Se segue o chef nas redes sociais já terá tropeçado na página de Instagram Copo Meio Cheio. Aqui não há pratos nem restaurantes, só frases inspiradoras. É um projecto pessoal do chef, que surgiu da sua preocupação pela saúde mental e como tentativa de combater o desânimo e a tristeza a que assistia em algumas pessoas.
É o chef português com mais estrelas Michelin, com duas a chegarem de rompante no último ano, primeiro à Tasca, no Hotel Mandarin Oriental Jumeira, no Dubai, e depois ao Encanto, no Chiado, mesmo ao lado do Belcanto, onde há muito se espera a terceira estrela – essa é que ainda tarda. Está na liga dos grandes nomes da gastronomia mundial, mas garante que mantém os pés na terra, até porque nunca se imaginou onde está hoje, mas antes num pequeno restaurante de bairro em Cascais. José Avillez prepara-se agora para abrir mais um restaurante, em cima do mar, em pleno Guincho. O Maré, assim se vai chamar, está pronto há muito tempo, preso apenas por burocracias. Em Maio, começa a receber clientes.
2022 acabou da forma que tinha previsto?
Foi um ano muito bom, que marca a saída da pandemia e por isso também de uma crise para a restauração e para muitas outras áreas. É um ano em que também, infelizmente, começa uma guerra, que ainda se mantém… Acho que hoje não podemos ter só a preocupação connosco, temos de olhar um bocado à nossa volta. Há esse lado dramático e por isso não posso dizer que tenha acabado exactamente como quero. Pensando na perspectiva da restauração e da recuperação económica deste sector, acho que foi bastante bom e bastante melhor, pelo menos, do que 2021 e 2020.
O suficiente para fazer esquecer os dois anos de pandemia?
Eu acho que esquecer, esquecer não faz, porque é algo que causou um impacto muito grande, mas lembro-me de poucas coisas más. Acabo por me lembrar também de coisas boas que esses anos de pandemia me trouxeram, como poder estar em casa a jantar com os meus filhos. É coisa que nunca aconteceu, desde que tinham nascido.
Teve tempo…
O mundo inteiro procura por tempo e isso, ao menos, a pandemia trouxe-nos.
Mas foi também preciso repensar a estratégia empresarial.
Sim, repensámos e reorganizámos muitas coisas. Por exemplo, a Pizzaria [Lisboa] e o Mini Bar passaram para dentro do Bairro [do Avillez], para reduzir algumas rendas e para conseguir reestruturar a equipa. Esse tempo ajudou-nos a repensar o negócio e a fazê-lo melhor. Sendo que, pela guerra e pelo pós-pandemia, há um aumento muito grande de custos, de matérias-primas, que nos preocupa bastante, e uma inflação enorme que traz também aumentos de taxas de juro. Há uma crise que está sempre a assombrar-nos, mas isso eu acho que desde que comecei a trabalhar que vivo épocas de crises.
É cíclico?
É, e estes últimos 15 anos foram propensos a isso. Acho que temos de nos preparar e não achar que somos invencíveis. Pode sempre haver momentos mais difíceis no futuro.
Mas até Março de 2020 o chef estava a abrir bastantes restaurantes. Ainda foram alguns…
Já não sei.
Houve um crescimento...
Mas tínhamos fechado também alguns. E fechámos depois outros com a pandemia.
Mas foi por causa da pandemia que fecharam ou foi porque também perceberam que não foi a aposta certa? Sem pandemia esses restaurantes ainda estariam abertos?
Não lhe consigo dizer a 100%. Posso dizer que nós íamos abrir um [restaurante] no dia 16 de Março que nunca chegou sequer a ver a luz do dia. Com o investimento todo feito, completamente pronto para abrir e fechou porque era uma renda alta e não fazíamos ideia do que ia acontecer. Preferimos negociar logo com o senhorio e sair. Fechámos outro aberto há menos de um ano, a Cantina Peruana, porque tínhamos um acordo com o chef e não sabíamos o que ia acontecer. Para ser muito honesto, acho que pelo menos 80% do que reorganizámos ou fechámos manteríamos aberto se não fosse a pandemia. E não quer dizer que estaríamos melhor agora, mas manteríamos aberto. Mas tenho a dizer que os [restaurantes] que para nós não eram, se calhar, os mais rentáveis, ou os que estrategicamente não eram os que tinham mais peso no grupo, foram os que nós escolhemos... Nós sentimos que só conseguiríamos salvar uma parte e tivemos que tirar outra parte.
Foi preciso fazer escolhas.
De repente o que nos disseram foi: vocês têm que pagar todos os vossos custos e não vão facturar nada. Não há nenhuma escola de gestão que nos ensine a fazer isso porque não é possível. Houve uma série de apoios estatais que, obviamente, foram muito importantes, mas nós mantivemos sempre um custo de 20 a 30% da nossa operação sem entrar rigorosamente nada. Tivemos, inclusive, de nos desfazer de alguns imóveis para pagar algumas dessas contas. Eu acho que a minha sorte é que eu não sou muito agarrado ao dinheiro e estava mais preocupado com outro tipo de coisas e essas conseguimos salvar.
E 2022 já foi um ano de retoma?
Foi o nosso melhor ano de sempre, posso dizer muito honestamente. Vamos ver se é um ano de transição ou se é um ano que vem marcar uma nova tendência. Houve algumas mudanças em termos de dinâmica e de composição turística. O mercado americano disparou, há um aumento de vendas de casas para estrangeiros e eu acho que isso pode estar em crescimento, mas tivemos também muitas pessoas que tinham viagens marcadas em 2020 e 2021 que não as tinham feito e que vieram em 2022. Mesmo assim, em alguns segmentos houve um decréscimo do número de turismo, mas houve um aumento do preço médio gasto por esses turistas. Para Portugal é a melhor fórmula porque somos um país pequeno e não dá para crescermos muito mais em turismo, vê-se os problemas que temos nos aeroportos. É melhor que quem vem gaste mais do que haver mais turistas. Em cidades como Barcelona, chamou-se um tipo de turismo de massas que não gasta praticamente nada e que começou a trazer muitas perturbações à cidade. E eu não digo isto por termos um posicionamento mais alto, acho que acaba por ser bom para todos. Vamos ver, acho que 2023 será a prova dos nove.
