na brincadeira que é uma condenação a prisão perpétua de porta aberta. No meu caso, eu desço umas escadas de trabalho, subo umas escadas para dormir. É mesmo isto. Às 8.30 estou lá e só saio de lá à meia noite e meia.” Mas nem por isso se vê a viver de outra forma. Até porque não há quem não lhe elogie a casa. “E isso vai-me dando mais alento, mas também me trouxe alguma responsabilidade de fazer melhor. Aprendo todos os dias.”
As receitas, essas, tanto podem sair da sua cabeça, como aquela das cavalas, como de livros ou até conversas. Há uma em particular que o orgulha e que se tornou bandeira do João da Vila Velha: a galinha mourisca (10€), habitualmente na carta aos sábados. Foi em conversa com um historiador sobre o rei D. João V e a gastronomia da época, que João percebeu a importância das especiarias na altura – da canela, sobretudo. “A cozinha medieval é caracterizada por isso mesmo, o uso das especiarias”, aponta Gil. “É engraçado, deram-me algumas receitas, que ainda estão com as medidas de antigamente, temos de fazer a conversão”, explica João, contando passo a passo a receita da galinha mourisca, ao mesmo tempo que Gil vai fazendo perguntas. “Mas aloura a galinha? E depois fica no tacho? Tenho uma galinha do campo que um fornecedor nos deu, vou ter de aplicar essa receita.” João não sabe se percebeu ao certo o que disse o chef. Este deixa claro que pode ter vindo dali uma inspiração para pratos a fazer no futuro. “Porque não? A receita é bonita.”
Também na Fortaleza do Guincho é assim que acontece a inspiração para pratos, que acabam por ter uma maior rotatividade do que num restaurante tradicional, por responderem à época de cada produto. São memórias, são conversas, são influências. “Concebo na cabeça, começo a fazer experiências. E damos três ou quatro calinadas até chegar a bom porto”, explica Gil. “É de muito trabalho a nossa profissão, de muita afinação, de muito sentir. ‘Sentir’ acho que é a palavra certa, sentir o que estamos a fazer. Sentir a galinha, sentir a canela, sentir o grão. Se está na época, a qualidade. É tanta coisa. Tem de ser tudo pensado”, continua, destacando a importância da equipa. “Sem eles, eu não poderia estar aqui hoje, nem esta categoria de comida podia estar a ser servida. Isto não é só trabalho meu, é de muita gente.”
A caminhar para o fim, João põe fim a um mito, ou mesmo um preconceito, que teima em perseguir o fine dining. “Eu já estou… Não havia necessidade de mais comida”, diz, meio tímido. “Temos dois menus, o de degustação [145€] e o que chamamos de experiência. É este que estamos a fazer. Como vinha aqui, queríamos mostrar tudo o que tínhamos. A experiência completa”, explica o chef. É um mimo, claro, mas seria igual se João cá viesse numa qualquer situação como cliente. É assim sempre, com todos os clientes.
“É mesmo uma viagem, obrigada, Gil”, agradece, satisfeito, João. “Obrigado a si. É um prazer para mim tê-lo cá e poder perceber que o senhor, que tem mais anos do que eu, tem a mesma paixão que eu, o mesmo esforço, as mesmas dores. Com 65 anos, tem o mesmo fulgor que eu com 30. É muito bonito ver esta química”, reforça Gil. João responde com a paixão. “É uma forma de estar. Continuo com a mesma paixão de sempre.” “E é isso que nos faz todos os dias ir à luta, não é?”, atira Gil, convidando a uma visita à cozinha, tão grande como a sala do restaurante. Com toda a paciência e dedicação, explica zona por zona, processo por processo. “Eu por acaso, quando vou aqui e acolá, trago sempre ilações. É sempre mais uma ideia, que vou montar à minha maneira”, diz, agradecido, o cozinheiro, lembrando o dia em que viu na televisão alguém falar de um prato, mas guardando para si a receita com a justificação de que era segredo da casa. “Ora bem, na cozinha não há segredos. É isso que eu sinto. Quando se transmite [uma receita] a outra pessoa, essa pessoa nunca mais vai fazer igual, nem na própria casa onde as duas pessoas cozinham isso acontece”, argumenta o cozinheiro. “Ninguém é igual a ninguém. Não gosto da ideia de se dizer que o segredo é a alma do negócio. Quando falo das minhas coisas, falo abertamente, mas tenho consciência que essa pessoa nunca vai fazer igual, vai fazer melhor ou pior, mas igual, nunca.”
Gil consente. “Amanhã já vai ter muitas histórias para contar. Fico feliz por isso.A cozinha é paixão, como os seus olhos estão a brilhar agora, os meus também brilham.”
Fortaleza do Guincho, Estrada do Guincho 2413, Cascais. 21 487 0491. Qua-Sáb 19.00-21.30 (última entrada), Dom 13.00-14.30 (última entrada)
*Este artigo foi originalmente publicado na edição Primavera 2022 da revista Time Out Lisboa
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João da Vila Velha
O restaurante de João Duarte fica em Mafra e não há dia em que não seja concorrido. No Facebook (@joaodavilavelha), publicam todos os dias a ementa onde há uma variedade de pratos capaz de agradar a uma família inteira, motivo que muito orgulha o cozinheiro.
A provar: a galinha mourisca (10€), ao sábado.
Rua Pedro Julião, Papa João XXI, 4, Mafra. 261 811 254. Sex-Qua 12.00-15.00/ 19.00-22.00
Na hora de escolher alguém para levar ao LOCO, Alexandre Silva não teve dúvidas: Luciano Laurêncio, o homem do leme de A Trempe, restaurante alentejano de Campo de Ourique, que é já um clássico da cidade.
É uma felicidade apanhar Martín Berasategui no seu restaurante em Lisboa – e não é que na sua ausência a cozinha não esteja bem entregue. Pelo contrário, Filipe Carvalho toma conta da casa como ninguém. O chef português vive para isto, tal qual Berasategui. Mas é uma felicidade por não ser habitual.
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