Tem pinta de estrela rock e, embora não se sinta assim, sabe que é adorado. Gosta de fazer as coisas de forma diferente, quebrar regras sem pisar ninguém, exceder-se para surpreender. Dabiz Muñoz é um nome sonante na cena gastronómica internacional, especialmente depois de ter conquistado em Setembro o título de melhor chef do mundo nos Best Chef Awards – uma definição impossível, garante. Para o espanhol, não há um cozinheiro que seja o melhor do mundo, há vários a percorrerem os seus caminhos.
É um dos mais influentes chefs da actualidade. No universo da gastronomia, ninguém é estranho ao nome de Andoni Luis Aduriz. Nem sempre compreendido, o caminho que o chef basco tem trilhado é o da inovação. E começou logo com a escolha da localização do Mugaritz, o restaurante que abriu há já 25 anos. Fica na fronteira das cidades Errenteria e Astigarraga, no País Basco, porque são os limites que o atiram para a cozinha. Com duas estrelas Michelin, e ainda esta semana considerado o quinto melhor chef do mundo The Best Chef Awards, Andoni cria as suas próprias regras, desfazendo mitos e verdades que sempre demos por certos. Não tem sequer medo das palavras e do seu peso – e por isso vê-se muitas vezes envolvido em polémicas. No final de Setembro, a sua presença no Congresso dos Cozinheiros não passou despercebida, altura em que falámos com o chef.
Na edição deste ano do 50 Best recebeu o Icon Award. É importante ter este tipo de reconhecimento?
É um pouco incrível porque sou só um cozinheiro. Estamos a falar de uma profissão em que milhões e milhões de pessoas fazem o mesmo. De repente, dizerem-me que sou um ícone é um pouco surreal. Colocarem-me num lugar de referência é impactante e muito bonito.
E vê-se assim?
Se me dão [o prémio], vejo-me. Sinto-me muito bem. Mas há que ser justo: há muita gente que o merece, há muito talento no mundo.
Mas sente que abriu caminho para uma nova geração?
Sim. Não só para uma nova, para a minha. Muitos fazem coisas que nós fazíamos.
De que forma?
No outro dia aconteceu uma coisa maravilhosa. Um ex-inspector da Michelin citava de forma indirecta, numa entrevista, o Mugaritz. Dares-te conta que o trabalho que fazes, sendo melhor ou pior, goste-se mais ou menos, não passa despercebido e está de alguma forma em cima da mesa quando se trata de avaliar as coisas que acontecem na gastronomia não é brincadeira. Mas é preciso perceber o contexto. Os códigos da gastronomia estão muito fechados, desde que comecei. Corres a gastronomia ocidental e dizes: ocidente. Como estão estruturados os livros de cozinha, a cabeça das pessoas, ou a carta dos restaurantes? Aperitivos, saladas, legumes, sopas, massas, ovos, peixe, carne, queijos, sobremesas. Se comes um arroz e uma sobremesa, comes nessa ordem. Qualquer cozinheiro que aqui está, se desenha uma carta no seu restaurante, segue essa estrutura. Tanto faz o estilo. É regra geral. No Mugaritz, isto não acontece.
Não há regras?
Há outras, as próprias. No Mugaritz, fazemos um prato que pode ter peixe, que pode ter massa, que pode ter legumes, mas não é para preencher o buraco dos legumes, o buraco do peixe ou o buraco da carne. Não pomos a etiqueta peixe, carne, legumes, entrada, aperitivo. Isso não existe. Fazemos um prato e dizemos que é uma técnica nova. Etiqueta: técnica nova. Isto é um novo olhar sobre o produto. Etiqueta: um novo olhar. O que é isto? Um desafio. E isto é um poema. Então, quando montas a estrutura do menu, tens um poema, um desafio, um encontro, um reconhecimento, uma homenagem à origem… Como deste uma etiqueta diferente, constróis uma realidade paralela. Quem é que disse que a maneira como se ordenam as coisas é a correcta? Nós somos a Alice no País das Maravilhas, do outro lado do espelho. O que é que acontece? Como as pessoas vêm com uma estrutura mental, quando as libertas disso, ficam numa mesa à deriva. Não há referências. São códigos novos. Quantas pessoas fizeram esse esforço? Avaliamos se está bem ou mal depois, talvez esteja errado, mas é um esforço que é muito inspirador. Isso a profissão valoriza muito. Foram os nossos colegas que nos fizeram um ícone, não foi o público que está à deriva. Quem nos valoriza é a própria profissão, que diz: que coragem têm para fazer as coisas que ninguém faz.
