Ljubomir Stanisic
Fotografia: Arlindo Camacho
Fotografia: Arlindo Camacho

Entrevista a Ljubomir Stanisic: "Cada vez estou mais animalesco"

Não gosta de ser chamado chef, detesta ver-se na televisão e odeia a fama que o ‘Pesadelo na Cozinha’ lhe trouxe. Mas Ljubomir Stanisic sabe bem o que quer: viver na natureza, aproveitar o país e criar, para os restaurantes de Lisboa, Douro e Comporta

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Há dois meses entrou na televisão dos portugueses como costuma entrar nas cozinhas onde trabalha: a transbordar energia, a debitar lições de cozinha, a falar sem papas na língua. O Pesadelo na Cozinha transformou-se na nova missa de domingo para quem gosta de reality tv, mas para o cozinheiro, que trocou a Jugoslávia por Portugal há 20 anos, o verdadeiro pesadelo tem sido a fama. Afinal, o que o move é a paixão pela natureza, a caça, a pesca, o contacto directo com os produtos. E a criação de novos pratos, claro. Só assim se põem a andar restaurantes em Lisboa, Alentejo e Douro. Apanhado no Bistro 100 Maneiras, entre as gravações de um documentário, o estudo de luzes para o novo 100 Maneiras e desenhos para novas ementas, conversou com a Time Out sobre a sua paixão por Portugal, a capacidade de gerir os vários restaurantes e, como não podia deixar de ser, o programa da TVI. Mas não sem antes garantir: “Não me vais falar só sobre o programa, pois não?”

Vamos lá então arrumar o Pesadelo na Cozinha. Partiste o coração a muita gente quando disseste que não fazias a segunda temporada do programa. Está fora de questão?

Para te ser sincero não estava à espera deste choque tão grande. Que o programa ia ser bom, era garantido, porque era o Manuel Amaro da Costa e a equipa dele a dirigir – e para ter tanto sucesso a razão não sou eu. Não estou a ser ingenuamente humilde ou estúpido. É uma equipa. Eu simplesmente sou aquilo que sou a trabalhar na minha cozinha. Está a ser um gigante balão no país, um programa que entrou na história, dizem que é o mais visto. Mas não é a minha cena. Quando digo que não vou fazer segunda temporada, é que este ano não vou mesmo. Não sou um homem de televisão, sou um homem da cozinha.

Quando foste jurado do MasterChef disseste isso mesmo. Podias ter mudado de ideias...

De quatro em quatro anos faço um programa. Continuo a respeitar aquilo que sou. Não é a minha cena. Se fizer, têm de me pagar uma casa com piscina. Já tentaram negociar comigo, várias estações e televisões, produtores. Este ano, não. Não há dinheiro que me convença. É uma questão de princípio.

Já percebi que as revistas estão todas atrás de ti. Estão a massacrar-te? 

Foda-se, seca do caralho. A mim não estão a massacrar porque eu não leio revistas e o que está a sair nessas revistas não é jornalismo, caraças. Tu és jornalista, não me lixes. Fazer histórias de amor, vão atrás da minha mãe. Massacre sim, nesse sentido. Não estou habituado a isso. Quero estar na cozinha e no meu espaço. Não leio nada, para te ser sincero. Não tenho interesse nenhum nessas revistas. Não representa uma classe de jornalismo, nem são os meus clientes que as lêem.

Está a acontecer-te aquilo que acontece com os vilões das novelas na rua? As pessoas chateiam-te? 

Não digo que as pessoas me chateiam. As pessoas têm os seus ídolos e gostam dessas coisas. Não tenho é muita paciência. Sou um gajo que gosta de sair, dançar, comer fora, estar no Lux até às oito da manhã. É um pouco incómodo, não dá para ir. Há pessoas que estão com o telemóvel na mão a tirar fotos comigo.

Aquilo que tu estás a ser ali és tu na vida real?

Sou o gajo que sou. É-me indiferente o que dizem e o que pensam. Se ligasse a opiniões já estava num manicómio. Ligo ao que dizem a minha mulher, os meus amigos, os meus familiares. E eles nunca me dizem nada, percebem que aquilo sou eu. A minha figura, sou assim em toda a minha vida. Sou o Ljubomir Stanisic, por isso é que aquilo tem sucesso, porque é natural.

