Rui Silvestre é o escolhido para substituir Martín Berasategui e Filipe Carvalho no Fifty Seconds. “É um desafio com 120 metros de altura.” Em entrevista à Time Out, garante contudo que “não é questão para ter medo”.
Foi um dos grandes e justos vencedores na primeira gala do Guia Michelin Portugal e no discurso de agradecimento João Sá acabou a resumir na perfeição o Sála, que mantém há cinco anos na Rua dos Bacalhoeiros: “É um restaurante independente, pequenino, mas ambicioso”. Discreto, não esconde que muitas vezes acabou a ser referido apenas como o marido da chef Marlene Vieira, quando já seguia seguro no seu caminho. Não gosta de dar nas vistas, mas não quer isso dizer que não seja um dos melhores da sua geração, com uma cozinha distinta que se faz de misturas. Uma viagem gastronómica que começa em Lisboa e que se estende a outras latitudes, da Índia a África. Há muamba, moqueca, caril, tom yum, mas também caldeirada ou coentrada. Em dois menus (110€ e 140€), a carne existe apenas como um apontamento e nunca como um prato – ao almoço de sexta e sábado, há ainda um menu curto por 50€. Ao fim deste tempo todo, João Sá só se surpreende por tão poucos portugueses conhecerem o restaurante, mas até nesse ponto diz-se resolvido. A rua onde mora, epicentro turístico, onde se multiplicam armadilhas para turistas, pode não ajudar, embora isso também acabe a dar alguma graça ao projecto. De tal forma, que o chef vê o Sála a sair dali para poder crescer, mas nunca para longe.
Como tem sido este mês pós-Michelin?
Já passou um mês?
Quase.
Nem me apercebi. Confesso que agora, que a loucura passou, começa a bater o cansaço. Preciso de férias.
Estás na ressaca?
Um bocadinho. É uma loucura, tens aquelas semanas em que toda a gente telefona e as coisas correm, vêm aqueles clientes habituais dar os parabéns, a equipa também está toda meia nas nuvens, estamos todos… Agora é preciso respirar fundo, sossegar. Também foi um início de ano complicado.
De que forma?
Um mês antes da gala, estávamos todos a receber convites, ninguém sabia o que ia acontecer, estávamos stressados. Eu, a Marlene… Não sabíamos se eu ia ganhar, se ela ia ganhar... Foi intenso.
Isso prova que há sempre uma pressão à volta das estrelas por muito que se diga que não existe.
No dia da Gala, quando saí do palco, a primeira pergunta que fiz foi: e agora? Tu deparas-te com essa questão. É inevitável. Na sala de imprensa, a resposta que eu dei foi: agora, se eu não mudar nada, está tudo bem.
Ou seja, se ganhaste é porque está tudo bem?
Eu queria era explicar-me a mim mesmo. Eu tive de dizer em voz alta: não mudes nada, vai com calma. É o exercício que eu tenho tentado fazer. Se realmente até agora funcionou, então não tenho de mudar drasticamente.
Mas obrigatoriamente há coisas que mudam, ou não?
Tens uma equipa mais bem disposta, com outra vontade, com mais pica porque estão contentes. Mas sabes o que é giro? Não é aquele contente de somos os maiores, é aquele contente de conseguimos, chegámos aqui. Ao mesmo tempo, foi bom tê-los mantido sãos. Eu tinha mais ou menos uma noção, mas queria protegê-los. Se não desse em nada, quem sofria era só eu. Naquela noite, eles nem festejaram [risos]. Um cliente é que me mandou uma mensagem a dizer que estava no Sála e que eles não fizeram nada. Como assim não fizeram nada? Quando fui lá fora, telefonei-lhes e eles: ó chef, estamos aqui só a mandar uma mesa. Qual mandar mesa, parte essa merda toda [risos].
Não queriam falhar nem nesse dia?