E a liberdade é total?
Nunca é.
Porquê?
Porque gero muita controvérsia. Tenho um projecto que se alimenta de pessoas de todo o mundo, que vêm ver o que fazemos. Vivo do meu trabalho. A liberdade acabaria se o que nós propomos de tão radical e tão novo não tivesse um acompanhamento do público. Se o público disser que não lhe interessa o que fazemos, que só lhe interessa o que já conhece, que não lhe interessa a novidade, nem questionar coisas desde outra perspectiva, eu não posso continuar.
É esse o limite da criatividade?
Para mim, sim.
Fala da estrutura da gastronomia, dos menus e de como as pessoas pensam porque procura romper com a narrativa da restauração?
No Mugaritz a equipa diz-me que sou um escapista, que sempre fugi. Na realidade, eu sou uma pessoa curiosa. Por isso eu digo que a minha profissão me deu a oportunidade de conhecer pessoas maravilhosas. Se estou com uma pessoa que sabe muito de emoções, faço pergunto. Posso estar com uma pessoa que escreve, com um músico, com uma pessoa que se dedica às artes cénicas. Eu e o Mugaritz temos tido a sorte de nos alimentarmos disso nestes 25 anos. E tudo isso permanece, deixa marca. Eu tenho muita curiosidade pelo mundo. O Mugaritz não existiria fora deste tempo, é impossível. De que códigos vimos? [Da ideia de que] a cozinha tem que estar boa. Posso fazer uma tese sobre o conceito de bom. O que é bom? Se tomas um café e o dás a uma criança, e a criança torce o nariz, não é bom. O conceito de bom é um conceito adquirido, de cultura. O que nesta cultura é bom, na outra não é. Quando começámos a trabalhar com público do mundo inteiro, não me podia guiar por ‘as coisas têm de estar boas’. É bom para quem, se vem gente de 70 nacionalidades? Troquei o “tem de estar bom” por “as coisas têm de ter sentido”. O conceito tem de ter sentido, de ser explicável, e estar sujeito a uma intenção. As coisas têm de ter uma narrativa importante. Esse tem sido o esforço do Mugaritz. O Mugaritz fez-se a pulso. Já fizemos uma apresentação, só para brincar, sobre a insipidez.
A insipidez?
Sobre as coisas que não têm sabor. Na verdade, se formos ao dicionário, a palavra tem diferentes acepções: falta de sal, falta de sabor. É o limite baixo de sabor. Na gastronomia, temos o mundo do umami, do sabor, das coisas têm que estar boas. Risca isso. Quando retiras a cortina do sabor, aparece o mundo das texturas, um mundo fantástico, de subtilezas. É um mundo de delicadezas, de procura. Tens de fechar os olhos para encontrar o que está lá. É um mundo que está mais próximo da verdade do que o que realmente te oferece o mundo dos sabores, que está absolutamente industrializado. Há sabores e aromas de tudo. Há cinco vezes mais produtos com sabor a morango do que a produção de morangos no mundo. Nas texturas, não. As texturas são o que são. A textura de um peixe é impossível de copiar… Podem dizer que o Mugaritz é um restaurante insípido, eu digo: é a merda da tua bandeira. “Ai, o sabor vem primeiro.” És tolo e vou mostrar-te que és tolo.
Mas são muitos os chefs que defendem o sabor, sabor, sabor...
Porque não lêem. Não se pára para pensar. As pessoas não estudam, não sabem o que dizem. As pessoas só têm a aprovação do resto das pessoas que, como elas, não sabem o que estão a dizer. Os sabores são o mundo do grito, o mundo das luzes.
É o caminho mais fácil?
É o caminho mais fácil e mais adulterado. O sussurro, a carícia, é a puta revolution. Num mundo super acelerado, isto é a poesia. Na minha cultura, sabes o que acontece? As palavras avó e tradição são divinas, são como um salvo-conduto que te livra de tudo. Se isto é o que a tua avó fazia, ou é das avós, ou está na tradição e tem a ver com a identidade, é o salvo-conduto que te permite deixar passar para apanhar o último comboio. Sabes o que acontece? Na minha cultura, em Gipuzkoa, de onde venho, como uma coisa que se chama angulas, que é textura. As cocochas têm sabor, mas são sobretudo textura. E qual é a principal característica do caviar, o sabor ou a textura? É a textura, caso contrário, pegávamos numa lata de um quilo de caviar e fazíamos um puré com todo o sabor. A magia do caviar são as ovas que rebentam na boca. A magia é a textura. As pessoas não sabem o que dizem e é aí que o Mugaritz enreda.
