Vítor Sobral
Francisco Romão Pereira
Francisco Romão Pereira

Vítor Sobral: “Digo o que penso. Se isso é mau feitio, então tenho mau feitio”

A caminho dos 40 anos de carreira, Vítor Sobral estreia-se em Cascais com um projecto ambicioso, a Lota da Esquina. Falámos com o chef sobre tudo: o novo restaurante, o estado do sector, o fine dining e a cozinha tradicional, o Guia Michelin.

Cláudia Lima Carvalho
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Não tem papas na língua, apesar de dizer que já não se chateia tanto. Pelos menos tenta que assim seja. A não ser que o tema seja alimentação, ou a fraca alimentação. Aí, não há quem trave a luta do chef. Temos de comer melhor, saber escolher o que compramos, mesmo que isso signifique gastar mais, e já agora também apontar às mesas certas – como a Lota da Esquina, que acaba de abrir em Cascais. Vítor Sobral, 55 anos, chegou em grande à Linha, ocupando parte do edifício da Docapesca, junto à Baía de Cascais. São cerca de dois mil metros quadrados, o seu maior projecto – e ainda falta uma esplanada, que terá capacidade para cerca de 200 lugares. O espaço é um, mas a Lota da Esquina engloba, na verdade, três conceitos: um restaurante de peixe (Mar), outro de carne (Terra) e um bar com espaço para dança. Por agora, só o piso térreo, dedicado ao mar, funciona em pleno. O bar abre na próxima semana e a parte dedicada à carne inaugura em Outubro. 

As cartas são aquelas que já conhecemos, mais novidade, menos novidade, de outros restaurantes de Vítor Sobral: olá, Peixaria da Esquina; olá, Talho da Esquina. Mais do que menu fixo, o chef está focado no produto. “Recebi um atum do Algarve que está espectacular, vou ter de mandar uma entrada de atum”, diz-nos, assim que nos sentamos à mesa, para logo de seguida nos fazer chegar um tártaro de atum (18,50€) fresquíssimo. “Esta carta vai depender muito do que está disponível no mercado. Agora tenho sardinhas para grelhar, tenho raia, tenho lulas, mas há alturas que não vou ter.” Não é por acaso que nas entradas, que também podem fazer uma refeição de partilha, há pratos como o ceviche de peixe branco (20,10€) ou como o peixe marinado com citrinos, mirtilos, tomate assado e amêndoa (19,50€), que não identificam o peixe usado – é o que houver fresco no dia, e naquela localização é difícil que não exista uma boa oferta (neste dia, foi o lírio o escolhido). “No fundo, vamos acabar por mudar a carta todos os dias”, explica Sobral, que mantém em Lisboa a Tasca da Esquina, a Taberna da Esquina, o Pão da Esquina (antiga Padaria da Esquina) e o OTRO. Nos Açores, na ilha Terceira, o chef tem ainda a Oficina da Esquina. Em Cascais, tudo acaba por casar. E há pratos que o acompanham há muito. Não por acaso, Vítor Sobral pede-nos que a escolha dos pratos principais fique nas nossas mãos, mas não deixa de dar uma dica: um arroz, uma massada ou até uma moqueca. “Por exemplo, tenho a moqueca de bacalhau [e camarão, 32,50€], mas se quiser comer uma moqueca de camarão ou uma moqueca de peixe, ou uma moqueca de lagosta, pode fazê-lo”, conta. “Tudo pode ser grelhado, mas também pode ser em arroz, em massa, em moqueca, em caril. O cliente é que escolhe”, continua. 

Já na carne, quando chegar essa altura, a carta será mais fechada. “Tenho a vantagem de saber sempre, mais ou menos, que carne é que tenho. O mar é sempre uma incógnita.” Quando perguntamos o que lhe dá mais gosto cozinhar, não hesita: é igual. “Se me perguntar o que mais como hoje, eu diria peixe, mas na carne, se estivermos a falar de orelha, de focinho, de rins, de molejas, de pés de porco, de dobrada, sou completamente perdido.”

Vítor Sobral
Francisco Romão Pereira

Este é o maior projecto que tem em mãos em muito tempo. 
Sim, é verdade. Eu abri a [Cervejaria] Lusitana, que era mais ou menos isto, mas criei uma estratégia com as Esquinas, em que os restaurantes nunca têm mais de cem lugares, têm sempre menos. E aqui as coisas são maiores. Tanto o Mar como a Terra são maiores do que habitualmente as Esquinas são. 

Porquê este passo agora?
A Câmara [de Cascais] tinha este espaço a concurso, e fomos desafiados a concorrer. A premissa era enaltecer o que vem do mar, a profissão do pescador e a importância que ela tem tanto na nossa cultura, como na economia. Essa foi a grande motivação para abraçar este projecto. 

