Joan Roca i Fontané
©Pau Storch
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Entrevista a Joan Roca: “A próxima revolução na cozinha é a revolução humanista"

De passagem por Lisboa, na segunda edição do Estrella Damm Gastromy Congress, o chef estrelado falou sobre o trabalho em família, a próxima tendência na cozinha e a importância de trazer outras áreas de trabalho para dentro de um projecto gastronómico

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Joan Roca é o mais velho dos três irmãos responsáveis pelo El Celler de Can Roca, o famoso três estrelas Michelin nos arredores de Girona, e que por duas vezes ocupou o primeiro lugar da disputada lista do The World’s 50 Best Restaurants - hoje está no 3º lugar.

De passagem por Lisboa, para uma apresentação de cozinha no 2º Estrella Damm Gastromy Congress, falou com a Time Out sobre o trabalho em família, a próxima tendência na cozinha e a importância de trazer outras áreas de trabalho para dentro de um projecto gastronómico. “Curiosidade, atrevimento e conhecimento”, resumiu durante a sua apresentação ao público, são três pontos importantes do trabalho na cozinha.

Começo com uma pergunta que deve estar cansado de responder: como se chega às três estrelas Michelin?

Acho que se chega sem pretender chegar. A melhor forma de chegar é não o propores a ti próprio. O mais importante é que faças o que gostas e o faças como gostas. Se isso coincidir com a Michelin, neste caso, ou com as listas mundias, fantástico. Mas não deve ser o objectivo de um cozinheiro ter três estrelas. É o resultado de um trabalho feito com paixão e do compromisso com a excelência. Sim, é verdade que está vinculado ao esforço, ao trabalho, à perseverança, e também acredito que à criatividade e ao compromisso com um trabalho bem feito, com uma estrutura, com uma casa e, no meu caso, com uma família – os meus irmãos. Chegámos aí partindo de uma origem muito humilde. Com a única pretensão de ser felizes, fazendo as pessoas que nos visitam felizes. A cozinhar, que é o que gostamos. A cozinhar, a servir, a atender. E a procurar que os clientes voltem. Que saiam felizes e queiram voltar. O êxito de um restaurante é isto: que esteja cheio de clientes, não que tenha estrelas Michelin. Porque há restaurantes com estrelas Michelin que não estão cheios. 

É difícil manter a estrela?

Não. Não é difícil se a conseguiste solidamente, com tempo, sem pressas, fazendo o que gostas e não o que te impõem. Se for ao contrário, sim é difícil. Se estás a fazer coisas que te impõem e forçam, é difícil. Agora se o fazes com naturalidade, se o que fazes é o que queres e crês, se o fazes com autenticidade, com verdade, não tens por que sofrer para a manter. Claro que podes ter um azar, pode haver um dia em que vem um inspector e a coisa corre mal… pode ser. Mas eu digo sempre que as estrelas estão pensadas para que o cozinheiro que as recebe as possa manter. Não é difícil manter se realmente estás a fazer o que gostas. O que é mais difícil de manter é [a permanência n'] as listas mundiais [como a The World’s 50 Best Restaurants, da revista Restaurant].

É mais importante o prémio da Restaurant ou Guia Michelin?

São coisas totalmente diferentes. Podes manter as três estrelas Michelin, acredito que a Michelin está pensada e estruturada, a sua forma de avaliar está encaminhada para que possas manter, e as listas estão pensadas para chegar, mas não para te manteres, porque o mundo é muito grande e só há um primeiro lugar [O El Celler de Can Roca chegou lá em 2013 e 2015]. Mas estamos lá, e isso é fantástico. Não estamos obcecados, mas é bonito ver que estamos há nove anos entre os cinco primeiros. E oxalá continuemos.

Não viverem obcecados é também não quererem passar pressão para a equipa?

A pressão levamo-la conjuntamente os três. É uma sorte sermos três irmãos e dividir a pressão, dividir a responsabilidade, dividir a criatividade, dividir também a representatividade e o protagonismo. Por isso é mais fácil viver todo este momento de êxito – e impedir que esse êxito te cause danos.

Como é trabalhar com os seus irmãos?

Há uma confiança grande, que é muito importante para a empresa – um restaurante também é uma empresa. Depois há muita generosidade, muita vontade de partilhar. Entendemo-nos bem. Não apenas do ofício, nem das especialidades de cada um, mas a forma que queremos viver. É muito importante, porque um restaurante é uma forma de viver. Não seria o mesmo sem os meus irmãos. Eu não seria o mesmo, o El Celler de Can Roca também não.