Qual não querer falhar [risos]. Agora, a pressão somos sempre nós que a metemos a nós mesmos e não tem a ver com ganhar uma estrela ou não. Tal como um restaurante não fica bom de um dia para o outro porque vem um inspector. Se as coisas estiverem cimentadas e bem feitas também não ficam mal de um dia para o outro. Eu parto desse princípio. Tu não viras de bestial a besta e de besta a bestial num jantar. Pode uma coisa falhar ou outra, mas também de repente não acho que seja isso que te tira a estrela ou que te dá a estrela. É uma questão de equilíbrio. Eles vão falhar, são pessoas. E eu vou falhar, sou pessoa. A obsessão pela perfeição torna-se muitas vezes contraproducente.
Já viveste nessa obsessão?
Antes de conseguir perceber o que queria fazer, ou melhor, o que não queria fazer, eventualmente vivia. Mas era comigo, não era com os outros. Acho que o problema é um bocado esse e isso foram seis anos de trabalho com a psicóloga. A primeira pessoa a quem eu mandei mensagem, quando ainda estava na Gala, foi à minha psicóloga.
A sanidade mantém-se fora da cozinha?
[João Sá pega no telefone e lê] Terça, dia 27, às 21.16: ‘Sei que na psicologia não se ganham estrelas, mas esta que eu hoje recebi também é sua um pouco, não posso deixar de lhe dizer’. E é verdade.
Em que momento sentiste que tinhas de ir à psicóloga? Pergunto-te porque há um certo tabu nesse tema.
Qualquer pessoa que gere uma equipa ou que tenha um cargo de responsabilidade, devia ir a um psicólogo. Para se conhecer bem a si, para saber quais são os seus limites, quais são as suas capacidades, os seus defeitos, feitios. Quando a minha filha nasce, tinha eu 29 anos, apercebi-me que se calhar não me conhecia como devia para poder ser a melhor pessoa para ela e melhor profissional. Qualquer pessoa em cargo de chefia devia ter uma pessoa com quem falar e isso não custa nada. Ou custa, o preço da consulta.
Quando ganhaste a estrela falaste de um restaurante pequeno, independente, mas ambicioso. O facto de ser um restaurante pequeno e independente tornou o caminho mais difícil?
Depende do ponto de vista. Não ter estado no barulho das luzes, não ter estado com os focos apontados, e ter estado no nosso caminho, descontraídos e felizes, não impôs pressão. Não nos obrigou a ser uma coisa que não queríamos ser. Nós fomos aquilo que quisemos ser no nosso caminho. Se vires por esse prisma, foi bom ser independente.
Deu-te mais liberdade?
Sim. Eu diria que podes fazer outros caminhos e há outras maneiras de fazer os processos. Nós temos chefs que ganharam de outras maneiras e têm outros caminhos. Nenhum está mais certo ou errado. Eu acho que ajudou ter um projecto próprio, ter que pagar contas... É difícil. Esta semana, por exemplo, mandei vir um blender novo porque na cozinha andam a fazer fila para triturar ingredientes. No dia em que o blender chegou, avariou-se o aspirador. Eventualmente, se eu fosse um consultor, se eu fosse outra pessoa, isto passava-me completamente ao lado. Na semana antes da Gala Michelin, eu andava ali a arranjar a sanita que estava a deitar água por fora. É por isso que me deu um gozo muito especial, saiu do osso.
Foi sofrido?
Não, foi lutado. Sofrer é [quando] estás a fazer uma coisa muito difícil, que não queres fazer e que não te dá prazer. Quando estás a lutar por atingir um objectivo, lutas com prazer. Quem corre por gosto, não cansa. Não acho que tenha sido sofrido. Portanto, quando chegas ao fim tens outro gozo. Saiu mesmo de ti, não há hipótese.
Ser empresário faz de ti melhor chef porque tens uma noção diferente do negócio?