Ainda é bastante incerto, não é?
Bastante, com as taxas de inflação, tudo a aumentar. Os custos aumentaram e vão aumentar mais um bocado, vamos ver como é que as famílias também vão reagir. E vamos ver se, de facto, o turismo se mantém. Eu estou optimista, sendo que vai ter de ser um ano que tem de ser gerido com muita prudência porque começamos a pagar alguns dos empréstimos adquiridos na covid.
Com essas incertezas, já foi obrigado a subir os preços nos restaurantes? Como é que se faz esse exercício?
Nós tivemos uma média de aumento dos preços de 3% durante 2022. Tivemos aumentos de matérias-primas, algumas de cerca de 40%, outras de 100%. As farinhas, por exemplo, chegaram a subir 200%. É preciso muita criatividade na composição dos pratos e [na forma] como se vai vender esses pratos. Há uma coisa que para nós é imprescindível: nunca baixar a qualidade. Temos de ser mais criativos na composição do menu e, podendo, ir colocando alguns pratos que não tenham sofrido tantos aumentos. Queremos manter uma média de preços no restaurante que seja possível que os portugueses também os frequentem.
E o cliente entende esse aumento?
3%, se pensar bem, é mais ou menos residual. Nós muitas vezes comparamo-nos com restaurantes acabados de abrir e muitos deles têm preços muito mais altos que os nossos. Por exemplo, sempre tivemos um preço médio de sobremesas bastante abaixo de praticamente todos os restaurantes que abriram nos últimos três, quatro anos porque é algo que queríamos incentivar à venda. Depois começámos a aumentar um bocadinho com o aumento das farinhas, etc.. Eu sei que ninguém gosta de ver algo com os preços mais altos, mas agora é uma necessidade. Nunca aumentámos para ganharmos mais, mas para não perdermos. Nós temos muito pouca gente com salário mínimo, eu diria que se calhar menos de 5% das pessoas na empresa e são só algumas posições de copa, acabados de entrar. Mesmo assim têm prémios de produtividade, têm outro tipo de remunerações. O aumento salarial para nós nem tem a ver com o salário mínimo, mas com a necessidade de aumentar o salário médio, que tem de alguma maneira de se poder mexer porque senão vamos comprimir. É o maior erro que as empresas podem fazer.
A falta de mão-de-obra na restauração é fruto disso? É verdade que, durante muito tempo, as pessoas não foram bem tratadas?
Não sei, acho que é um trabalho difícil por si. As pessoas trabalham quando os outros se estão a divertir, aos fins-de-semana, aos jantares… É mais por aí. Obviamente que também há-de haver restaurantes, como há outras empresas, que tratam menos bem os seus colaboradores, mas eu não sinto que a saída da restauração seja para se ir ganhar mais para outro lado. Sinto, talvez, que seja para mudar de horários, para mudar de vida. Se eu pudesse, e digo isto muitas vezes, servia os almoços às onze da manhã e os jantares às cinco da tarde. Toda a gente estava em casa às sete e era óptimo. Não é esse o mercado e não é isso que podemos fazer e, por isso, para se trabalhar na restauração tem que se ter esse gosto, essa vontade. Mas acho que hoje em dia, até com o aumento muito grande de estrangeiros e com o aumento das gratificações, há muitas pessoas na restauração já a ganhar muito dinheiro, comparando com pessoas de outros sectores. É sempre uma questão de escolha. E se uma pessoa se apaixona pelo projecto, ou não se apaixona. Por exemplo, trabalhar aqui [no Guincho] não será a mesma coisa que almoçar aqui, no sentido em que quem está a trabalhar, está a trabalhar, mas poder passar aqui grande parte do seu dia é melhor do que passá-lo numa cave. Fizemos a cozinha aberta, com vista [para o mar], um bocadinho a pensar nisso. A minha vida também é passar o dia nesta e noutras cozinhas e por isso quero melhores condições de trabalho. Obviamente que todos temos de fazer sacrifícios em todas as áreas.
Mas a verdade é que há cada vez mais chefs a fazer uma espécie de mea culpa. Há uma mudança nas cozinhas? O ambiente, hoje, é mais saudável?
Eu nunca fui de gritar, nunca fui de bullyings.
Nem sofreu na pele?
Eu acabei por trabalhar pouco tempo para outras pessoas, mas em alguns estágios que fiz sofri um bocado. Mas quer dizer, temos de ser muito honestos, nós próprios promovemos, a população em geral promoveu. Os programas do Gordon Ramsay… Vendia-se uma ideia que outras pessoas queriam depois copiar. É engraçado como é que em um, dois anos as coisas mudam e de repente o politicamente correcto inverte-se porque já ninguém está a ganhar dinheiro com isso. Mas quando há alguém a ganhar muito dinheiro com isso, ninguém fala e está tudo bem. Também temos que ter um bocadinho a capacidade de ver onde é que errámos. E não estamos a falar de história de há 500 anos, são coisas de há menos de um ano. Eu, aliás, instituí há muitos anos um porquinho mealheiro nas cozinhas e sempre que alguém dizia um palavrão tinha que lá pôr uma moeda. É a antítese do que se pensa das cozinhas. Hoje em dia, já nem fazemos tanto porque ultrapassámos completamente.
Está estabelecido?
É uma coisa já completamente normal. Temos gente muito nova a começar a trabalhar e acabamos por ser um bocadinho pais e professores. Poder ajudar na formação dessas pessoas faz com que elas possam ter mais sucesso no futuro e essa formação não será com certeza a gritar e a tratar mal. Se há um regime que, às vezes, pode ser confundido como militar é pelo rigor e não pelos maus tratos. A disciplina é das coisas mais importantes na vida. Com disciplina conseguimos também ser melhores e prepararmo-nos para um mundo que nem sempre é de paz. Isso leva a melhores amizades, amores mais completos e sem estupidezes. Às vezes, enervamo-nos e chateamo-nos por coisas tão estúpidas...