Então como é que entra aqui o Terra?
Não dava para fazer um restaurante de 400 lugares só de peixe. Nós sentimos que era importante trazer a componente Terra para o projecto. Trazer um bar que representasse um bocadinho as comunidades todas que existem em Cascais, um bar que vai ter bebidas e cocktails do mundo inteiro e um sítio onde as pessoas com a minha idade podem vir beber um copo e, se lhes apetecer dançar, também podem dançar. 

Isso é uma novidade no seu universo. 
É. 

E como é que olha para isso? 
Um espaço desta dimensão vai ter a sua maturidade, vai evoluindo, e nós vamos ter que nos reajustar um bocadinho ao público. Isto faz-me lembrar muito quando fazemos uma carta. Temos uma coisa na ideia, mas depois o público também vai definir como é que a carta evolui. [Aqui], a carta de baixo é resultado de um trabalho de anos, que tem a ver com a Peixaria da Esquina, porque é muito parecida. A carta do piso de cima vai ter também muitas semelhanças com a do Talho da Esquina. São conceitos que já estão testados, ensaiados. Vai ter reajustamentos, como é evidente, mas aquilo que posso dizer que não está testado é este conceito de bar. A evolução da música, da parte do bar, depende do público que vamos atrair. Tenho consciência que a própria decoração não é uma decoração que atraia um público mais jovem, é para um público mais maduro, não é? Mas quem sabe. 

Mas pensou o bar como resposta à tendência crescente de restaurantes com espaços de dança?
É assim, eu abri o Alcântara Café, e na altura havia o Alcântara Mar, onde se podia dançar. Havia o Plateau, a Gare Tejo, a Kapital, o Kremlin. Havia imensas discotecas emblemáticas. Depois mais tarde surgiu o Lux. Havia uma oferta muito grande em Lisboa de sítios para se dançar. Quando fiz a Escola de Hotelaria no Estoril, era o contrário. Não havia em Lisboa, havia em Cascais. Havia no Autódromo o 2001, o Coconuts, o Casino. Havia um monte de discotecas, até para o Cartaxo íamos. A [Avenida] 24 de Julho, entretanto, foi evoluindo, o estilo de consumo foi-se modificando e os bares que existiam na Linha do Estoril foram desaparecendo – e a rapaziada com mais experiência deixou de ter sítios para sair à noite. A própria oferta a nível mundial modificou-se. As pessoas querem muito estar num restaurante e, depois de jantar, ficar um bocadinho a conversar, a beber um copo, e nalguns casos, dançar. Acho que Madrid foi pioneira nisso. No fundo, [estamos] um bocadinho a seguir essa tendência. 

Chegar a Cascais, antes de ter sido desafiado, era um desejo?
A verdade é que se não tivesse havido o desafio da Câmara Municipal talvez fosse mais difícil. Nunca nos podemos esquecer que eu, em primeiro lugar, sou cozinheiro. Ser empresário é quase uma consequência. 

Que consome tempo, imagino. 
Não consome só tempo. Ao longo da minha vida, e já vou fazer 36 anos como cozinheiro, nunca tive grandes parcerias, para que pudesse evoluir para outros voos. Tudo aquilo que fiz foi com recursos próprios. E acho que nasci com alguma capacidade técnica e habilidade para cozinhar. Depois tentei evoluir como cozinheiro, mas ninguém me ensinou a ser empresário. Isso foi uma coisa que aprendi com experiência e muitas das vezes foram experiências amargas. 

Foi preciso que algumas corressem mal?
Não foram algumas, correram muitas mal para eu perceber o que era possível fazer bem feito e o que não era. A verdade é que a minha tendência natural não é ser financeiro, é ser cozinheiro. Faço-o porque fui quase obrigado. Isso também condicionou muito determinado tipo de conceitos e espaços. A minha maior aventura como empresário foi a padaria.

Porquê?
Foi onde tive de investir mais dinheiro na minha vida e achava que o mercado estava muito ansioso para comer um pão bom de fermentação natural – e não é verdade.

Mas não correu bem?
A padaria corre bem, não correu foi à velocidade que eu estava à espera. Para mim, como cozinheiro e como alguém que se preocupa com aquilo que come e com aquilo que dá de comer, faz-me imensa confusão como é que a maior parte das pessoas come diariamente um pão que é mau. Como é que as pessoas não se importam em comer pão bom?