Quem é que achas que seria uma pessoa boa para te substituir?

Se substituir... não sei. Boa sorte à produtora. E boa sorte ao gajo que me vai substituir.

Uma coisa que tem impressionado muita gente é o estado de higiene das cozinhas, que faz pensar nas tascas onde vamos. Tinhas noção que era assim?

Não se podem generalizar as tascas, nem os restaurantes. Há tanta tasca boa, tanta – o Solar do Kadete, o Cova Funda, o Das Flores. Mas claro que tinha noção. Não tinha noção de tanto, como aquele de Sete Rios [O Canela, entretanto fechado pela ASAE]. Não vejo o programa, mas sei onde estão as coisas. Odeio ver aquela merda. Não gosto de me ver a mim próprio. Faz-me confusão. É uma cena tipo “foda-se”. Nem vi o Papa Quilómetros, nem o MasterChef. Aquilo é um trabalho. Simplesmente são quatro meses de trabalho.

Mas da mesma forma que provas um prato que fazes, não devias ver?

É diferente. Um prato dá-me pau feito, tenho um prazer do caraças. Aquilo não. Aquilo não é nada. Sou eu, mas não gosto de me ver.

Voltaste a algum dos restaurantes?

Não. Não vou voltar. Só se tiver de voltar em trabalho. Há alguns que tenho pena, gostava de voltar, mas a produtora é que devia ter esse cuidado. Porque investimos uma pipa de massa. Eles não perceberam que o programa ia ser do caralho. Estive quatro meses, todas as manhãs, nos hotéis, a escrever nos espelhos dos hotéis com o pincel dos olhos da Mónica [a mulher de Ljubomir]: “vou fazer o melhor programa de Portugal e vou ser o melhor”. Todos os santos dias esta merda. Deixei de beber quatro meses. Duas vezes bebi com o Manuel Amaro umas cervejinhas. Não saí, não estive com família.

Os teus restaurantes não se ressentem com a ausência?

Tenho a melhor equipa do mundo. Eu amo-os, é a minha família, caralho. O chef executivo, Vítor Adão, foi uma aquisição do caraças, um gajo trabalhador muita parecido comigo. Trabalha comigo há um ano e meio. Abriu comigo o Six Senses [Douro Valley], abriu comigo o  Sem Portas , na Comporta. Estamos aqui, vamos renovar o 100 Maneiras.

O novo Sem Portas tem alguma coisa a ver com o 100 Maneiras de Lisboa? 

Nada. Tem a ver com o Alentejo.

Estás cada vez mais ligado à natureza? 

Sou 100% animal. Cada vez estou mais animalesco. Pesca, caça, natureza, hortas. Planto hortas. Consegui no Douro, com grande apoio da Joana, que é uma bióloga do caraças, agora estou a fazer na Comporta o mesmo. Estou a fazer kimchis, comida fermentada debaixo do chão, a um metro e meio de profundidade. Hortas únicas no mundo, com três mil espécies – está a ser implantado hoje. Hortas biológicas lindas, com a Graça Saraiva, que é da Ervas Finas. Tornámo-nos companheiros de trabalho.

Um bocado na linha nórdica?

Sim, mas muito mais do que os nórdicos fazem. Estamos a falar de hortas a sério. Quero agora começar a ter animais.  

Normalmente quem tem muitos restaurantes, tem investimentos por trás. Mas tu tens tudo em nome próprio, certo?

Não quero ter mais restaurantes, não quero ter mais consultorias. Aquilo que tenho é aquilo que me faz feliz. E faço-o pelo prazer, não pelo dinheiro.

Gostas da parte de gestão? 

Odeio dinheiro. Mas recursos humanos, adoro. É fundamental. Tens de conhecer as pessoas, quando é que têm dor de cabeça, quando têm a menstruação, quando é que estão em baixo. Tens de apoiá-las. Quando tens crises financeiras, apoiá-los, ajudá-los. Estar com eles é fundamental. Se não, não tens equipa. E eu sozinho faço cachorros, hambúrgueres e pregos numa rulote, caralho. Sem esta equipa não consigo fazer nada.