A dificuldade aqui foi conseguir delegar e meter uma equipa a fazer aquilo que queres que faça sem a necessidade da tua presença extrema. Ser empresário ajudou-me a ser chef de cozinha, não sei se necessariamente ser chef de cozinha ajudou a ser melhor empresário porque são mundos completamente opostos. Eu acho é que há outro nível de responsabilidade. Começas a ter cuidado com o papel, começas a ter cuidado com o plástico, começas a ter cuidado com o desperdício, começas a ter cuidado com a quantidade de comida que pões no prato... A coisa que mais me irrita, e eles sabem, é quando não há cuidado com o restaurante. E o cuidado pode ser deixarem cair uma coisa e não quererem saber. Ou toda a gente vê um papel no chão e ninguém apanhou. Ou pega-se num pedaço de peixe e deita-se fora e não se faz comida para o pessoal. Isso irrita-me mais do que cozerem o peixe demais ou salgarem um prato. É cuidado. Se calhar aí é importante o lado que o empresário deu ao cozinheiro: mostrar o cuidado, ter carinho com as coisas, não estragar, ter atenção. Esse cuidado também se reflecte no cliente. Eu fico passado quando estragam coisas.
Já chegámos a falar como teres passado para a sala te fez perceber as dores desse serviço. Dispores-te a isso faz do restaurante melhor?
Não sei se isso faz de nós melhores ou piores, faz de nós diferentes porque o cuidado tem outro cuidado. Ainda ontem estive aqui a polir talheres à noite. Amanhã de manhã, se calhar, vou ter de polir talheres e copos, no dia a seguir vou ter de servir vinho, como no dia a seguir vou ter de estar na cozinha, como estava agora. O saber não ocupa lugar. Não me faz pior, nem melhor. Em 2020 fiz de sommelier a torto e a direito. Os clientes perguntavam quem era o chef e eu dizia: já vos conto. Antes de irem embora, dizia que era eu. Mas estás a servir vinho? Parece que quase menosprezas porque não estás a fazer a tua posição e os clientes depois dizem: uau, que espectáculo, nunca vi um chef de cozinha a servir vinhos.
Mas isso surge sempre de uma dificuldade?
Foi necessidade. A questão é que eu sei fazer o serviço de vinhos. Também podia não saber, mas eu costumo dizer que se me dessem um avião para pilotar eu arranjava maneira de o meter no ar. Sou um bocadinho assim. É para fazer? Bora. O serviço de vinhos foi um bocadinho isso. Eu adoro vinho, é a minha segunda paixão e a carta tem muito a minha mão. São produtores que eu conheço, pessoas que eu gosto, não me custa falar sobre elas, nem me custa falar sobre vinho. Se tenho que fazer, tenho que fazer. Confesso que depois de 2021/22, disse que também já chegava. Tínhamos que pôr pessoas. A verdade é que fomos aumentando a brigada ao longo do ano de 2022 e por isso é que eu dizia que, se não fosse em 2023, eu não sabia mais o que é que o Sála podia fazer. Chegámos a um ponto em que o Sála atingiu o limite do que poderia ser. Tínhamos tudo. Se não ganhássemos este ano uma estrela, esquece. Desistíamos. Não desistíamos, mas não fazia sentido fazer mais, não dava para fazer mais.
Não saberias o caminho?
Não sabia o que havia para fazer. Na minha cabeça, só faltava o sítio.
Pois, tu achavas que este sítio podia ser um entrave…
Sim, porque de resto foi um ano que correu bem, trabalhámos bem, a equipa estava motivada. Lá está, tínhamos aumentado a equipa, estava tudo alinhadinho, tudo porreiro, tudo com uma grande onda. Foi um ano muito bom. Se não fosse este ano também não sei mais o que poderia fazer. Felizmente, tinha o restaurante cheio, não carecia de uma necessidade de ter negócio como se calhar às vezes estamos à espera que aconteça. Vou fazer mais o quê? Tens uma equipa todos os dias a batalhar…
É difícil manter a equipa sempre motivada?
Hoje em dia, há aquele chavão de que os chefs é que têm que motivar os jovens. Com limites. Nós temos que cuidar deles, olhar para eles não só do lado profissional, mas do lado humano. Não estamos todos os dias bem e eles também não estão todos os dias bem. Também falham, têm problemas. É só olhar para eles com esse carinho, mas motivação mesmo motivação, a única em que posso ajudar é a financeira, que tem um limite do que é ser viável. O resto têm de ser eles a procurar e no dia em que não se sentirem bem, sou o primeiro a dizer: bora, queres ir para onde? Eu costumo dizer, tenho dez anos de contrato, faltam-me cinco. A única coisa que eu sei é que vou ficar cá.