Será que não entendem a diferença?
Há aqui dois problemas. Se não comemos uma coisa que é bem fermentada, é uma chatice. E, depois, se eu comprar um pão bom, ele dura uma semana, não se desperdiça. Temos de estar atentos. Como sociedade civil e como profissionais, não pode haver desperdício. Tudo o que é confeccionado tem de ser aproveitado. Se mato um porco, tenho de cozinhar tudo do porco. Se eu vou cozinhar só o lombo e a parte supostamente nobre, o que é que faço com o resto? E não existem produtos mais ou menos nobres. Existe é capacidade de cozinhar, mãozinhas. Há coisas que são boas feitas de uma maneira e outras de outra. O que faz realmente a diferença no preço é a oferta e a procura. Eu, como cozinheiro, não consigo entender como é que alguém olha para um frango biológico, que custa 18 ou 19 euros, e outro que custa 3, e não percebe que tem de haver ali uma diferença. Se não posso comer frango todos os dias, está tudo certo. Como feijão, como arroz, como grão, mas quando vou comer uma proteína [animal], tem de ser boa.

E convém saber de onde vem… 
Eu prefiro uma sardinha fresca, um dos meus peixes preferidos, a um robalo que vem de uma aquacultura duvidosa. Como também prefiro comer pezinhos de porco ou orelhas de porco, em vez de comer frango do aviário. 

Mas isso também tem a ver com poder económico. Quem tem menos dinheiro não tem tanta hipótese de escolha.
Não acho que tenha a ver com poder económico. Por exemplo, a carne bovina. Em Portugal, todo o gado bovino que existe é de pasto. Se eu não consigo comer bife do lombo, como carne de terceira e guizo. Demora só mais tempo. 

Lota da Esquina
Francisco Romão PereiraTártaro de atum

Então como é que se muda essa mentalidade?
Temos de nos importar com o que comemos. Não adianta dizer que não há médicos, não adianta dizer que não há hospitais para nos receber, se nós próprios também não temos cuidado com aquilo que comemos. Independentemente da condição financeira, temos de nos preocupar com o que comemos. E comermos bem tem a ver com reprogramarmos a nossa cabeça, para irmos à procura das coisas. As miudezas, por exemplo, sejam elas de peixe ou de carne, existem imensas, dão para fazer coisas maravilhosas. 

É preciso saber. 
E é preciso programar. Eu tenho uma vida um bocadinho ocupada. Trabalho umas quantas horas por dia, tenho uma série de gente a meu cargo, tanto em Portugal, como no Brasil, e tenho tempo para ir todos os sábados ao mercado fazer as minhas compras. E compro o peixe num sítio, os legumes noutro, e se tiver de ir a outro lado, vou. Tiro o sábado de manhã para fazer isso. Se estiver em viagem, programo antes e deixo as coisas preparadas. Tem a ver com prioridades. E se queremos ser bonitos, por dentro, temos de ter cuidado com aquilo que comemos. Nos meus restaurantes preocupo-me com isso. Não quero que os meus clientes tenham más digestões, então tiro a pele ao tomate, a pele ao pimento. Não frito ou refogo as coisas com más gorduras, só uso gorduras boas. 

E os clientes têm essa noção?
Acredito que alguns deles sim, porque já não sou propriamente um menino. Mas há outros que se calhar não notam. É uma coisa que me custa imenso. Por exemplo, se meto um pastel de nata na boca, ou outro doce qualquer, e cola ao céu da boca, dificilmente foi feito com manteiga. Foi feito com margarina. Vou comer um doce feito com margarina? Sabem como é que a margarina é feita? Já pensaram nisso? Se forem ver, mãezinha do céu! Portanto, tudo o que é processado não entra nas minhas cozinhas, nem em minha em casa. Acho que isso faz diferença na digestão dos meus clientes, na saúde dos meus clientes e também no paladar, como é evidente. 

Há uns anos gerou controvérsia quando disse que umas certas papas infantis eram um veneno. Acha que hoje já seria mais bem compreendido?
Eu inclusive já gerei controvérsia quando era consultor do Pingo Doce e ensinei a hibernar a sapateira para não a matar com vinagre. De repente tenho alguém da protecção dos animais a dizer que eu era um assassino, e eu só estava a ensinar a forma mais fácil de sacrificar um animal sem ele, no fundo, sentir a dor. Se eu lhe der frio, ele hiberna, e então quando eu o vou cozer, ele está morto. 

Até porque o vinagre asfixia. 
De certeza que não é uma morte boa. Tudo o que fiz foi chamar a atenção para aquilo que as pessoas dão de comer aos filhos. Eu como pai – tenho um filho com 33 anos, outro com 18 e outro com 6 – sempre tive essa preocupação e sempre fui ensinado e criado assim. Se posso, com o meu conhecimento, ajudar as pessoas, acho que tenho esse dever. Uma das coisas pelas quais luto muito, e agora inclusive estou num projecto com um grupo de médicos, é que os médicos têm de saber mais de alimentação técnica porque eles têm mais autoridade para dizer o que uma pessoa deve fazer. Quem é um cozinheiro para falar? Evidente que ao longo dos anos adquirimos conhecimento e informação, mas a nossa formação não é em medicina. Tem de haver aqui uma ponte. Não me cabe na cabeça fazer uma sopa com fécula de batata – e acontece muito. Isto tudo me custa e então sempre que tenho oportunidade de falar chamo à atenção. Outra das coisas que também sempre achei é que o Guia Michelin – e não tenho nada contra o Guia, acho que é importante – julga-nos com um padrão de conhecimento e com uma matriz de uma cozinha que não é a nossa. 