O chef José Avillez e o empresário José Avillez nunca entram em conflito?
Misturam-se muitas vezes. Entram em conflitos pequenos que têm sido sempre resolvidos. Hoje a sustentabilidade está completamente na ordem do dia, mas fala-se essencialmente da sustentabilidade ambiental e não pensamos muitas vezes noutras. A sustentabilidade ambiental tem a ver com as mudanças climáticas e muitas coisas que temos ouvido falar, mas há outras duas pernas que são muito importantes e que são a sustentabilidade económica e a sustentabilidade social. Estão todas interligadas e, às vezes, se não se conseguir ter uma, não se consegue ter outra. A sustentabilidade económica, na verdade, faz com que consigamos ser mais sustentáveis ambientalmente. A sustentabilidade social é o que nos faz poder cuidar das pessoas, que também vão ser depois mais sustentáveis em termos ambientais. Há uns anos falava com outros cozinheiros, com colegas meus, que diziam: quero lá saber do food cost, eu quero é este produto, fazer estes pratos, não quero saber se isto dá dinheiro. Na verdade, não eram chefs empresários, trabalhavam para outras pessoas e achavam indiferente se o patrão perdia ou ganhava dinheiro. Há muito poucos projectos no mundo que aguentam ficar a perder dinheiro durante muito tempo. Eu posso ser um óptimo chef a pôr caviar e trufas e só os melhores produtos dentro de um prato, mas duro três meses porque o restaurante vai fechar. Não consigo pagar às pessoas que trabalham comigo, não consigo pagar as rendas. O conflito que possa existir entre o chef e o empresário tem sempre a ver com uma perspectiva de pensamento a médio/longo prazo. Se pensasse a curto prazo, teria imensos conflitos. Se pensar a médio/longo prazo, que é como eu acho que a vida deve ser pensada, os conflitos diluem-se. Se eu pensar, por exemplo, que vou deixar de comprar café à Etiópia porque vem de barco ou de avião e causa poluição e não sei quê, em termos de sustentabilidade ambiental isso pode ser uma ideia boa, mas as famílias que vivem desse café vão estar pior. Temos acesso a um mundo globalizado, mas lutamos ainda por coisas diferentes. Há mais pessoas que morrem por má alimentação do que pessoas que morrem à fome, as duas coisas são um drama. Na Europa, e em alguns países chamados de primeiro mundo, lutamos para que se consiga pôr um mamilo feminino a aparecer no Instagram e há outros países a tentar que as mulheres mostrem a cara e possam ir à escola e possam trabalhar. Nós às vezes lutamos por coisas muito estúpidas, na verdade. E por isso vamos lutar pelas coisas certas. Não podemos ser todos activistas, podemos, sim, olhar à nossa volta e cuidar das nossas pessoas e cuidar de nós próprios, porque se há coisa que realmente piorou ao longo destes últimos 10, 20 anos no mundo foi a saúde mental. Hoje, a primeira causa de morte de adolescentes e jovens adultos, dos 15 aos 25 anos, é o suicídio, o que é uma coisa absolutamente assustadora. Às vezes, é porque quem está ao lado não teve atenção e está mais preocupado a olhar para as redes sociais, um mundo paralelo, onde se julga que é tudo perfeito. Quem usa muito as redes sociais para mostrar a sua vida deve também mostrar que a sua vida não é perfeita porque há pessoas que acreditam que é e acham, então, que as delas são muito más e não é verdade, nem uma coisa, nem outra.
E com isto tudo, como é que é a sua rotina?
Variam muito os dias. Levanto-me, normalmente, às 06.55. Tento estar com os meus filhos ao pequeno-almoço, fazer algum ginásio de manhã, mas acabo por fazer só duas, três vezes por semana. Há outros dias em que acordo para responder a emails e resolver algumas coisas. À hora do almoço costumo estar pelo Bairro ou por outro dos restaurantes sem ser o Belcanto. Vou ao escritório também, [tenho] algumas reuniões de direcção, entrevistas e depois ao fim do dia, normalmente, vou para o Belcanto e passo lá à noite. Já não saio tão tarde como costumava sair. Por volta das onze da noite vou para casa e ainda tenho mais ou menos meia hora em casa a trabalhar, apanhar alguns emails e mensagens que não consegui pelo caminho. Aproveito os aviões e os domingos para criar novos pratos, para pensar um bocadinho, criar novos conceitos e organizar algumas ideias mais estratégicas. Ao domingo descanso sempre, mas aproveito para isso. É a parte que eu mais gosto do meu trabalho, acaba por ser parte da minha vida e não tanto do trabalho em si. Quando eu, por alguma razão, me esqueço do telemóvel, e só me lembro passado uma ou duas horas, foi quando tive descanso porque de repente desliguei.
O que é que é mais difícil: ser criativo ou consistente?
São coisas muito diferentes, mas a grande fórmula é haver esta intersecção dos dois. Pode-se ser criativo sozinho, mas ser consistente obriga-nos a ter um trabalho de equipa. Não dá para eu querer ser consistente e a equipa não o ser. Comparando com outras expressões artísticas, a cozinha tem algo interessante que, não sendo uma arte, é com certeza uma expressão de arte. Mas é também artesanato, é também um trabalho de repetição logístico, um trabalho fabril, praticamente. Combinando ainda o lado de cuidar das pessoas para quem estamos a cozinhar. É talvez dos negócios que eu conheço mais complicados, com mais áreas para se gerir. É preciso muita dedicação, muita atenção. Diria que é mais fácil ser criativo, mas a criatividade tem depois de ser confrontada com a capacidade que temos ou não de sermos consistentes e de conseguirmos aplicar essa criatividade a um prato que se faça com o número de lugares que temos para servir. Uma coisa é termos um restaurante de 10 lugares, outra coisa é ter um restaurante de 100. Uma coisa é servir 50 refeições, outra coisa é servir mil. Não dá para criar os mesmos pratos para todos os restaurantes.