Falas do contrato de arrendamento do espaço. Vês o Sála a crescer para outro sítio?
Já tínhamos a ideia de crescer o Sála. No ano passado, já queria tirá-lo daqui. Acho que fisicamente o espaço tem muitos limites. A cozinha é pequena. Por exemplo, não temos quase congelador, temos muita dificuldade a nível logístico de os cozinheiros passarem entre si. Estamos sempre a bater uns nos outros. Funciona, mas tem as suas dificuldades. A sala também precisa de espaço para trabalhar um bocadinho mais. Gostava de ter mais cave de vinhos.
No fundo, tens um limite de crescimento aqui.
Há um limite. A equipa que tenho neste momento, eventualmente, conseguiria dar 30 refeições. Neste momento, fica limitada às 24/26. Sentes sempre que perdes quatro a seis pessoas todos os dias sem necessidade. Não é que eu quisesse mais do que 30. Eu não quero mais.
Mas é dinheiro que estás a perder...
E com a equipa que tens precisas. Mas se tirares pessoas à equipa já não dá. Então, ficas num ponto em que estás em cima do muro. Damos muitas vezes 30, mas temos que rodar mesas e a coisinha tem de bater toda certa. Tens de ter mesas a chegar às 18.30 para saírem às 21.30. Tem que bater muito, muito certo e há noites em que não bate. Isso introduz um nível de stress à equipa. Na copa, temos um mágico. A verdade é que já queria tirar o Sála daqui e continuo a querer. Mas não queria sair desta zona da cidade. Não quero sair daqui. Eu gosto desta rua meio doida.
Gostas desta rua, mas também achavas que ela podia ser um impedimento à estrela.
Se o restaurante fosse um bocadinho maior e não transitasses logo da rua para dentro da sala, se houvesse uma zona de transição, se houvesse aqui um momento de meia pausa, mas não há. Ao mesmo tempo, é um preconceito. Nós acharmos que uma estrela Michelin tem que ser ao contrário, mas se pensarmos no Rodrigo Castelo [Ó Balcão], no Sála... Em Espanha, no Tohqa do Edu Perez, no Bagá em Jaén, entras logo. Eu acho que o Guia se calhar também já está a perder alguns dogmas e a ganhar outras ideias. Mas eu queria um bocadinho mais de conforto para os clientes e para a nossa equipa. Queria aumentar a carta de vinhos, até queria fazer mais em termos de cozinha, mas fisicamente não é possível. Não dá e já sofri. Saem 300 pratos daquela cozinha por noite. Com o pão, os snacks, se pensares em 26 pessoas saem 200 e tal pratos. É puxadote e eu queria ter uma coisa que fosse mais calma para toda a gente.
Nesta zona, os teus clientes são maioritariamente estrangeiros?
90%.
Pela zona? Que leitura é que fazes?
Agora começam a aparecer muitos clientes que nunca ouviram falar de nós. Até temos um rácio um bocadinho maior que os 90%, diria 95% [risos]. Chegou ao ponto, no ano passado, de eu deixar em standby uma mesa de dois para sexta e uma mesa de dois para sábado caso telefonassem portugueses ou se me telefonasse algum amigo porque estávamos cheios.
Mas isso deixa-te frustrado de alguma forma?
Deixou muito, mas cheguei a um ponto em que decidi que não posso mais olhar para isto.
Porque não depende ti?
Eu não controlo. Tenho um restaurante aberto, as pessoas reservam com um mês de antecedência, vou fazer o quê se o português não reserva? No dia em que eu decidi não pensar mais nisto foi quando tivemos uma mesa de quatro, dois casais, um casal do Rio e um casal de portugueses. O casal do Rio era a terceira vez que vinha cá e tinha trazido os portugueses. Os portugueses nunca tinham ouvido falar de nós. Como é que é possível vir um gajo do outro lado do oceano, que quando vem a Portugal vem aqui, e estes gajos não ouviram falar de nós? Se calhar fizemos má comunicação [risos]. Chegas a um ponto em que não faz sentido. Se eles vêm sugeridos por outras pessoas que conhecem, eu vou teorizar sobre o quê? A verdade é que eu estou cá, está tudo bem. Agora, têm aparecido mais portugueses, um bocadinho perdidos. Eu acho que os portugueses não têm ainda noção do que é esta zona, há muitos clientes que nem sequer sabem que há um parque de estacionamento a dois minutos a pé. Por outro lado, acho que também me mantive sempre aqui low profile.