Lota da Esquina
Francisco Romão PereiraMoqueca de bacalhau

Falta-lhes conhecimento da nossa gastronomia?
Eu acho que melhorou, mas falta muito conhecimento sobre os nossos hábitos, os nossos costumes, os nossos produtos e a nossa raiz de cozinha. Não é por acaso que somos o país da Europa que mais arroz come, não é por acaso que somos o segundo país do mundo, ou o terceiro, que mais peixe come. Somos o maior produtor de queijo de ovelha. Ao nível de carnes temos uma diversidade que é única, tanto que a nossa cozinha é simples. Porquê? Porque a matéria-prima é muito boa. Quanto menos se tocar... E tudo isso são coisas que passam um bocadinho ao lado de quem se habituou a uma cozinha internacional com um determinado padrão. Eu nunca seria o cozinheiro que sou se não tivesse estudado em França, se não tivesse aprendido uma técnica culinária mais evoluída. Eu acho que hoje os cozinheiros portugueses, pelo menos aqueles que de alguma maneira se empenharam, tecnicamente são muito mais competentes do que os outros, porque conhecem a cozinha espanhola, a cozinha italiana, a cozinha francesa, a cozinha alemã, a cozinha chinesa e japonesa, e os outros só conhecem a deles.

É por isso que até hoje, e apesar de todo o reconhecimento, nunca entrou para o Guia Michelin?
Não, eu acho que não estou no Guia Michelin em função de tudo aquilo que tenho dito sobre o Guia Michelin.

Acredita que é isso que o tem posto de fora?
Não tenho a menor dúvida. Não que eu tenha a ambição de ter alguma estrela, não tem a ver com isso, mas acho que por aquilo que fiz pela cozinha portuguesa, por aquilo que eu sou como cozinheiro, ao tempo que sou, para quem tem 24 livros de cozinha, não ter sequer a morada dos meus restaurantes no Guia Michelin, tenho que confessar que acho estranho. Só estou a falar da morada e do telefone. 

Mas alguma vez tentou compreender?
Eu não tenho de compreender. É assim, tenho de aceitar. Se eu resolvo ter uma postura pública em que critico o Guia, [defendendo] que não têm capacidade de julgar, depois também tenho de aceitar as consequências. Acho que não é de bom tom, mas quem sou eu para dizer isso? Eu tenho de assumir as minhas atitudes. E se para manter as minhas atitudes tiver que ser penalizado em determinadas situações, neste caso no Guia Michelin, serei. É uma opção da minha parte. 

E dorme mais descansado?
Pelo menos fico melhor comigo próprio. Tive de chegar, não diria a velho, mas a muito experiente, para ter parceiros para poder fazer projectos diferentes. Por outro lado, tive o privilégio de começar a viajar muito cedo, de conhecer muitas culturas gastronómicas, de representar Portugal muitas vezes em eventos gastronómicos. Portanto, ao longo destes anos todos consegui adquirir bastante experiência internacional e ver o que é que os outros faziam e o que é que nós fazemos. Viajar como turista ou viajar para cozinhar é diferente. Quando trabalhamos fora, constatamos muito o que são os fenómenos sociais de cada país e aprendemos. Depois também há outra coisa muito importante na cozinha: quanto mais pobre é o povo, mais engenho tem. E a nossa cozinha é um exemplo maravilhoso disso. Com muito pouco, faz-se uma coisa maravilhosa. Um bocadinho de água, umas ervas aromáticas e um fiozinho de azeite, uma proteína ou não, e alho, e está. E isso é uma prática, há quem não entenda e veja isso de uma forma errada. 

[Vítor Sobral volta à questão da alimentação.]

Depois há a massificação das coisas. Ninguém quer deixar de comer carne ou peixe todos os dias, e o que temos é de comer bem. Outra coisa que se criou também foi um estigma sobre determinadas coisas, como as miudezas, a gordura... A gordura é maravilhosa, desde que seja boa, não podemos é comer um quilo. Nós sabemos que cerca de um grama de gordura são oito a dez calorias, então temos de comer em função disso. 