Sobra-te tempo para criar?

Sim, estou a criar agora. Os sítios em que mais crio são Alentejo e Douro. O Douro é um centro de criação de receitas e ementas porque tenho tudo. Planto, invento, a Joana, o Nick [Nicholas Yarnall, director-geral do hotel, que convidou Ljubomir para o projecto], estão-me todos a ajudar. É uma coisa que floresce todos os dias.

O Douro tem essa capacidade?

Chego lá e desligo-me do mundo inteiro. Só estou ligado à comida. Acordo às sete da manhã, vou treinar o meu boxe, partir sacos.

O Sublime também nasceu de um convite? 

Está há dois meses em andamento, nunca publiquei ainda nada. É um projecto recente que está a andar. Apaixonante também. E duvido que haja melhor que isto. São sítios em que os directores e proprietários me entendem. Privilegiam uma coisa que é: quero ir à caça, quero plantar, quero pôr mãos na massa, quero estar na terra, quero ver o produto a crescer, quero criar a minha erva, quero desidratá-la, quero secá-la, quero fazer fogo, quero fazer fumeiro. 

Quando vieste pela primeira vez da tua viagem de caravana pela Europa vinhas maluco com o fumeiro e os fumos. É isso que estás a fazer agora?

Foi uma coisa que me influenciou muito e finalmente consegui pô-la em prática. Demorou alguns anos, nada é imediato. Ninguém é super-homem, nem eu sou. Foda-se. Tenho muitas falhas, humanas. Temos falhas, tantos erros cometidos na vida. Hoje sou um gajo de sucesso, mas já fali meio milhão de euros, caralho. Em Cascais. Já me fodi todo.

Também me lembro, nessa mesma altura, de teres aparecido de surpresa no restaurante porque a tua equipa estava à deriva. Não tens medo que, com tantos restaurantes, aconteça o mesmo? 

Na altura estava instalado o caos. Muita gente teve de sair. Não estava a correr bem, estavam a desleixar no trabalho - é normal. Quando um líder não está presente, as pessoas começam a desleixar. Mas agora não, porque estou muito presente. Posso passar cinco dias no Six Senses e os outros cinco na Comporta mas os outros 21 estou aqui. E tenho que estar. Não dá para me ausentar muito. Mas se me der na mona daqui a uns anos ir fazer a mesma coisa, a volta à América do Sul, vou fazê-lo, de caravana. 

Esse teu lado da natureza, que gostas e que estás a trabalhar mais, consegues ter alguma facilidade para pô-lo em prática em Lisboa? 

Não tenho, seria mentira dizer que sim. Tenho quando saio daqui, da ponte para fora, quando vou para o Alentejo. Em Lisboa é difícil. Primeiro porque não tenho hortas, não tenho capacidades, há muita toxina, dióxido de carbono e merdas que estão a sair dos carros. Se a Câmara de Lisboa me cedesse um terreno em Monsanto, eu amava. 

Mas há hortas urbanas.

Gostava de ter a minha, que me dessem para eu desenvolver. E o único sítio que vejo é Monsanto. É perto, é fácil, dá para ter uma horta organizada, bem feita.

Como é que vieste parar a Portugal?  

Foi um acaso. Tive de sair da Jugoslávia, estava farto, não estava a correr bem. E tinha cá uma irmã, a Natasa. Ela foi-se embora e eu fiquei. Já estou cá há 20 anos. Fascinei-me com Portugal. Saí muitas vezes daqui. Chateei-me. Fui viver para a China, África, Espanha, França. Várias vezes. Ia trabalhar fora, mas voltava sempre porque amava isto. Amo isto, isto é lindo. Portugal para mim é o sítio mais pequeno do mundo, que tem toda a diversidade do mundo. Tem das mais belas cidades, tem pessoas no interior que são o povo mais puro do mundo, caraças, tem uma pesca linda, uma natureza linda, tem neve, tem serra, tem produtos únicos, microclima lindo. Acho que a minha grande paixão veio pelas pessoas. Porque nunca me senti emigrante aqui.

Tiveste alguma barreira com o português? 