É, agora, o chef português com mais estrelas Michelin. Era aqui que se via?
Nem me via, nem me vejo aqui, sinceramente. Nunca foi um objectivo. O meu sonho era ter um restaurante pequenino de 20 lugares aqui perto porque nasci e vivi aqui perto. Até já sabia o espaço, assim num bairro bastante modesto. E achei que, um dia, se a vida me corresse bem, eu podia vir a ser dono desse restaurante. Hoje conseguimos 100 vezes mais do que alguma vez imaginei. Mudou muita coisa na minha vida, mas não mudou a perspectiva. Sou igual para as pessoas que conheço, acho que não me subiu nada à cabeça, só preocupações e a expectativa dos outros. Temos de ter a capacidade de não viver a vida que os outros esperam que vivamos, mas continuar a viver o que queremos viver. E se um dia eu me cansar de abrir restaurantes, ou mesmo de ter restaurantes, ou de cozinhar, que tenha a coragem de o assumir e partir para outra. E se um dia me cansar de ter estrelas que deixe de cozinhar para estrelas. Quer dizer, nunca cozinhei para estrelas, mas que deixe de ter esse tipo de cozinha. Mal comparado, porque estamos a falar de uma escala completamente diferente, eu penso muitas vezes num Cristiano Ronaldo. A pressão com que ele vive… É a pessoa mais conhecida no mundo, toda a gente fala, bem ou mal, com a infelicidade de haver muitos portugueses que falam mal, o que me transcende em absoluto. Não consigo entender.
Fala-se mal por inveja?
Sim, mas eu acho que o agradecimento tem de existir. Tive algumas viagens mais exóticas a países onde nem conhecem Portugal. Falo do Ronaldo e conhecem. De repente, dizem que sou ronaldês em vez de português. Isto é uma coisa absolutamente extraordinária que nunca tinha acontecido na história do nosso país. E, possivelmente, nestes últimos 20, 30 anos não aconteceu haver alguém que seja de facto muito mais conhecido que o seu país. Então um país da Europa, impossível. É preciso digerirmos bem todos os nossos sucessos, termos capacidade de decidir por nós próprios sem ligarmos ao que os outros dizem. As pessoas criam umas expectativas tão grandes… Acham que agora tenho de ter a terceira estrela, agora tenho de fazer mais não sei quê e tenho que abrir não sei que mais.
É difícil não ficar refém?
Dificílimo. Por isso é que é importante a disciplina. E eu digo isto até para ouvir de mim próprio, porque temos muitas expectativas das pessoas que estão ao nosso lado, dos nossos clientes, das pessoas que só me vêm nas redes sociais ou das pessoas que só compraram o meu livro. Toda a gente tem alguma expectativa, mesmo a minha família tem uma expectativa. Conseguir separar bem os barcos é muito difícil. Perceber quem é que é a minha família, quem é que são os meus amigos, quem é que são as pessoas que trabalham comigo, quem é que são os meus clientes, quem é que são as pessoas que gostam de mim, quem é que são as pessoas que não gostam de mim.
Que também existem?
Claro. É impossível ser-se amado sem se ser odiado, principalmente quando se vira uma figura pública. O curioso é que somos odiados por pessoas que não nos conhecem, como somos amados por pessoas que não nos conhecem. É por isso que temos de conseguir fazer o nosso percurso como sentimos que deve ser feito.
Mas estamos sempre a falar numa grande pressão. Mesmo não se trabalhando para a estrela, há um nível que tem de se manter e imagino que chegando à altura da gala Michelin seja uma conversa entre chefs...
Sim, há a pressão de não ganhar, há a pressão de poder perder.
E como é que se lida com isso?
Essa pressão das estrelas, efectivamente, são 24 horas. É aquele dia, não é mais do que isso. Eu tenho 15 restaurantes abertos ao público, servimos milhares de pessoas por dia, não conseguimos agradar a toda a gente, estou sempre a ser avaliado, o meu nome está na assinatura de todos os espaços. O nível das expectativas das pessoas que vão é alta e por isso poder corresponder é mais difícil, superar mais ainda. Acho que a minha pressão é essa e é diária. É eu deitar-me, ou acordar, e saber que no Dubai já se estão a servir almoços. E amanhã começa tudo outra vez. As estrelas e os guias acabam por ter um outro lado – que é o mais complicado de gerir e que destrói, inclusive, muitos negócios, muitas vidas –, que é o ego. Eu olho para o ego como um balão que se enche, mas que facilmente se vaza, facilmente alguém vem com uma agulhinha e pff... Devemos ter auto-estima, mas o ego, por si só, não nos ajuda em nada.
Tolda?
Completamente, tira-nos o discernimento. Uma altura era importante para mim, de facto, destacar-me em Portugal, principalmente se penso que o que eu queria era ter um restaurante naquele bairrozinho e de repente já estou a ser comparado com os melhores em Portugal e já falam de mim em algumas coisas [como sendo] melhor. Hoje, por exemplo, fico muito contente no Encanto porque é o primeiro restaurante vegetariano com uma estrela Michelin na Península Ibérica, o terceiro na Europa. O Dubai é uma estrela de um restaurante português fora de Portugal, o único no Médio Oriente, um dos poucos no mundo. Os projectos internacionais trazem-nos isso, não é o José Avillez, é a gastronomia portuguesa e por isso o que eu desejo é que muitos mais ganhem estrelas, muitos mais fiquem ao meu lado porque só assim somos mais fortes. É a maneira de a cozinha portuguesa ser mais reconhecida.
Até porque há cada vez mais um turismo gastronómico. Quem vai a um Belcanto, se calhar depois vai ao Alma e por aí adiante.
Sim, visita vários. E mesmo outros restaurantes de outros posicionamentos. É isso que faz sermos considerados um destino gastronómico por excelência, é a pessoa poder ir comer um bom peixe grelhado, uma mariscada, um fine dining, poder comer num restaurante casual, mas comer bem. Até ir aos trendy, mas comer bem, que é uma coisa que não há tanto porque as pessoas apreciam mais beber copos e é-lhes indiferente a cozinha, pagam até mais às vezes do que noutros restaurantes em que se come muito melhor. Eu no Dubai tenho a felicidade de ter um restaurante com DJ, com música ao vivo várias vezes, com pessoas que vão lá para se divertir, com uma óptima cozinha, que foi reconhecida com uma estrela Michelin.