Mas não acha que isso está a mudar e que as pessoas hoje estão mais atentas?
Acho que sim, mas acho que para os 36 anos que tenho como cozinheiro, a mudança é muito lenta. Por exemplo, em relação ao pão, não consigo entender. Sabe porquê? Quando eu vim ser cozinheiro para Lisboa, havia 13 ou 14 padarias de verdade. Hoje não há nada e as pessoas não fazem essa pergunta. Os bolos são enormes, os salgados são imensos. De repente uma pessoa come aquilo e parece que está a comer esferovite, não questionam?

Isso não será também uma consequência de tudo se ter tornado muito visual, à boleia das redes sociais?
Pois, eu agora vou responder de uma forma muito maliciosa. Como cozinheiro, até com as mulheres, se eu não tocar, não cheirar, se não saborear, se não ouvir, fica difícil julgar. O primeiro sentido que existe é a visão, mas é aquilo que mais nos engana. Se o mundo vive e gosta de ser enganado, o que é que vamos fazer? O que é que adianta um prato muito bonito se depois for tudo uma desgraça? Na minha cozinha, preocupamo-nos com tudo. Agora, como é evidente, não vou prescindir do resultado todo só pela parte visual. 

Diz que a mudança está a ser lenta. Não se sente cansado?
Eu, não. Na verdade, tenho tido uma matriz de trabalho que de alguma maneira tem dado resultados. Financeiramente, houve coisas que não correram da melhor maneira, mas nunca em Portugal alguém escreveu que o Vítor Sobral, ou a equipa do Vítor Sobral, não soubesse cozinhar. Nessa parte, sinto-me gratificado. Mais, não há ninguém na minha equipa à frente da cozinha que, no mínimo, não tenha sete ou oito anos de trabalho comigo. Para aqui, para arranjar a equipa como queria, fechei a Peixaria da Esquina. Houve outras circunstâncias e a pandemia também ajudou nesse sentido, mas eu já tinha isso em mente: fechar a Peixaria, para trazer para aqui a equipa, porque tinha consciência de que não conseguia formar gente suficiente para abrir em Cascais com a cozinha que queria. 

Só assim é que é possível?
Só assim, e depois existe também o rigor. Se for ver as bancadas, cada uma tem o seu dossier com as fichas técnicas. Se abrir os frigoríficos, vai ver que cada prato está arrumado, o alho está laminado sem o broto, o pimento está cortado sem a pele. É tudo igual. Há uma matriz de trabalho e um rigor nesse trabalho. Eu sou um pica-miolos do pior no início, depois relaxo. Mas no início, às vezes, até a mim me custa ouvir-me. 

É por isso que é conhecido por ter mau feitio?
Eu não sei o que chamam de mau feitio. Sou exigente, defendo as minhas equipas. Tenho cozinheiros a trabalhar comigo há 25 anos. É porque não os trato mal. Na pandemia não despedi ninguém. Na verdade, criei uma dificuldade muito grande na minha empresa porque não despedi ninguém. Eu tinha 128 pessoas quando a pandemia rebentou. Não ia mandá-las para o deus-dará para depois ir buscá-las. Aconteceu muito isso. Há muita gente a queixar-se de falta de mão-de-obra, eu também tenho, mas diria que tenho 10%. Porquê? Porque tenho uma forma diferente de tratar as pessoas. Se isto é mau feitio… Tenho é o problema de dizer o que penso. Se atribuírem isso a mau feitio, então eu tenho mau feitio. O que tenho para dizer não deixo de dizer a ninguém. 

E isso não lhe traz agruras?
Traz, mas quando não digo é porque ou o tema para mim já morreu ou a pessoa deixou de existir. A quantidade de ex que eu tenho, nem imagina. Tenho muitos. Às vezes faz-me alguma confusão como é que eu consigo ter tantos, mas tenho. Quando uma coisa não corre como acho que tem de correr... 

Voltando ao tema da falta de mão-de-obra. Recentemente, numa entrevista, o chef Miguel Rocha Vieira defendeu que o problema do sector é que durante muito tempo não se valorizaram as pessoas…
Eu acho que o problema não é só esse, mas é verdade. O problema tem também a ver com o preço. Tem a ver com não haver uma fiscalização direita, porque há muita gente que foge ao fisco na restauração. Tem a ver com pagar ordenados por fora. Tem a ver com tudo isso. E também tem a ver com [o facto de] vendermos refeições muito baratas para aquilo que as pessoas recebem. Eu não consigo perceber como se vende um menu a sete ou oito euros. Não consigo. Vamos falar de sardinhas. Um quilo de sardinhas custa seis euros. Soma-se água, luz, renda, tudo. Eu posso vender sardinhas a sete ou oito euros?