Não, aprendi rapidamente na cama com as mulheres. Não fui à escola, aprendi com namoradas que tinha. Tinha que me safar, falava mal inglês na altura.

E cozinha? Tu começaste numa padaria, não foi? 

Era puto, comecei com 14 anos. Estava a necessitar de sustentar a família. E comecei a trabalhar à noite na padaria e de dia ia para a escola. Dormia no autocarro, nas aulas. Não havia hipótese, não havia nada para comer, era fodido. Era uma vida complicada. Emigração dentro da guerra, és um refugiado.

Foi o primeiro contacto com a cozinha?

Não nasci para ser cozinheiro. Essas tretas que os cozinheiros contam todos, “andei a cozinhar com a minha avó e a minha tia e desde aí sinto a cena”; “vendi empadas na praia”. Isso são histórias para encher o cu de alguém. Uma pessoa sabe o que quer fazer da vida lá para os 18 anos. A cozinha bateu-me seriamente aos 18, 19 anos.

Tu não sendo português tens uma coisa muito típica dos portugueses que é o desenrascanço.

Vocês são um povo desenrascado e por isso é que me identifiquei tanto. Se não fosse desenrascado estava lixado. Não estava onde estou. Continuava a ser um emigrante a trabalhar nas obras. 

Estudaste cozinha cá? 

Nunca estudei cozinha, sou autodidacta, fui estagiar para os melhores sítios do mundo. Cozinhar com grandes cozinheiros, aprender com eles. Decidi dar o corpo às chibatadas. Estive um ano sem receber, a trabalhar de borla para aprender a cozinhar. Tirei alguns cursos importantes, entretanto, que hoje me ajudam, cursos de base. O maior curso que tirei? O curso da vida. Depois li muita coisa, acompanhei muitas formações da cozinha.

Curiosamente tens coisas parecidas com o Marco Pierre White [chef britânico, conhecido por ter devolvido as três estrelas Michelin que ganhou, por ser um apaixonado pela natureza e por ter aprendido a trabalhar em grandes cozinhas].

Há um gajo que diz que sou a cara chapada dele, que é o Henrique Sá Pessoa. Que nunca viu uma pessoa tão parecida, que parecemos gémeos. Um enfant terrible. Respeito-o muito, adoro a política de vida dele. Acho que é muito exigente com ele próprio, que se retirou quando lhe apeteceu da cozinha. Fez aquilo que conseguia. Se o guia Michelin tivesse dez estrelas acho que ele não parava até atingir a décima. Como conseguiu atingir o objectivo aos 30 e poucos anos, cagou na cena. Curiosamente, o primeiro dia em que ele entrou na cozinha foi o dia em que eu nasci, em 1978.  

Tens aquela ambição das estrelas Michelin?

Não te digo que tenho ou não tenho. Acho que é uma cenoura para os burros. Nada a favor, nada contra. Adoro ir a restaurantes com estrela Michelin. Mas no meu negócio, como sou eu o dono, como sou eu que o pago, faz-me confusão. Já trabalhei em Cascais para ganhar uma estrela Michelin, dediquei-me a isso cinco anos e fui à falência. E a partir daí decidi criar negócios que dão felicidade às pessoas. Ponto final. Não penso nisso, sinceramente. Tu não trabalhas para a estrela, trabalhas para o teu cliente, para lhe dar prazer. Quem paga contas é o cliente, caralho. Se a estrela vier ou não vier é uma coisa que tem de acontecer sozinha. Estou-me a arrepiar a dizer-te esta merda. Se for natural, é óptimo. Se é o objectivo da vida, fuck off. A minha cena é ir ao mato, sacar a caçadeira, dar tiros nos animais, dar-lhes uma morte digna, depená-los, os pombos, etc. Cuidá-los, dar-lhes beijinhos, desossá-los. Cuidar da anatomia deles. Ir à pesca, sacar o meu peixinho, sentir a vida, acolhê-la. Aquela adrenalina que está na cana. Foda-se, é tão boa. Adoro a Ilha do Farol por causa disso. Estou ali a ter uma luta com o animal, a cuidar dele. Isto vale mais do que dez estrelas Michelin.

Já pescavas e caçavas em miúdo? 