A Tasca no Dubai funciona como uma porta de entrada para Portugal?
Muito, há pessoas que me conheceram pelo Dubai e pessoas que vieram aos restaurantes em Portugal porque primeiro foram ao Dubai. É, sem dúvida, uma embaixada portuguesa. Quando ganhámos a estrela lá eu senti muito que as pessoas estavam de alguma maneira agradecidas por existir essa embaixada de comida portuguesa, mesmo que seja uma cozinha contemporânea e adaptada ao mercado. Quando recebemos a estrela do Encanto, também recebemos muitas mensagens, foi um revisitar da primeira estrela Michelin que recebemos há 12 anos no Tavares, que tinha sido precursor numa cozinha contemporânea e fine dining. Primeiro uma cozinha portuguesa, agora uma cozinha vegetariana. [Houve] muitos vegetarianos agradecidos por lhes darem valor. Isto é quase como no meu princípio, ao mostrar uma nova cozinha portuguesa com as pessoas a medo. Quando comecei o Tavares, as pessoas diziam que eu ia destruir a cozinha portuguesa. É uma coisa que já está noutra vida quase, mas aconteceu, [estavam] altamente desconfiadas, para depois começarem a dar os parabéns porque afinal até era bom. E, depois começaram a agradecer, o que para mim é o mais bonito. Isto em 2007, 2008, 2009, quando as pessoas achavam que os chefs que mudassem alguma coisa na cozinha portuguesa iam estragar. E passaram por isso grandes chefs, como o Vítor Sobral, o Miguel Castro e Silva, o Joaquim Figueiredo, que depois acabou por sair da profissão e de Portugal já há muitos anos, como o Luís Baena, e outros. Pessoas que antes de mim começaram a fazer... E de cima dos ombros deles eu também consegui ver mais além para fazer depois o meu caminho, essa ajuda facilitou, como eu terei ajudado agora outros mais novos que chegaram a seguir.
É por isso que disse, recentemente, que a estrela do Encanto foi se calhar mais importante do que a terceira no Belcanto, que não aconteceu?
Por acaso ainda disse isso ontem.
É uma afirmação arrojada.
É e muitas pessoas vão dizer que é uma estupidez. Ou vão dizer: “Olha, ele não ganhou a terceira estrela e por isso está a dizer que isto é mais importante para compensar.” Acho que a gastronomia e a cozinha têm mudado muito nos últimos anos e era um dos hábitos mais difíceis de mudar antigamente. Hoje com a abertura ao mundo, as pessoas começam a experimentar coisas novas, hoje temos também já bastantes restaurantes de estrangeiros em Portugal, as cozinhas étnicas começam a entrar com mais força e por isso as pessoas estão mais dispostas a mudar. Eu não sei se o caminho é o vegetarianismo, mas o caminho é, pelo menos, sermos mais flexíveis, o flexiteriano, o não comermos tantas vezes carne e peixe ao longo da semana. Por isso, sem dúvida que o vegetariano é uma cozinha do futuro. O vegan acho que é algo já mais político e activista do que propriamente uma escolha de alimentação.
É uma questão ética também.
Mais ética, e política mesmo. Quando alguém me diz: “eu não como mel porque não quero magoar as abelhas”, isso é outra coisa. Mas o vegetarianismo, ou o caminhar para um mundo mais vegetal, é a nova tendência da gastronomia. Os mais desatentos não conseguem ver isso. Foi o meu sogro [Fernando Ulrich, antigo presidente do BPI, hoje na administração do CaixaBank] que nesse dia me mandou uma mensagem a dizer: “Não te esqueças que isso é mais importante que a terceira estrela no Belcanto.” E eu olhei dez segundos para aquilo e pensei: tem razão. Porque [a estrela no Encanto] faz esse caminho. As pessoas vão olhar para trás e vão perceber um caminho que se começou e que faz com que se sensibilize outros guias. Nasceu agora, há dois ou três anos, um guia só para restaurantes vegetarianos e isto vai mudar o comportamento. O Guia Michelin faz com que haja mais restaurantes bons no mundo. Um guia de restaurantes vegetarianos vai fazer com que existam mais e melhores restaurantes vegetarianos no mundo.
Porque é que ainda há tão poucos restaurantes vegetarianos neste campeonato da alta-cozinha? Sendo verdade que cada vez mais os restaurantes têm menus vegetarianos, mesmo assim é recente essa mudança. É mais difícil? É menos interessante?
Imagine que é pintora e que de repente lhe tiram uma data de cores que tinha à disposição para pintar num quadro, tem que se reinventar. É muito mais difícil, claro que é. É mais fácil, por exemplo, às vezes pegar num carabineiro, vindo do nosso mar, fazer-lhe muito pouco e servi-lo. É um produto, por excelência. É muito mais fácil conseguir, se calhar, a excelência tendo essa paleta que não é de cores, mas de sabores e texturas, muito mais alargada, mas é muito desafiante também encolher a paleta e pensar. Temos que dedicar-nos muito mais, o que faz com que tenhamos de ser mais criativos, mais inventivos. Começamos a pensar, por exemplo, no ciclo de vida de um produto vegetal, como o morango. Eu normalmente só o utilizo naquele mês em que está bem maduro, mas eu posso utilizá-lo enquanto está verde ou branco e cortá-lo fininho e pô-lo num vinagre de maçã. Ou mesmo fazer um vinagre com o próprio morango mais amadurecido, e de repente este produto que eu só estava habituado a comer daquela maneira, ou naquela altura, posso comê-lo doutra maneira. O próprio morango fermentado, para continuarmos a falar dele, é um ingrediente novo. É o mesmo morango, mas que atingiu notas de sabores completamente diferentes, textura completamente diferente. E, se eu tiver esta linha, que comecei a desenhar há muitos anos, cruzando com as técnicas que posso aplicar, conseguimos criar muitas coisas diferentes e abrimos outra vez o leque. Tem que se pensar mais, testar mais. Honestamente, sem querer puxar louros, fomos muito corajosos em abrir um restaurante vegetariano com aquele posicionamento. Eu tenho muitos amigos que me dizem: “Vegetariano dispenso, vou aos teus outros que gosto muito, mas nesse não ponho lá os pés.”