Alguma vez algum de vocês sentiu necessidade de sair por uns tempos? Experimentar coisas novas?

Não, estivemos sempre juntos. Levamos 30 anos disto. E posso dizer que vivemos com naturalidade, não é algo forçado. Se o fosse, cada um podia ter o seu próprio restaurante. Acreditámos num projecto que partilhamos e convertemo-lo na nossa forma de viver. Porque tivemos a sorte de fazer da nossa paixão a nossa profissão.

O facto de terem a mesma educação influencia muito a vossa cozinha?

Claramente. Os nossos pais têm um restaurante muito humilde num bairro operário dos arredores da cidade de Girona. Aí nascemos, aí crescemos, aí aprendemos – e estamos nesse mesmo bairro. Não fomos embora. É a 100 metros do nosso restaurante. Todos os dias vamos lá comer. Isso, provavelmente, tem a ver com o que somos. As origens humildes e os valores dados pelos nossos pais, relacionados com trabalho, esforço, capacidade de partilha, generosidade, autenticidade, hospitalidade. Quando éramos pequenos, nos primeiros anos do restaurante dos nossos pais, o sítio não fechava nenhum dia. Não havia dias de festa, férias. E para nós era normal, era natural, vivíamos com naturalidade, sem a sensação de estar a fazer um sacrifício. Gostávamos dessa forma de viver.

Como é o vosso processo criativo? O Joan é mais cozinha, o Jordi é pasteleiro e Josep ocupa-se da sala e dos vinhos. Mas fazem algumas trocas?

Falamos muito e criamos os três. Quando falamos de um novo prato ou sobremesa, de casar um vinho com um prato, falamos os três e decidimos os três. Há muito diálogo entre todos, inclusivé as decisões importantes de projectos. Ou, por exemplo, a compra de uma máquina, chegamos a acordo três.

Fala-se muito em tendências de cozinha. Que primeiro era a francesa, depois a espanhola e agora a nórdica. Como encara estas tendências?

Bom, todas confluem. Todas as tendências se encontram, porque todos falamos do mesmo. O que foi a moda da cozinha nórdica foi o que fizemos sempre no Mediterrâneo, que é cozinhar Km zero, com produtos de proximidade. É algo natural para nós, não é sequer discutível. Converteu-se em moda porque se começou a falar disso globalmente. Eu acredito que estamos num momento em que vamos todos um pouco na mesma direcção: há um compromisso com a sustentabilidade, a ecologia, os recursos naturais. Há que cuidar deles e isso começa a ser normal para todos. Também essa revolução tecnológica que houve na cozinha nos últimos anos e essa revolução de produto, de irem todos buscar o melhor produto possível, próximo, autêntico. Tudo isso chegou a um ponto em que a próxima revolução na cozinha é a revolução humanista, onde o mais importante é conhecer as pessoas.

Em que sentido?

Trata-se de fazer felizes os nossos clientes. Não os vão fazer felizes empregados que não sejam felizes e cozinheiros que não sejam felizes. É muito fácil dizer isto, mas aplicá-lo é mais difícil, mas é possível. Acredito que seja uma tendência. [No El Celler de Can Roca] estamos a dedicar muito esforço para cuidar das nossas pessoas, das nossas equipas, a ouvi-las. E converter este mundo tão exigente, tão duro, de horários alargados, a convertê-lo em algo mais humano. E essa é a próxima revolução, a das pessoas. Das que trabalham, das que estão fora, dos clientes, dos fornecedores – as relações humanas são chaves nesta nova ideia da cozinha que não deixará de lado nunca o produto local, nem a tecnologia. Tudo são revoluções que se sobrepõem, não se eliminam, somam-se. Acredito que agora é o momento das pessoas. 

Faz uma cozinha de sabor mais tradicional, mas com técnicas modernas e maquinaria. Tem de existir ciência na cozinha?

Não é obrigatório, não é necessário, nem imprescindível. Mas sim, é importante. Nós temos um laboratório, uma oficina de investigação, provavelmente, o maior e mais tecnológico, o mais articulado por especialistas de diferentes âmbitos. A dirigi-lo está uma cientista que dirigia os cursos de ciência e cozinha em Harvard. Se queres revolucionar, se queres ter um compromisso com a criatividade, com a inovação, tens que o fazer. Tens que manter esse diálogo que faz com que continuamente aconteçam coisas que acabam a converter-se em pratos, ideias, projectos. É bom para manter a evolução e a actividade no máximo.