A primeira vez que tive contacto com a pesca foi com o meu pai. Nunca tive uma boa relação com ele - hoje em dia gosto dele, já morreu. Foi a primeira pessoa que me meteu uma cana na mão, acho que tinha cinco, seis anos. Tal como meti aos meus filhos. Os dois já pescam. Adoro a pesca porque é uma adrenalina única. Também mergulho. Faço-o constantemente, com o Alfredo [um dos directores] da Tunipex que é um grande homem, que me deixa mergulhar dentro de água, com milhares de atuns. [Pausa par mostrar uma série de vídeos no fundo do mar, entre Tavira e Espanha.] O Alfredo atira-me cavalas para cima e os atuns vêm comer em cima de mim. Abro os braços e amo esta merda. Que se lixem as estrelas Michelin. Mil vezes isto.

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Se tivesses de escolher a melhor coisa que este país te deu, o que escolherias?

A paz.

Vieste de uma zona de guerra.

Foda-se, vim cheio de traumas. Deu-me paz, amor, natureza, calma, lado humano. Recebeu-me bem. Portugal é riquíssimo. Até aos 12 anos tive um cenário de vida normal. Dos 12 aos 18 não tive vida. As pessoas andavam de bicicleta, jogavam futebol, brincavam ao hula hoop.... a minha vida não foi essa. Foi dura. Foi mais saberes como esconder-te, como dar tiros, como aprender a desmontar armas. Uma infância de merda. Mas também não interessa muito, hoje estou bué da feliz. Ensinou-me tudo aquilo que sei hoje e como sou: estar à vontade a dizer “pró caralho” a quem eu quero.

Já voltaste à Jugoslávia? 

Já. Não gosto. Por causa das memórias todas que tenho na cabeça. A última vez que estive lá com a minha mãe quis levá-la a Sarajevo. A primeira vez depois de 20 anos. Teve um ataque cardíaco. Não gosto daquilo.

Falámos da história da carochinha, de aprender a cozinhar com a mãe. Mas há coisas que vieram da tua mãe? 

Aprendi muito. A minha mãe é uma grande cozinheira e a minha irmã é uma grande doceira. Faz doces melhor do que qualquer pasteleiro que conheço. Mas o que ela me ensinou não foi a cozinhar e a vender empadas nas praias, foi a comer bem. Que é fundamental. E não consegues ser bom cozinheiro sem saberes comer. Tens que ver e comer. O palato é educado, não nasces com palato. Vais é educá-lo. 

Qual é a tua refeição ideal? 

Há 1001 refeições que gosto de comer. Mas o que mais gosto provavelmente são entranhas: fígados, corações, rins, merdas dessas. Adoro molejas, mioleiras. Comida excitante. Depois, uma refeição no mar. Não é de certeza absoluta num restaurante todo pipi. Adoro ir, sou grande cliente. Acabei de vir da Escandinávia, estive em 14 estrelas Michelin em nove dias, foi maravilhoso. Mas nada me vai saber tão bem como amanhã chegar à Ilha no Farol, atirar a cana de pesca e sacar uma anchova de quatro quilos, cinco quilos, ou uma corvina de dez, doze quilos, metê-la em cima da grelha e estar uhhh. Os pescadores vêm ter comigo, vamos comer juntos, eles trazem as coisas deles, amêijoas e o caralho, cozinhamos juntos. Isso é que é pureza. É o que é Papa-Quilómetros, aquilo que eu sou. Comecei a descobrir este país e apaixonei-me por ele por causa disso, através da cozinha. Cozinhar com velhos, aldeias, etc. E não é agora porque está na moda... há 20 anos que faço esta merda.

A diferença é que agora há televisões atrás e redes sociais? 

Toda a gente agora gosta de mostrar que está a fazer isso. Que eu acho óptimo, porque assim é que se aprende a cozinhar, é no mato e com as pessoas. Mas isso é que me dá gozo. Trazer produtos e merdas, descobrir uma aldeia. Palaçoulo [Miranda do Douro], onde estão a fazer facas para mim. Está toda a aldeia a trabalhar para mim, caralho. Estamos a falar de gente que faz navalhas à mão há 200 anos, para os pastores. Prefiro ajudá-los. 