Isso não é preconceito?
É e vai sempre haver. Também tenho outros amigos que foram convidados e que só no último prato é que perguntaram: “Mas é mesmo vegetariano? Não tinha percebido.” É curioso porque, de facto, eu não andei à volta dos hambúrgueres de plantas nem dos tofus, nem dos seitans. Não utilizamos produtos animais, sendo que utilizamos derivados como a manteiga, os ovos, o mel, que é daquelas coisas que eu me esqueço sempre que não é vegan, não consigo perceber. Na verdade, alguns vegans comem mel. Para mim, o que não come mel é claramente político. É um manifesto. Mas nós temos bastantes [clientes] vegans também, adaptamos os menus.
E esse exercício criativo maior no Encanto acaba por influenciar o Belcanto? O Belcanto é hoje melhor devido ao Encanto?
Eu acho que vai influenciar cada vez mais, curiosamente. Acho que, no Belcanto, vamos começar a ter mais pratos vegetais, mesmo que não sejam vegetarianos, mas mais pratos onde o vegetal é o elemento principal. De repente, descobrimos um novo mundo que começa a fazer parte de nós e por isso nos novos pratos que nascem já se vê o vegetal a ter um protagonismo maior do que tinha.
Já está lá o bichinho.
Já. É engraçado porque descobrimos depois uma pureza, uma identidade muito própria em cada vegetal, nas texturas, e aí temos o melhor dos dois mundos: conseguimos temperar, por exemplo, beterraba com caviar e vamos buscar o sabor da terra e o sabor do mar em dois produtos completamente diferentes. E, de repente, o grande protagonista é o vegetal. Isso é uma coisa onde talvez a cozinha portuguesa de base falhe mais, tirando se calhar as feijoadas, embora hoje em dia as pessoas até pensem que uma feijoada verdadeiramente rica é a que tem muitas carnes e muitos enchidos. Eu gosto de um arroz de pato com pouco pato. Não gosto de um arroz de pato cheio de pato, tem de ter o chouriço lá por cima, mas é um arroz de pato com muito sabor do caldo do pato. Mas tenho a certeza que sim, [o Encanto] já começou e acho que vai influenciar ainda mais [o Belcanto]. Olhamos para os vegetais com outro olhar. Curiosamente, e inversamente, eu achei que poderia fazer o Encanto quando faço um dos melhores pratos dos menus do Belcanto ser um prato vegetariano.
A cenoura?
Sim, esse prato fez-me pensar que, se trabalhássemos muito, conseguíamos fazer doze tão bons, mesmo que diferentes, para poder fazer um menu completo vegetariano.
E porque é que ainda não chegou a terceira estrela ao Belcanto?
Isso é daquelas coisas a que eu não sei responder.
Nem ao Belcanto, nem a outro restaurante no país, na verdade.
Não sei responder, acho que já há vários restaurantes em Portugal a merecê-la. Do que eu conheço das estrelas Michelin no resto do mundo, acho que muito em breve vamos conseguir, daqui a um, dois ou três anos. Nem sei se o Belcanto será o primeiro, se calhar não e não é importante.
Mas é um objectivo?
Se isso não condicionar o nosso caminho, faz parte dos objectivos. Acima de tudo, o Belcanto é um restaurante rentável. Hoje conseguimos pagar mais a toda a gente que trabalha connosco, inclusive com um sistema de incentivos e de prémios, que eu quero manter. Se para ganhar a terceira estrela tiver que começar a perder dinheiro no Belcanto e não tiver dinheiro para pagar às pessoas não me faz sentido.
Deixa de ser sustentável…
Deixa e é um restaurante que caminha para uma sustentabilidade ambiental. Tentamos cada vez mais ser melhores nessa área, mas é muito difícil ainda lutar contra muitas coisas que estão instituídas. Se [a terceira estrela] vier, ficaremos muito contentes, é só mais responsabilidade. Se não vier, acho que não nos sentimos frustrados porque nos divertimos muito a fazer o que fazemos e gostamos muito de servir as pessoas que se sentam às nossas mesas. O grande reconhecimento vem delas. Era obviamente importante para Portugal que começassem a aparecer as terceiras estrelas e por isso continuaremos neste caminho, na esperança de que nos leve lá. E porque sabemos também que dá sempre para ser um bocadinho melhor. Eu penso sempre se o cliente que nós servimos pior durante o ano acharia à mesma que aquilo era um três estrelas. Se não achar é porque nós não merecemos ainda, se achar é porque estamos mais tranquilos e se um dia ganharmos não estaremos preocupados de a perdermos. Quando, às vezes, a equipa está mais tensa por achar que já devíamos ter a terceira estrela, eu digo: acham que 100% dos nossos pratos servidos a 100% dos nossos clientes foram três estrelas Michelin?
Isso é um nível de exigência muito alto.
Eu já estive em vários estrelas Michelin e em muitos já tive que mandar pratos para trás porque estavam salgados ou já apanhei um cabelo... Quer dizer, a pessoa não pense que três estrelas Michelin é perfeito. A perfeição não existe, o caminho da perfeição é chegar à excelência. À excelência chega-se quando se quer a perfeição e é isso que nós tentamos. O perfeccionismo é, aliás, bastante doloroso porque quando somos perfeccionistas somos demasiado exigentes connosco próprios e culpamo-nos por muitas coisas de que não temos culpa. E por isso, o erro honesto, o erro assumido que nos faz depois ser melhor, faz-nos crescer mais do que sermos obsessivamente perfeccionistas. É importante esse caminho, que se faz em equipa e nunca sozinho.