Esses sítios também são mais pequenos, têm menos gente a trabalhar, são duas ou três pessoas, e têm uma maior rotatividade nas mesas, não?
Mas essas duas ou três pessoas têm de pagar Segurança Social também, impostos, digo eu. Vamos falar de Campo de Ourique, onde existem 23 pastelarias e padarias. Será que todas pagam impostos? Só estou a perguntar, não estou a dizer que não pagam. Há público para todas? 

Mas isso também não se muda de um dia para o outro. 
Evidente que não muda, mas o que acho é que temos de vender mais caro. Não faz muito sentido atravessarmos a fronteira e em Espanha, em Madrid, uma refeição normal custa 60 ou 70 euros, se formos para Barcelona se calhar já custa 80, para Paris 100 e por aí fora. 

O poder de compra não é outro?
Então se calhar temos de aumentar também os ordenados das pessoas. No Luxemburgo, um café custa seis euros, mas as pessoas ganham três mil. Se eu bebo café, ou não, é uma opção minha. Portanto, alguma coisa tem de se fazer. Tem de se valorizar a profissão, sem dúvida, mas a vender refeições a oito e nove euros, como é que se valoriza a profissão? Há qualquer coisa que não bate certo, os negócios depois têm que ser rentáveis, têm que arranjar receita para pagar as despesas. 

A sustentabilidade também passa por aí. 
Sim. Na pandemia, eu acho que houve muita gente que foi despedida e pensou: ‘Não quero trabalhar mais na restauração porque não é um sítio seguro’. A pandemia penalizou. Só havia duas hipóteses: ou despedir as pessoas todas e fechar as casas, ou criar dívida para pagar sabe-se lá quando. Acho que já é importante e bom quando temos consciência que temos de pagar e temos vontade de pagar, mas muitas vezes também não depende só de nós, e isso fez com que as pessoas fossem para outras áreas de actividade. Depois existe uma coisa que é o fundo de desemprego. Não percebo como é que há falta de mão-de-obra. Aqui, por exemplo, não encontrava ninguém para fazer a limpeza a ganhar 80€ por dia. Como é que há pessoas no desemprego? Não consigo entender. Mais uma vez, tenho de falar de uma coisa que é polémica, mas provavelmente recebem o fundo de desemprego e depois fazem uns biscates e recebem por fora. Eu não estou a dizer que acontece, mas é uma coisa que presumo que aconteça porque é a única explicação. E estamos a falar de trabalhos sem uma formação específica, há falta. Para me darem um orçamento para fazer a limpeza deste espaço…

A sério? 
E atenção, uma coisa que é minimamente bem remunerada. O que se paga normalmente para uma limpeza de uma obra é bom. Isso também é um factor que conta para haver falta de mão-de-obra no sector. A outra, já que estou a ser assim tão frontal e directo, é a hipocrisia. Se não tivéssemos hoje em dia brasileiros a trabalhar na restauração, o que seria de nós? Como é que funcionávamos? Como é que servíamos à mesa? A imigração em Portugal é fundamental e é fundamental dentro das cozinhas.

Mas por que é que é hipocrisia? Onde é que está a hipocrisia?
Porque nós não fazemos as coisas muitas vezes de forma legal para podermos ir buscar recursos humanos a países que neste momento têm excedente, como é o caso do Brasil, da Venezuela, de Cabo Verde, ou Bangladesh. 

E que aceitam condições inferiores?
Isso é mentira. Eu tenho 12 ou 13 nacionalidades a trabalhar comigo e as condições são iguais. Isso é outra coisa que também eles rapidamente percebem: quem os trata bem merece consideração. 

Lá está, passa sempre pela valorização. 
As empresas têm de ter uma cultura de trabalhar o melhor possível com as pessoas. Tentar dar as condições mínimas de trabalho, tentar dar um ordenado que de alguma maneira compense o trabalho que fazem, se há uma receita extra também compensar as equipas com essa receita extra. Parece que não é uma coisa importante, mas as refeições dos colaboradores têm de ser cuidadas: não podem comer mal, têm de comer bem. Tudo isso é um somatório. Os próprios horários… ‘Ah, hoje a restauração é complicada porque trabalhamos sábados e domingos e fazemos horário repartido’. Sim, mas na restauração podemos levar 300, 400, 500, 600 euros para casa de gratificação, fora o ordenado. Almoçamos e jantamos todos os dias. Não é só coisas ruins.

E como é que olha para a cena gastronómica actual?
Portugal nunca teve produtos tão bons e restaurantes tão bons. Agora, o que eu acho é que hoje há um grande excedente de restaurantes de fine dining e poucos restaurantes que defendam, no fundo, aquilo que são as nossas tradições. É o que eu acho, mas também é assim, se não achasse não teria feito o percurso que tenho feito até agora. 