Como é que entraste no mundo das facas? 

Desde sempre. Desenhei facas para a ICEL, para o IVO, as duas grandes marcas. Com a Vista Alegre desenhei pratos. Adoro essas coisas. Faço esculturas desde sempre. Tenho jeito com madeiras, com pedras.

És um handyman? 

Adoro trabalho com mãos. Dá-me gozo. Estou a fazer as minhas facas, uma marca Ljubomir, de navalhas. O Senhor António das navalhas ajudou-me muito nisto, a descobrir as pessoas, a encontrar. É uma aldeia toda que só faz navalhas à mão.  

Descobriste como? 

Com muita pesquisa, muita história, muitos pastores. Perguntando aos pastores onde é que arranjavam as facas. Depois encontrei um homem que se chama António, da navalhas.pt, que representa estes velhos todos da aldeia do Palaçoulo. Ele entrou comigo na aldeia e ensinou-me muitas coisas sobre aquelas pessoas. E eu ensinei-lhe como escolher o metal... Não são só facas. Produzo sal também. Tenho uma produção minha em Rio Maior, a Sal de Gema. 

Aqui em Lisboa tens um restaurante mais sério, o 100 Maneiras... [Ljubomir interrompe]

Sim, menu de degustação, um restaurante muito sério.... Descontraído, foda-se.

Quando eu digo sério, não é sério de chato. É sério do preço e da degustação.  

Isso sim. Mas estou cansado desse restaurante, vou mudá-lo. Estamos a fazer obras. Está velho, as cadeiras já são desconfortáveis. Vais a qualquer restaurante, do Henrique [Sá Pessoa], Loco, seja de quem for, cadeiras óptimas, custam 300€. Tenho lá cadeiras de 15€. Foi quando estava em crise. Abri aquele restaurante com esse conceito. Deu um sucesso do caralho, sorte a minha. Mas não é o restaurante que me representa actualmente. Estava há três anos à espera de licença para conseguir abri-lo.  

Quando abre? Vai ter o mesmo nome?

Dentro de dois meses. Sim, 100 Maneiras na mesma. Não muda nada. Sou eu, é a mesma coisa, mas com mais maturidade. Mais... mais dinheiro. Melhores cadeiras. Já consigo ter luzes – está aqui o senhor das luzes.  

Vai deixar de ter menus de degustação? 

Vai ter degustações, vai ter também pratos à carta, vai ter degustações para vegetarianos, que é uma cozinha que a mim me fascina.

Voltando à pergunta. Tens o Bistro, com muita onda. Como consegues?

Já se tornou um clássico. É vires comer bem, passares bem, beberes bué da bem, curtires música alta, boa gente. É um restaurante confortável, sem pretensiosismo nenhum. Ponho na ementa mioleiras, fígados, colhões de boi. Estou à vontade. Está sempre cheio, todos os dias. As pessoas dizem que o programa trouxe mais gente. Não, a gente não conseguia sentá-los há três anos ou quatro, quanto mais agora. 

E depois tens o Douro, que é?  

Saúde, saúde, saúde. Por isso é que me excita tanto. Adoro cozinha vegetariana. Adoro. Vou abrir mais dois restaurantes este mês, um deles vai ser um barbecue e outro um vegetariano. Quero abrir o melhor restaurante vegetariano da Europa.

Tu começaste sozinho. Nunca tiveste investidor? 

Nunca tive um dono, nunca tive, nem nunca vou ter. Nem quero. Prefiro trabalhar com os meus amigos. Prefiro ajudar o meu chef Vítor Adão e dar lhe uma parte da sociedade, ou a Natasa e dar-lhe sociedade, e pôr a corda ao pescoço num banco, a ter um gajo que tem 130 restaurantes e me quer apoiar para ter mais alguns com ele. O gajo está-me a ir ao cu e eu estou parvo? Não, não papo esses grupos. Prefiro ter dois restaurantes meus, pagá-los e convidar pessoas amigas para serem sócios. São aquelas que dão sangue por mim. É a minha política, a política de Leste. 

Normalmente é o oposto, as pessoas preferem não trabalhar com os amigos. 