É importante também o Guia Michelin ter anunciado que Portugal vai ter o seu próprio evento e o seu próprio guia?
Eu acho que é importante porque reconhecem que em Portugal já há suficientes estabelecimentos que merecem ter um guia sozinho. Acho que é também um movimento comercial da parte da Michelin, mas é importante para Portugal. Aliás, eu estive no processo de luta por isso. Se isso vai ditar mais estrelas, vamos ver, tenho dúvidas...
Se não mudarem os inspectores?
Eu acho que a Michelin tem uns critérios… Se pensarmos bem, o mais injusto é que sendo separados, Espanha e Portugal, e havendo depois uma Michelin em Banguecoque, ou uma em São Paulo, comparando um restaurante de cá com um restaurante de lá são completamente diferentes. Por exemplo, o meu Mini Bar avaliando aos olhos da Tasca no Dubai, merecia uma estrela Michelin cá. Não avaliando aos olhos da Tasca do Dubai, comparando com o Belcanto, se calhar era mais discutível. E por isso os critérios que são globais para uma Michelin depois mudam de região para região. Se de repente nasce uma nova região e os critérios são só comparativos com o que existe em Portugal, se calhar temos ou deveríamos ter no primeiro ano, o que não vai acontecer, garanto, dois ou três restaurantes em Portugal a ganhar três estrelas Michelin. Mas depois o que é que aconteceria nos outros anos todos? Tudo tem de seguir uns certos parâmetros de organização, comerciais, de interesses de marketing. Estou sempre a dizer que a única maneira de o mundo mudar, na perspectiva ambiental, é descobrindo algo que dê muito dinheiro, porque infelizmente o mundo guia-se muito por uma visão financeira. A primeira mudança que há, por exemplo, na proibição de fumar nos aviões dá-se porque seria muito mais barato fazer um voo se não tivesse de se fazer um tratamento de ar, não pela preocupação das pessoas ou por incomodar. Eu acho que não conseguimos mudar hábitos em dois anos. Acredito que em praticamente tudo tenhamos de ter capacidade de persuasão, e não é obrigar a mudar hábitos de um dia para o outro, o extremismo assusta muita gente.
E afasta.
E não é por acaso que países que estavam a caminhar para uma direita extremista de repente viraram para uma extrema-esquerda e noutros a caminhar para uma extrema-esquerda começa a ganhar mais força a extrema-direita. Não quero falar de política, mas muitas vezes o centro é muito importante porque nos livra dos extremos e os extremos aproximam-se muito e muitas vezes nas partes negativas. Por isso é que é muito importante termos algum equilíbrio, mas já me estou a desviar completamente da pergunta que já não sei qual era.
Estávamos a falar do Guia Michelin para Portugal, mas o que queria perguntar também é se uma maior união entre os chefs tem dado igualmente uma maior visibilidade ao país. Há mais partilha hoje entre os pares.
Sim, é muito importante. Há grandes amizades. Antigamente, ou éramos amigos, ou não éramos. Hoje, começamos a ser amigos pela profissão porque partilhamos uma paixão que gostamos muito, mas somos todos também embaixadores de um país e por isso acabamos por ganhar amizades. Depois, mesmo não sendo amigos, podemos ser companheiros. Uma coisa importante que acontece muito lá fora, é que as pessoas sabem que, mesmo não gostando de um ou de outro, não vão dizer mal. Eu não gosto daquele, estou calado, guardo isso para mim. Reconheço o valor dele e consigo dizer publicamente que ele é bom e o que tem feito por Portugal. E há uma coisa muito importante, não é por eu poder dizer bem do Messi que não gosto do Ronaldo. Por exemplo, quando se divulgou a estrela Michelin no Encanto houve ataques de pessoas que diziam assim: “Que vergonha, este gajo já tem estrelas, porque é que não divulgam antes o Vasco [Coelho Santos, do Euskalduna].” Acho óptimo que os divulguem, mas é uma estupidez a pessoa fazer este registo de substituição.
Há espaço para todos.
E quantos mais, melhor. As pessoas têm muito esta tendência, se estou a dizer bem deste, estou a dizer mal dos outros. Andamos nestas guerras mesmo malucas. Os espanhóis nisso são brilhantes. Eu posso estar a falar com dez chefs espanhóis no mesmo dia, estarmos numa almoçarada, passarmos o fim-de-semana juntos, como já aconteceu, e eles dizerem para o outro: “Este é o melhor cozinheiro do mundo.” E depois o outro diz: “Este é o melhor cozinheiro do mundo.” E de repente há dez espanhóis que são os dez melhores cozinheiros do mundo.
Destacam-se todos, não é?
Estão todos cá em cima. São todos iguais? Não, são todos diferentes, mas são todos os melhores. E esta necessidade de pôr [alguém] um bocadinho acima porque fez não sei o quê… Ainda por cima uma coisa de subjectividade. Isto não tem a ver com medalhas de ouro dos Jogos Olímpicos, na cozinha não tem a ver com número de estrelas Michelin. Um se calhar é melhor a ter uma equipa que o segue, outro é melhor a fazer não sei quê.
Vão sempre ser diferentes.
Eu lutei muito também pela estrela Michelin do Vasco. Não lutei a trabalhar com ele, isso o trabalho é todo dele, mas muitas vezes referi que ele devia receber, falei com o Guia, inclusive, nesse sentido, com inspectores que me visitavam e me perguntavam. Falava sempre do Vasco como um potencial recebedor da estrela Michelin e acho que esta estrela foi muito importante para o país também porque é a primeira a um restaurante assumidamente descontraído, assumidamente tranquilo, tendo uma óptima cozinha, um óptimo serviço, mas sem qualquer formalismo. É uma estrela marcante. A estrela do Paulo Morais [Kanazawa] foi muito importante também, um restaurante com 12 lugares, de balcão, de uma pessoa que está há muitos anos e que muito tem lutado, é o português mais japonês de Portugal. Foi um ano bom.
Diz que falou com os inspectores. Isso quer dizer que os conhece?