Ia perguntar-lhe precisamente isso. A gastronomia tem vindo a ganhar espaço mediático, mas se calhar também muito mais focado na cozinha de autor e não tanto na tradicional. 
Mas a cozinha de autor não tem nada a ver. Pode ser de autor tradicional. Eu acho que há três cozinhas que um país normalmente tem: cozinha regional, que é feita nas regiões; cozinha tradicional, que é uma cozinha que passa de geração em geração; e depois a dita cozinha de autor, que pode ser tradicional, regional ou contemporânea, neste caso fine dining. Todas elas podem casar.

Mas porque é que acha que houve essa viragem para haver tantos restaurantes de fine dining?
Vou dizer uma coisa horrível: porque é mais fácil de fazer. 

Acha que é mais fácil? Como é que explica isso?
Não são todos os cozinheiros que têm mão para fazer um arroz ou para fazer uma massa no ponto. Se eu montar um prato em que faço a ficha técnica, tudo pesado, é só não errar. Então é mais fácil. Também existe muito mais conhecimento. Eu hoje sei que a proteína do peixe se desintegra acima dos 58 graus, sei que a da carne a partir dos 64/65 também se desintegra. Sei essas coisas todas e também sei que um cliente está disponível a pagar mais caro por cinco pratos muito bem decorados do que por um tacho que leve um cherne de arroz. Todas essas coisas fazem com que haja um caminho nesse sentido. Nós é que ensinámos os orientais a fazerem fritos, mas eles hoje fritam melhor do que nós. Fazer peixe frito tem ciência. A vinha d’alhos do peixe é importantíssima, é preciso fritar e não cozer o peixe. É uma coisa altamente profissional. Sempre que marco como sugestões filetes de peixe, jaquinzinhos, filetes de sardinha fritos, frango frito, sai à pazada. Por causa da pandemia, cresci no takeaway e hoje tenho essa linha montada. Sempre que marcamos como sugestão fritos, saem em barda. 

Porque é difícil de os encontrar com qualidade?
É difícil encontrar quem tenha mão para fazer isso. É mais fácil treinar uma equipa para fazer fine dining, tecnicamente – porque hoje temos um conhecimento técnico elevado e os pratos são montagens –, do que fazer uma coisa que depende muito mais da sensibilidade e do olho.

Mas como cliente não gosta de ir a um fine dining?
Gosto. Quando é dia de festa, para o meu dia-a-dia, não. 

Certo, mas o que é que o surpreende num fine dining?
É assim, eu tenho colegas com quem me dou muito bem e que fazem uma cozinha com um perfil completamente diferente daquilo que é o meu e eu adoro ir comer aos restaurantes deles. Já fui ao Belcanto [de José Avillez] e a surpresa foi fantástica. O Henrique Sá Pessoa sempre que faz um menu novo convida-me para ir provar e eu gosto imenso, acho a cozinha do Henrique muito inteligente. O Rui Paula também tem uma cozinha um bocadinho para o cliente que procura aquele tipo de produto. O João Rodrigues, quando estava no Feitoria, tinha uma cozinha que também acho interessante, o Rui Silvestre também. No Porto, estou a lembrar-me do Pedro Lemos, que faz uma cozinha meio fine dining, meio regional, como o [Óscar] Geadas faz lá em cima e o Diogo [Rocha] faz na Quinta de Lemos. Portanto, são tudo sítios de que gosto bastante. Agora, não são sítios onde fosse comer todos os dias. 

Claro, diria que nem esses chefs o fazem. 
O Pedro Pena Bastos também agora está a fazer um excelente trabalho no Ritz. Todos eles têm, na verdade, excelentes cozinhas, mas não são coisas que se comam todos os dias. Eu quero muito que os restaurantes deles estejam cheios porque depois sobram clientes que também não vão comer todos os dias a comida que fazem. Mas, por exemplo, se estivermos a falar do Kiko. Ainda ontem jantei no último restaurante que fez e não digo que iria todos os dias, mas se calhar duas vezes por semana, sim.

Mas estamos a falar de perfis e experiências diferentes. 
Evidente, é tudo isso. 

Lota da Esquina
Francisco Romão Pereira

E tem o reconhecimento desses chefs todos? 
É evidente que sim, até pelo trabalho que tenho feito. Eu não faço fine dining porque não é uma cozinha que me dê prazer. Mesmo a cozinha do OTRO, que é mais sofisticada, mete mais trufas, mais foie gras, mais caviar, não deixa de ser uma cozinha, eu diria, clássica, sem pretensões a ser fine dining. 

Como é que olha para a crítica?
Olho bem, e acho que as críticas quando têm razão de ser são bem-vindas, porque nos ajudam a crescer e a melhorar. Agora, a crítica feita de forma gratuita porque alguém de repente tem acesso ao Instagram, a uma plataforma digital, e não faz a menor ideia do que está a dizer, essa normalmente eu não leio porque depois tenho sempre aquele problema que é responder, e toda a gente me diz que não posso. Então tento não ler. 