Sou o oposto disso. Sou contra isso. Prefiro correr todos os riscos, dar sociedades ao meu staff e apoiá-los. Que se foda, amigos são amigos, e são para a vida. Se forem bons amigos o negócio vai resultar; se forem falsos amigos vai tudo à merda. 

 Já apanhaste desilusões? 

Já, claro que sim. Já tive montes de sociedades. Algumas não correram bem. Mas as que correram bem são as melhores do mundo. Estão cá o Nuno [Faria] e o Nelson [Filipe] há 10 anos para provar. 

O pão agora está na moda. Tu tiveste uma padaria há uns anos, mas fechaste-a. Achas que foi antes do tempo? 

Não. Eu tinha e tenho uma padaria. Mas produzo só para o restaurante. Abri uma padaria e fechei-a. Aquilo estava a dar dinheiro, à volta de 8 mil euros de lucro por mês, o que é óptimo para uma coisa pequenina aqui em baixo. E decidi fechar, fazer pão para os meus próprios restaurantes porque os bancos de fome em Portugal não trabalham depois da meia-noite, não vão buscar a comida. A padaria estava aberta até às duas da manhã, tinha caixas e caixas de pão, não dava para fazer migas no restaurante todos os dias. Queria dar às pessoas para comer. E como os bancos não vêm a essa hora... Não é problema deles. Mas como passei muita fome na guerra da Jugoslávia, uma caixa daquele pão tinha alimentado 100 pessoas. Fez-me muita confusão. Não perdias o dinheiro, tinhas perda de comida, um desperdício do caraças que não conseguias dar a ninguém. Tinha de ir para o lixo. E sou contra isso. Há milhares de padarias que deitam pão para o lixo. Eu não tenho essa política de vida e nunca vou ter. O Hugo Nascimento [da Tasca da Esquina] dizia no outro dia: “Sabes que és óptimo a gerir influências? Abriste a padaria, cagaste nela, está toda a gente a querer abrir padarias, abriste o Bistro, es toda a gente a tentar seguir isso, a abrir restaurantes com onda, foste o primeiro gajo deste país a abrir um restaurante só com um menu de degustação, ninguém o tinha.” 

Olha, nunca tinha feito essa junção. 

Eu ri-me. Porque é um grande amigo meu, que gosta muito de mim. Ideias é que não me faltam: eu estou-me a sentar na sanita... há pessoas que têm que ir ler receitas dos outros, baseiam-se em receitas, vão ao Instagram e internet, merda que não tenho, não uso. Sento-me na sanita, vou à procura de uma caneta e tenho ideias para comida. Estou a criar receitas. 

Mas também lês muito [prepara-se para fazer uma biblioteca de gastronomia no Bistro 100 Maneiras].

Muito, acho que tenho uma das maiores bibliotecas privadas de gastronomia do país. Leio muito, mando todos os meses vir livros.  

Alguém te influenciou na cozinha? 

Ninguém. Quem me influenciou foi o meu palato, a minha cabecinha. Influencia-me mais ir em frente do mar apanhar merdas do que qualquer livro de cozinha. O bom de ler é que aprendes. Os livros servem muito para aprender técnicas de cozinha, mas o que faz de nós cozinheiros é uma colher, não é um livro. Se não pusermos a colher na boca nunca vamos ser bons cozinheiros. Quanto mais provas, melhor cozinhas, quanto mais comes, melhor cozinhas, quanto mais lês, mais técnicas aprendes. 

O mundo de Ljubomir

  • Chiado
  • 4/5 estrelas
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O nome é mesmo bistro (e não bistrô), que em sérvio significa “limpo”. E limpa, isto é, sem manhas, é a cozinha de Ljubomir Stanisic naquele que é um dos restaurantes mais trendy de Lisboa. Quer se fale do menu para corajosos, com moelas e entranhas, quer se fale de outros pratos que misturam a Europa à mesa.

José Avillez, Henrique Sá Pessoa, Alexandre Silva, Sergi Arola e Miguel Rocha Vieira são alguns dos chefs-super-estrela à frente destes restaurantes de cozinha de autor em Lisboa. Estendam a passadeira vermelha, que os pratos que aqui desfilam são de assinatura e dignos de paparazzi. 

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