Ia perguntar-te isso. Até que ponto o facto de estares aqui mais na tua e não te expores não faz com que as pessoas também não te conheçam?
Eu não sou muito de dar nas vistas. Não sou espalhafatoso, não vou ser. Agora, fico triste por pensar que vivo numa sociedade em que se não for espalhafatoso e se não disser merda da boca para fora – às vezes, há muita gente que só diz merda da boca para fora – parece que não estou a fazer nada. Por isso é que para mim [receber a estrela] teve um gostinho especial. Eu estive na minha a fazer o meu trabalho, não tive que espalhar brasas para as pessoas olharem para mim. Quem olhou para mim foram os clientes. Muitas vezes temos clientes que passam, olham para a cozinha, ficam a ver-nos trabalhar e depois reservam mesa. E depois chegas a um ponto em que, ao fim de quatro anos, é quase orgânico. E a ideia de que os turistas não falam uns com os outros não existe. As pessoas falam quando gostam, vão para casa, recomendam. Temos clientes de Nova Iorque que chegam recomendados. No outro dia, tivemos um cliente de Kuala Lumpur que também veio sugerido. Alemães, austríacos, italianos, franceses, espanhóis, vêm sugeridos. Por quê? Porque quando chegam cá, são bem tratados, a comida é boa, o preço não é exageradamente caro, não se sentem roubados, sentem que está tudo de acordo com aquilo que é e depois voltam. Isso eu aprendi um bocadinho com a Marlene no Mercado da Ribeira. Se fizeres bem feito durante muito tempo chegas a um ponto em que vais receber porque vai ser orgânico. Começa por cinco, dez, 15, 20, 30, 100, 200, 300, 600, 1000, 1500, 2000, 3000 pessoas a falar bem de ti. Ao início demora, mas o gráfico chega a um ponto em que dispara. Também lá está, é olhar para dentro. Cheguei a um ponto em que deixei de olhar para fora e comecei a olhar da porta para dentro.
Até porque às tantas é uma distracção?
Aí foi com a psicóloga. Olha para dentro. Vê qual é a música que queres ter no restaurante, vê o tipo de serviço que queres ter, vê os copos que queres ter, vê os vinhos que queres ter, vê a comida que queres fazer. Foi quando começámos a introduzir a muamba, a moqueca...
Dirias que o Sála está hoje mais definido, mais próximo do que tu és?
Da última vez disse que o Sála estava melhor do que nunca. Acho que o Sála, hoje em dia, é um bocado mais a minha imagem.
E que imagem é essa?
A imagem de um gajo muito avariado da cabeça [risos].
Avariado da cabeça, mas aparentemente discreto.
É isso um bocadinho. É um sítio super discreto onde tu entras e sentes que estás em casa, mas depois ficas assim meio doido de perceber... No outro dia, tinha uns clientes a rirem-se porque estava a tocar "Na minha cama com ela" pelo Deixem o Pimba Em Paz. E eu disse: é ou não é giro? E eles: brutal. Sabes o que é giro? O resto das mesas não entendem. Mas não estamos a gozar com eles, nós é que nos estamos a divertir. Ao mesmo tempo, passa Bonga, passa Crioulo…
A tua cozinha é isso. Há a influência de Angola, do Brasil, de Lisboa...