Isso foi o que aconteceu há uns anos quando ameaçou com um processo em tribunal um cliente que tinha feito uma crítica?
Eu não ameacei, eu fiz o processo. A pessoa foi tão cobarde que não apareceu. 

O que é que o chateou nesse caso?
Eu fui ver às imagens o que é que ele tinha comido e ele só tinha comido um creme queimado e criticou oito pratos. Está lá a filmagem, está lá a conta dele. Eu tenho a prova. Alguém que critica oito pratos, come um… Acho que estou no direito de me defender. E desta vez não publiquei, mas houve alguém que foi pôr [em causa] o meu bom nome nas redes sociais. Mais uma vez, o que eu fiz, e por isso é que existe a lei, foi pôr um processo por difamação. E, olha, vai ter que me indemnizar agora. 

Mas também por ter feito uma crítica negativa?
Sim. Não podemos falar gratuitamente aquilo que nos apetece. Hoje existe muito esse hábito. Ou são pessoas que não têm conhecimento ou, porque alguém criticou, criticam a seguir. E essas não são críticas bem-vindas.

O problema da crítica é quando não é formada?
Exactamente. É importante sermos criticados quando as pessoas têm capacidade de o fazer. Sobretudo, já agora, com a nossa comida. 

Mas nem todo o cliente tem um conhecimento gastronómico.
Por isso é que existem críticos gastronómicos. Existem críticos de teatro, críticos de cinema. Tudo isso. Imaginem eu ir a uma função pública e de repente estou a escrever mal dos funcionários públicos todos. Não tenho esse direito. A crítica tem sítio e espaços para ser feita e acho que as pessoas podem dizer que não apreciam. ‘Olhe, eu fui a este restaurante e não apreciei’. Não é preciso fazer um descritivo. Ou então dizerem assim: ‘A sopa estava fria, a sopa estava azeda, não tinha sal, o pão estava rijo, o peixe estava muito grelhado, estava seco’.

As redes sociais e outras plataformas do género são uma pressão extra por isso?
Para mim, que não leio, não. Sei que são importantes hoje, sei que é uma ferramenta importante, e por isso é que tenho uma agência a trabalhar comigo a imprensa e o marketing. Tenho perfeita noção de que não tenho capacidade emocional para gerir. 

Ferve muito rápido?
Não é uma questão de ferver. Se alguém tem o direito de escrever uma coisa sobre mim, está a dar-me o direito de eu responder. 

E há uma imagem pública que pode ser afectada por isso, não é?
Não percebo bem porquê. Se a pessoa teve o direito de me dizer, porque é que eu não tenho o direito de lhe responder no mesmo formato? Desde que eu responda de uma forma educada, quando a pessoa foi educada comigo, está tudo certo.

Vítor Sobral
Francisco Romão Pereira

Então e o que é que lhe falta fazer? Entre televisão, livros, restaurantes... Como é que arranja tempo para tudo?
Tenho bastante energia e alimento-me de fazer. O que me falta fazer, na verdade, é tomar conta direito do que já tenho. Dificilmente irei fazer muito mais coisas, a não ser que seja um projecto bastante desafiante. Se calhar, gostava de ter uma tasca maior em Lisboa. Também acho que Lisboa gostava de ter um restaurante de carne como eu penso a carne, pensando em aproveitar tudo o que existe do animal. E, depois, tudo o que eu puder fazer para ajudar as pessoas a comer melhor, gostava de continuar a fazer. Gostava de ter capacidade para poder fazer mais livros, mas cheguei a um patamar que, se não tiver apoio para fazer livros, não adianta fazer só por fazer. Ou faço naquele patamar, ou não vale a pena. Os meus dois últimos livros têm uma componente técnica relevante porque tive esse apoio. São livros que têm não só receitas. Vale a pena fazer livros se for assim. Se for explicado o porquê daquele livro. Não acho que valha a pena fazer livros de receitas. Já fiz tantos…

Mas entre tantos livros, ainda tem ideias para mais?
Acho que me falta fazer um livro sobre o mar português, falta-me fazer um livro sobre a terra, as carnes. Não há um livro de queijos nem de pão português, como eu acho que devia existir. Ainda por cima tenho este privilégio, já andei por tudo quanto é canto. E aquilo que, na verdade, me falta fazer é colocar Portugal o mais para cima possível. Ainda há pouco tempo participei num projecto de vinhos para uma cadeia de supermercados da Alemanha e ouvi que o grande defeito do vinho português é que é barato, e então a percepção é de que não é bom. 

Conversas na cozinha

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