"No Mugaritz a equipa diz-me que sou um escapista, que sempre fugi. Na realidade, eu sou uma pessoa curiosa."
A comida deve ser revolucionária?
Deixa ver como é que explico isto. Há um ditado espanhol que diz que há pessoas que nascem com um pão debaixo do braço. Eu acho que todos nascemos com um livro debaixo do braço. Com que livro nasci eu? Com o livro da cozinha basca. É um livro que tem capítulos: os peixes, as carnes… Tu nasceste, por exemplo, com o livro da cozinha portuguesa. Pergunta-te com que livro estão a nascer agora as crianças? Se calhar já não é com o livro da cozinha portuguesa. Se calhar já têm capítulos de fast food... Vou pôr de outra forma: imagina que a língua é uma chave. A ti programam-te para que a tua chave abra uma porta, que é a porta da cozinha portuguesa. Por que não fazer com que a chave seja uma chave-mestra que abre todas as portas? É o que faço com o meu filho.
Isso não é um grande desafio?
Mas não é impossível. Porque é que eu não pego no livro de cozinha basca do meu filho e tiro um par de volumes e acrescento um capítulo de cozinha vegetariana, outro de cozinha japonesa, um de cozinha portuguesa, outro de tradições do mundo? Tiro umas páginas e ponho outras. Vejamos, o mundo está cheio de bons restaurantes, mas não há assim tantos que sejam distintos. Nós estamos entre os distintos. Os retrovisores dos carros têm um ângulo morto e nós procuramos o ângulo morto da gastronomia. Porquê? Porque não há assim tanta gente a fazer isso.
Fazem um caminho novo?
Fazemos perguntas novas e lançamos hipóteses. São melhores? São piores? São diferentes. As pessoas ficam a pensar que nunca lhes tinha ocorrido aquilo. Eu acredito que o trabalho do Mugaritz é ajudar a fazer perguntas. Não é provocar.
Nem sempre com respostas?
Não há sempre respostas. E não é para provocar.
Não quer provocar, é isso?
Não é que não queira, mas não procuro provocar.
Mas está no limite...
Provocamos muito. Sabes o velcro? Eu tenho velcro para os problemas, ficam-me sempre todos colados. A toda a hora. Mas tem lógica, no fundo, estamos a mexer com o chão das pessoas. As pessoas vivem muito cómodas na sua verdade. De repente, chegam uns tipos e começam a mexer-te com a cadeira. Isso é muito irritante.
Cria um desconforto?
Claro.
É por isso que se diz que se ama ou se odeia o Mugaritz?
Sim, é polarizado. É incrível.
Não há meio-termo?
Há, mas é verdade que há gente que nos odeia muito, mas mesmo muito.
A quem se refere?
No geral. Até na própria profissão há pessoas que não entendem, mas é normal. Eu estou a dizer-lhes: isto que tu sabes não é verdade. Claro, incomodas porque estás a questionar a sua verdade. Ficar num barco à deriva é muito desconcertante. As pessoas querem segurança e tu estás a pô-las numa situação comprometedora. Muitos clientes também, é normal. Mas também acontece o contrário, pessoas que dizem: ainda bem que existem e que alguém pergunta e faz estas coisas.
E como faz quando há clientes que não gostam da experiência? Importa-se?
Importo-me, sim. Ninguém vem ao Mugaritz obrigado, porque perdeu os pontos da carta e para os recuperar tem que ir ao Mugaritz. O Mugaritz é um espaço aonde vais com liberdade absoluta. Ninguém te obriga. Então, se vais a um sítio assim, tens de saber ao que vais.
Se não sabes, vai ser diferente.