Passa mais tempo no laboratório ou cozinha?

Passo muito tempo na cozinha. Até digo que vivo na cozinha. Durmo em casa, mas vivo na cozinha. E o nosso laboratório é mesmo à frente da cozinha. Passo também tempo aí. No laboratório está parte da minha equipa a trabalhar e eu vou muitas vezes para provar, ter reuniões, definir linhas.

Estava a dizer que tem pessoas de diferentes áreas no seu laboratório. Sei que tem uma psicóloga. É caso raro num restaurante.

Quando falava de cuidar das pessoas, é também isto. Tenho uma psicóloga que se ocupa da questão emocional da equipa. De reunir com chefs de cozinha, com os maîtres, os sommeliers, com miúdos que estão na cozinha, os estagiários. Para moderar as emoções e os conflitos que há numa equipa de trabalho competitiva. Questioná-los e poder tirar de cada um deles o seu melhor. E aproveitar toda essa informação para melhorar a qualidade de vida de quem ali trabalha. 

Além de psicólogos, que tipo de áreas de trabalho tem, que não estejam directamente ligadas à cozinha?

Há um botânico que nos ajuda a conhecer o lado silvestre da Província de Girona, há um enólogo que está a gerir uma pequena destilaria. Estamos a fazer bebidas fermentadas, cervejas de frutas, vinhos de frutas, cervejas de outros tipos de grãos, aguardentes de frutas, de ervas, de talos, de flores. Enfim, todo um projecto muito interessante. Há diálogos com artistas, com engenheiros industriais que nos ajudam a desenhar peças para apresentar os nossos pratos, ferramentas que nos permitem contar melhor a história de um prato. O mais importante é que isto mantém sempre a casa viva de projecto, de ideias. 

Não é um restaurante só.

Exacto. É um pequeno mundo onde há muitas conexões e projectos. Estamos a pôr em marcha uma fábrica de chocolate, temos geladarias, um espaço de eventos. Muitas coisas que precisam de criatividade. Este centro de investigação também se nutre com os recursos que geram estes pequenos negócios. 

Falava-se muito da união dos chefs em Espanha para comunicar e divulgar. Este momento que se vive na Catalunha, pode ser negativo para a cozinha?

Em Portugal está a passar-se algo fantástico, na linha do que se passou em Espanha. Há aqui muito talento, muitos cozinheiros bons e muita tradição. Bons produtos, uma base cultural gastronómica forte. Mas é o talento que faz a revolução. Isto augura um futuro muito bom onde a cozinha portuguesa vai ter uma importância e uma visibilidade a nível internacional forte.

Acredita que possa haver uma união mais ibérica?

Ela existe. Somos amigos. O chef do Alma esteve em Girona, eu cozinhei em eventos no Vila Joya. Há uma conexão, uma amizade, uma ligação. Daí o Guia Michelin ter feito um guia de Espanha e Portugal. É um território conectado, a nível de coincidências a nível de produtos, de técnicas, de cozinhas. Há uma certa aliança entre todos.

Mais forte do que era?

Seguramente. Porque agora há um diálogo comum, uma linguagem comum. Uma forma comum de nos entendermos.

O que conhece da cozinha portuguesa?

Não muito. Estive só duas vezes aqui e em períodos muito curtos. Venho sempre a correr. Estive com o Avillez no Belcanto da última vez, ontem [domingo, 29 de Outubro] estive no Alma. São projectos muito potentes, que têm muito que se lhe diga. Estão a começar a contar uma nova história da cozinha portuguesa, da tradição à modernidade, narrando uma nova visão. Acredito que isso é fantástico. Também estive no restaurante do Joachim Koerper, um profissional magnífico, que traz à mesa a sua óptica e multiculturalidade.

Estrelas Michelin em Lisboa

  • Haute cuisine

Com a chegada de 2017, há sete restaurantes na grande Lisboa que podem com orgulho ostentar a estrela do guia vermelho. Dá para correr a cidade toda, do centro a Cascais, ainda dando um saltinho a Sintra, ou fazer uma caminhada mais amiga e ficar-se apenas pelo Chiado. Abra o mapa da cidade e marque os pontos desta lista.

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