Não. Às vezes [acontece], e nem é todos os anos, que depois da refeição, [os inspectores] vão embora, fecham a porta e voltam a tocar à campainha, voltam a entrar e pedem para falar comigo. Querem saber mudanças que tenhamos previstas. Perguntam, por exemplo, sobre o nosso aluguer, a sua duração, se renovámos o contrato, se vamos fechar para férias. No mundo inteiro isto é assumido e reconhecido e com esses eu falei. E, às vezes, perguntam. Eles têm centenas de restaurantes para visitar, se não tiverem a mínima luz de onde devem ir… Por exemplo, o Go Juu é um restaurante que eu recomendei que fossem visitar e que no ano em que foram fizeram a referência. Não deram a estrela, mas fizeram o reconhecimento. É preciso, principalmente porque até há bem pouco tempo tínhamos zero inspectores portugueses. Era importante terem estas dicas e aí puxamos por quem nós achamos que merece.
E agora, olhando para a frente. Estamos aqui em Cascais. Já falámos muito do ano que passou, mas 2023 traz novidades, como este Maré. É um sonho antigo?
Não sei se é um sonho antigo. Quer dizer, eu nasci aqui muito perto e o Guincho era a praia aonde ia de bicicleta ou a pé. Depois, um bocadinho mais tarde, já numa motinha que só dava 30 a hora. Tínhamos colocado aqui dentro destas propriedades do Cabo Raso uma bandeira que eu via de minha casa, lá de um sítio mais alto, e espreitávamos de binóculos para ver se o vento estava favorável para virmos fazer surf. Sou daqui, nasci aqui, cresci com este cheiro do mar e com as plantas das dunas e por isso vir para aqui é esse sonho antigo. Depois, é um sonho antigo/recente, no sentido em que isto está pronto há três anos e não conseguimos abrir.
É um projecto pré-pandemia?
Pré-pandemia. [Houve] uma série de problemas aqui em termos de licenças que nos transcenderam e que não conseguimos resolver sem ser agora.
O que vai ser este Maré? É diferente de tudo o que já tem?
É diferente, vai ser voltado para este Atlântico. Peixe e marisco, mas também diferente do que existe aqui. Não vou competir com os filetes do Monte Mar, não vou competir com as mariscadas da Lurdes do Mar do Inferno, que é o restaurante que eu mais frequento se calhar, além dos meus, e que eu adoro. Vamos fazer diferente, à nossa maneira.
O que é que isso significa?
Pegar nos bons produtos, mas ter também algumas influências de viagens. Um ambiente mais descontraído, queremos puxar muito por isso também. E depois poder brincar com alguns crudos, com algumas preparações de marinados e de curados, mas sempre com os nossos produtos. Não ter medo de inserir também carne, porque as pessoas também lhes apetece, às vezes, comer carne. Alguns pratos para partilhar, outros para comer sozinho, muitas entradas, alguns pratos totalmente novos, algumas inspirações de outros restaurantes que temos.
E é um restaurante que vai estar sempre aberto?
Ao fim-de-semana a ideia é estar aberto seguido do almoço para o jantar, nos outros tem uma hora de almoço e uma hora de jantar. A nossa ideia era, abrindo fora da época alta, começar a fechar dois dias e depois abrir os sete dias, mas agora não sei bem como vamos abrir. É um restaurante que tem muitos lugares, tanto dentro como fora. Não tenho a certeza se nesta esplanada vamos servir refeições, se vai ser mais um lounge, vamos sentir e ver. Tem esta particularidade de estar completamente em cima do mar, mas com algumas rochas, olha-se à volta e só se vê aqui o Monte Mar, que são uns vizinhos óptimos e não se vê praticamente mais construção nenhuma. Tem este lado também de cheiro de dunas que eu gosto muito. Tem tudo para ser um sucesso, espero conseguir que assim seja.
Sendo que estando em casa já há muitas expectativas...
Imensas.
Ainda por cima, isto estava abandonado há muitos anos.
Acho que nunca tanta gente me perguntou pela mesma coisa como pelo Maré, inclusive já tive mais de dez propostas de compra, investidores que querem comprar o restaurante. Não está à venda. Isto virou palco de muitos personal trainers com muitas pessoas de Cascais que treinavam aqui todas as manhãs, virou palco de muitos piqueniques. Muitas vezes vinha aqui e estavam pessoas até com mesas montadas e a garrafinha de vinho a fazerem piquenique aqui na esplanada. Isto já foi muito frequentado, espero que depois seja frequentado também pelos clientes do restaurante e que gostem e que não me estacionem autocaravanas, que é proibido. Vou tentar acabar com isso e espero que não fiquem chateados comigo por isso. Isto há sempre muitas frentes que temos de lidar, mas de facto já é proibido. Hoje há também aqui muitas reentrâncias neste passeio, que dá para parar o carro facilmente, e por isso estou optimista que vai ser pacífico.
O que é que lhe falta fazer?
Não sei bem. Ontem perguntaram-me o que é que eu sonhava fazer e eu por acaso tenho um sonho pequenino que não tem nada a ver com trabalho, mas gostava de acompanhar umas filmagens da National Geographic na selva para perceber a natureza, mas isso é uma coisa diferente da pergunta que me fez. O que me falta fazer é estabilizar tudo o que temos, fortalecer cada vez mais as equipas, sermos mais unidos. Acho que caminhamos cada vez mais para isso. E, se calhar, a terceira estrela também falta. E acho que me falta conseguir ter tempo para mim, entenda-se família e amigos, para além do trabalho, conseguir desligar e não estar constantemente conectado com o trabalho. Há pessoas que devem ficar chateadas comigo de eu não responder a algumas coisas, mas as pessoas mandam-me mensagens no Instagram para eu fazer reservas. Tenho mais de 300 mil seguidores, se toda a gente resolvesse fazer isso, basicamente tinha de atirar o telemóvel ao mar e ir nadar para esquecer. Estou sempre em falta com alguma coisa, por isso o que me falta fazer é deixar de sentir que estou em falta e sentir-me realizado com tudo o que fizemos.