Imaginem que estão em San Sebastián num hotel e vão à recepção e dizem: “Olá, disseram-nos que nesta cidade há uma agenda cultural maravilhosa, nomeadamente musical, com muitos concertos de qualidade. Por favor, queremos dois bilhetes para amanhã”. “Sim, aqui têm.” Não funciona assim e eu explico-te porquê. Pode acontecer que nesse dia em San Sebastián esteja [Christian] Thielemann, maestro especialista em Wagner, a dar um concerto com orquestra. Pode acontecer que o grupo heavy mais importante da Alemanha venha cá, além de um DJ de techno de Ibiza, daqueles que cobra fortunas. E tu o que fazes com os dois bilhetes? Como te vestes? Como sabes se vais à ópera ou ao concerto heavy? Isto não acontece na música. Só na gastronomia é que alguém diz: “Olá, queremos jantar porque nos disseram que há restaurantes muito bons aqui”. “Ok, onde?” “Num restaurante muito bom. Claro, vamos reservar uma mesa.” Pergunta em que restaurante! Não ponhas a responsabilidade em mim. [É preciso explicar que] este sítio é para comer, este é tradicional, este é de fusão, este é um sítio de procura. Não venhas a um sítio de procura vestido com cara tradicional. Porque também nos vestimos por dentro, na atitude. Então, senhores clientes, têm uma responsabilidade como cliente.
Há clientes que vão ao engano?
Claro. Porque não há ninguém que diga isto. As pessoas não são tão loucas como eu.
Como é que se explica isso?
É muito fácil. Nos títulos dos jornais de San Sebastián.
É preciso educar o público?
Há que educá-lo. Eu aviso sempre, o Mugaritz é estranho e caro [253€ sem bebidas]. Quem vem, já sabe. Não posso fazer mais para que não venham.
E mesmo assim tem clientes que não sabem ao que vão?
Temos que fazer uma pergunta colectivamente. Eu sozinho não posso mudar o mundo. O que peço são coisas simples. Assumir a responsabilidade. Se vamos comprar um sofá, não o compramos às cegas. Ninguém faz nada às cegas. Um pouco de respeito. No Mugaritz, sou um bruto porque faço coisas destas e digo coisas que as pessoas não costumam dizer. Por isso tem impacto. Mas não digo nada de estranho.
Não acha que pode haver uma confusão aí por haver pessoas que querem ir a estes restaurantes precisamente porque têm estrelas Michelin ou estão na lista do 50 Best?
Claro, sempre. Isso é mais velho que a humanidade.
E como vê a crítica?
Faz o que pode.
Mas é uma preocupação sua?
Sou uma pessoa muito exigente, muito rigorosa. Gosto muito da perfeição. A primeira vez que criticaram o meu trabalho foi como se tivesse um cabelo na sopa. Foi um choque. Agora, 25 anos depois, digo às pessoas que vêm trabalhar para o Mugaritz que não há um cabelo na sopa, há uma peruca. É uma sopa de cabelos. Convence-te, assume-o e entende-o. Vai haver gente que vai dizer que esta é a melhor experiência da sua vida e outros que vão dizer que isto é uma merda e que somos uns burlões. Quanto mais cedo o entenderes, melhor. Tudo se resume à convicção e compromisso deste grupo de pessoas que trabalha aqui na tentativa de mostrar a sua verdade da forma mais verdadeira. Se quero ser sincero contigo e dar-te a minha melhor versão, tenho de ser transparente. Pode ser que não gostes, é a vida. As pessoas não são como são, muitas são como os outros querem que sejam. Pelo que pagam, pelo que custa e pelo esforço que está por detrás, a única coisa que nós podemos dar é a verdade. É este o compromisso que eu tenho.
É um caminho solitário?
Claro. Porque a gastronomia está cheia de egos e de interesses. Na verdade, a vida humana. O que acontece? Tu vês os silêncios. Na gastronomia, há muitos silêncios. Na gastronomia, muitos dos teus colegas não te vão aplaudir. Dizer que bom que és, que bem que o fazes, parece tirar-lhes mérito. Há muitos silêncios, muitos interesses e muita política e muita gente que lambe as botas aos guias e que faz coisas incríveis por estar num guia ou numa lista. É assim.
É por isso que não tem a terceira estrela?
Eu não tenho a terceira estrela porque a Michelin, de acordo com o seu critério, entende que nós não merecemos a terceira estrela. Vocês, que se dedicam à gastronomia, quantos restaurantes com três estrelas há no mundo?
Muitos?
Não é uma resposta.
Não tenho um número claro. Em Portugal, não há nenhum.
E vocês dedicam-se à gastronomia. As pessoas não sabem. Qual foi o último restaurante a receber as três estrelas em França?
Não sei.