Tem uma linguagem muito própria e isso também era uma das coisas que fazia mais sentido para mim e da mais difíceis de encontrar. Eu queria que quando entrasses aqui, tudo fizesse sentido. Tem muita coisa de outras latitudes, tem o Brasil, tem África, tem Índia, acho que também tem umas coisas da Ásia. São coisas que eu gosto, que procuro, que faço em casa. Aliás, a Marlene está sempre a criticar: ‘Se vais mandar vir comida, já sei que vais pedir qualquer coisa asiática, manda vir qualquer coisa portuguesa’. Isto é a conversa às vezes lá em casa. Eu gosto de experimentar. Acho que quando entras aqui percebes logo quem é que eu sou. Agora, tive de ter disponibilidade para mostrar quem é que eu sou. Essa é a maior dificuldade num tipo que é introvertido, mais low profile, conseguir ter a vontade de se mostrar mais destiladinho. Ao mesmo tempo, o que comes aqui não comes em lado nenhum, é extremamente português, lisboeta até, mas poderia ser feito em qualquer parte do mundo. Mas Lisboa também é isso, uma cidade misturada e o Sála é isso. Como se explica isto? Até hoje tento ir decifrando. Estás num restaurante de um gajo que tem origens noutro sítio, que gosta de música, que gosta de ser divertido, que recebe bem, que gosta de falar para caraças, mas low-profile, entra assim de fininho e tu às vezes não te apercebes.
Falaste na Marlene. Sendo tão distintos na cozinha, como é que se influenciam? Ou não há sequer essa influência?
Ao fim de tantos anos, tentamos... Por exemplo, se for ao Zunzum ou ao Marlene, e se vir uma coisa com a qual não concorde no momento, não falo. Atrás, se for preciso, falo com ela e digo: atenção, que aconteceu isto. Agora, eu nunca posso interferir, o restaurante é da Marlene e o meu é o meu.
E por isso é que cada um tem uma identidade.
Exacto. Qual é o limite da barreira? Não sabemos, vamos descobrindo. Às vezes, passamos. Outras vezes, não. É importante perceber de facto quando podes estar a influenciar demasiado o outro, isso não faz sentido. Ela não pode chegar aqui a querer mudar porque passa a ser dela e eu não posso entrar lá a querer mudar. Nós somos muito ligeiros naquilo que dizemos. ‘Eu acho que isto se calhar devia ter qualquer coisa, ou não sei se aquele prato é o mais bem conseguido’. É difícil porque nós somos os maiores críticos um do outro e também não gostamos de ouvir a crítica um do outro. Imagina, é o caos.
Como qualquer casal [risos].
Eu acho que tem a ver um bocadinho com isso. É não passar os limites e dizer as coisas.
Mas têm processos criativos distintos?
Sim. Não trabalhamos juntos. Nada, nada, nada. Muitas vezes é mais fácil ela vir cá comer e eu ir lá comer do que falarmos sobre pratos em conjunto. Às vezes, se for preciso, coisas como o início do Mercado da Ribeira, onde, por exemplo, estávamos os dois, falávamos um bocadinho, mas eu sempre achei que não podíamos passar o limite um do outro, senão começas a confundir casamento com empresa. Há linhas vermelhas que não se podem passar porque gostamos os dois muito do nosso trabalho, dos nossos projectos, são muito próprios, são muito a nossa imagem e não queremos que ninguém mexa. Há limites que aprendemos que não podemos passar. E é meu também.
Sim, a empresa é dos dois.
Às vezes, há clientes que dizem, ai eu gosto mais do Marlene. Outros, dizem o contrário. E eu digo-lhes: não há problema que a conta bancária é a mesma [risos]. Venham aqui ou lá, ninguém se chateia, mas tentamos afastar os processos criativos.
Mas depois quando um ganha a estrela e outro não, como ficam?
A seguir à Marlene, não havia pessoa que quisesse mais do que eu que subíssemos os dois ao palco. Infelizmente, não se proporcionou e agora não vale a pena voltar atrás, a história não muda. A única coisa que eu lhe consigo dizer é: olha para dentro. A pressão só a sentes se olhares para fora porque se estiveres a olhar para dentro não sentes. Eu não tenho fórmulas. É difícil. Nós estamos aqui há cinco anos, estamos há muito tempo a olhar para dentro, é um caminho. Eu sou um eterno insatisfeito, quero sempre melhorar coisas e processos e métodos e pratos e loiça e tudo. Acho que ao fim de cinco anos está a dar frutos, a Marlene teve muita sorte de conseguir um restaurante que está lindíssimo, ter uma equipa belíssima a nível de chefias de cozinha, sommelier e sala, já começou nos 85%, falta só um bocadinho.