Não são tão importantes. É mais importante sair na Netflix. A importância é dada em abstracto. Faço um grande esforço e trabalho para construir a minha história, a minha narrativa, e sou questionado a toda a hora e tenho de me justificar sobre o que faço. Eles não são importantes. Estão a copiar o 50 Best, as galas. Mas atenção, eu não vou dizer que um inspector Michelin não tem conhecimento. Claro que tem conhecimento. Mas vamos mudar a estratégia na conceptualização disto tudo. Tu achas que uma pessoa que lê muita poesia, e só lê poesia, pode avaliar ficção científica?
Não.
É disso que estamos a falar. Estamos a falar de uma empresa privada que tem o apoio dos senhores que têm interesses que esta empresa privada tenha mais importância do que realmente tem. E deixamos que [isso] administre uma parte das nossas vidas. E as pessoas ficam loucas. Há pessoas que perdem a terceira [estrela] e suicidam-se. Há pessoas com duas que querem três. Vamos dizer a verdade de uma vez por todas: é uma empresa privada que tem uma visão do mundo honesta, eu estou convencido de que é honesta, num mundo onde a rotação já mudou. Eles não se deram conta que a rotação mudou.
"O mundo das texturas está mais próximo da verdade do que o que realmente te oferece o mundo dos sabores, que está absolutamente industrializado."
É antiquado?
Não utilizaria a palavra antiquado, mas trataria de explicar que, se vais avaliar um mundo que é diferente, tens de usar regras diferentes.
E os restaurantes são todos diferentes.
Há 133 [138, entretanto] restaurantes com três estrelas Michelin no mundo. Destes 133, quando se desenha um congresso de gastronomia e necessitas que vá um cozinheiro contar-te algo interessante, muitos não estão sequer no guião. O facto de se comer muito bem não quer dizer que se faça algo relevante ou importante. E há uma coisa muito importante: os parâmetros da Michelin. Dá-se uma estrela a um sítio que, segundo os critérios e códigos que se entendem adequados, vale a pena ir quando se está perto. Duas estrelas Michelin: vale a pena o desvio. Três estrelas: só os restaurantes que merecem expressamente uma viagem. Estes são os códigos da Michelin. Conheço muitos restaurantes, mas muitos são muitos, aonde vão pessoas de todo o mundo expressamente para comer e que não têm três estrelas Michelin. Guio-me por onde? O [Asador] Etxebarri tem uma estrela. O mundo inteiro vai, não há maneira de conseguir uma reserva. O Elkano tem uma estrela Michelin, é um dos melhores restaurantes de peixe do mundo. Quantos restaurantes não há assim? Ah, mas não têm talheres de prata. O que é que importa que quebrem as regras feitas por si quando lhes interessa? Ou seja, eles fazem batota. Não há direito que esta profissão dê tanto valor a estes tipos que a única coisa que fazem é fazer negócio e fazer infeliz o mundo inteiro. E não dão os códigos de referência que o mundo precisa porque, na verdade, a única coisa que tens a fazer é ajudar as pessoas a tomar a decisão adequada sobre o sítio para comer. Simples.
E países diferentes podem ter critérios diferentes, como acontece na Tailândia, por exemplo.
Claro. Negócio, dinheiro. Eu faço o guia durante três anos e tu pagas-me tanto dinheiro. Como governo, vais pagar um guia com zero estrelas?
Não.
Então o que têm de fazer? Pôr algumas. Alguma coisa tem de se fazer. Ninguém fala disto a sério. Sou o único que fala disto? É sério?
Isso não lhe traz consequências?
Sempre sonhei com que não precisássemos de ninguém para conquistar o nosso lugar na gastronomia. Era o meu sonho, a independência.
E é assim que está?
Não por completo. Volto a dizer o mesmo, se eu não trabalho... Sabes, eu digo isto porque me parece que é uma injustiça e digo isto porque posso dizer. E digo isto porque trabalho.
Depois de 25 anos não se sente cansado?
Não.
O que lhe falta fazer?
Não é o que me falta fazer. Eu sou uma pessoa curiosa. Imagina que um dia acordo e não tenho curiosidade. Eu preciso e quero mesmo saber e aprender. Então, se de repente um dia me levanto... Isso dá-me pânico. Ou seja, perder a capacidade de querer aprender, de querer saber mais, de querer nutrir-me na parte intelectual. Isso dá-me muito medo.