Dark Kitchens, Food Riders, Embalamento
©Gabriell VieiraFood Riders
©Gabriell Vieira

Quem tem medo das cozinhas fantasma?

As dark kitchens espalharam-se pela cidade e trocaram o empratamento pelo embalamento. Terão fragmentado a ideia de restaurante como conhecíamos até aqui?

Sebastião Almeida
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O tilintar dos talheres dos clientes na sala não se ouve ao longe. Foi substituído pelo barulho de exaustores. Os pedidos chegam através de múltiplos tablets dispostos em bancadas, e não de empregados apressados que entram e saem de bloco na mão. Os estafetas, com as suas mochilas quadrangulares, verdes ou amarelas, fazem vez para que lhes sejam entregues os sacos com a comida que irão levar à casa de desconhecidos. São assim as cozinhas e os restaurantes virtuais, que já eram uma realidade em vários países da Europa e nos Estados Unidos, e que a pandemia veio potenciar em Portugal. Alguns referem-se a estes espaços como dark kitchens ou cozinhas-fantasma, mas, no fundo, são apenas restaurantes sem rosto. Em Lisboa, são cada vez mais. E há até quem considere que o cruzamento dos conceitos de restaurantes digitais e tradicionais é o ponto de partida para uma transformação no sector.

À medida que a hora de almoço se aproxima, os estafetas começam a acumular-se por baixo das arcadas de um prédio em Telheiras, onde está instalada uma das três dark kitchens que o Grupo Sea Me abriu na área metropolitana de Lisboa. Quem ali passa não faz ideia que é daquela pequena porta azul que saem os conhecidos pregos e hambúrgueres do Prego da Peixaria ou os baos da A-BAO-T. Na cozinha, dois cozinheiros dão conta do recado, um na confecção e outro na montagem; na recepção, está mais um funcionário, que trata do registo dos pedidos e de os encaminhar aos estafetas.

Ao contrário do Grupo Sea Me, houve quem se lançasse directamente no mercado digital. É o caso da Kitch, uma plataforma criada em Maio de 2020 por Rui Bento e Nuno Rodrigues, responsáveis pelo lançamento da Uber em Portugal. Há um ano, o foco estava nas dark kitchens e em levar para essas cozinhas escondidas alguns dos restaurantes mais conhecidos da cidade – como o pan-asiático Boa-Bao ou a hamburgueria Ground Burger –, para que chegassem às casas dos portugueses. Mas depressa se percebeu “que havia outros problemas com o delivery que não apenas a falta de capacidade instalada em alguns desses restaurantes”, aponta João Ribeiro, membro da equipa de marketing da startup.

Apesar de manter duas cozinhas-fantasma, agora a empresa está concentrada em acelerar a transformação digital dos restaurantes que a abordam. Dois dos principais problemas identificados prendem-se com a falta de “tecnologia disponível que permita um melhor controlo e eficiência operacional das entregas” e com a “dependência das aplicações de delivery” que “criam alguma pressão nos restaurantes, que já não estão famosos”, refere o responsável.

A Kitch começou a desenvolver tecnologia para combater as dificuldades identificadas – o software Kitch Connect foi a resposta. “Numa única interface, um tablet, os restaurantes fazem a gestão de todos os pedidos, entregas e take-away”, detalha João Ribeiro. Quando lançaram o conceito de cozinha virtual, contavam com 15 restaurantes. Agora, já são 100 em todo o país – o 100 Maneiras 2 Go de Ljubomir Stanisic ou o Reco Reco, irmão do Pigmeu, são alguns dos parceiros mais recentes, mas também já foram a casa de conceitos virtuais, como Las Gringas, dos antigos donos da taqueria mexicana Pistola y Corazón, no Cais do Sodré, que fechou devido à pandemia.

Além da simplificação de processos operacionais e logísticos (incluem-se aqui parcerias com empresas de estafetas), a Kitch cria também soluções de lojas virtuais “chave na mão”. Desta forma, um restaurante físico não precisa de depender exclusivamente das plataformas de entrega que ainda dominam o mercado. “[Fazemo-lo] não numa lógica de concorrência, mas numa de dar força aos restaurantes para que possam ter um canal directo com os seus clientes e não estar dependentes de canais terceiros. Acabamos por ser mais um parceiro.”

O futuro da restauração pós-pandemia

O envolvimento de empresas de tecnologia que procuram dar respostas às necessidades deste mercado em franco desenvolvimento tem-se revelado uma tendência pelo mundo fora. Mas a pandemia, é certo, foi a catalisadora de todas as mudanças. Que o digam Diogo Noronha, Damian Irizarry e Marta Fea que, em Março, puseram em andamento o colectivo FoodRiders num pequeno espaço da Calçada do Poço dos Mouros, na Penha de França. É aí que vive a Ameaça Vegetal, o novo projecto gastronómico do chef Diogo Noronha, que vai ao encontro de uma dieta flexivegetariana. Ao mesmo tempo, essa cozinha é a nova casa da marca de comida mexicana Las Gringas, de Damian e de Marta.

“Estamos numa zona que é um híbrido do que era a restauração pré-pandemia”, explica Diogo sobre o colectivo, numa sala de reuniões que também é armazém, ao lado da cozinha aberta onde tudo é preparado. A experiência aqui é um pouco diferente da do restaurante tradicional, mas distancia-se igualmente da realidade das dark kitchens. “Temos um espaço aberto que opera em grande percentagem em delivery, e depois temos também a possibilidade de fazer take-away. A cozinha é completamente aberta, há transparência total em todos os processos.” A equipa que prepara a sopa de bisque de camarão ou a sanduíche de couve-flor assada, presentes no menu da Ameaça Vegetal, também é a responsável por fazer as tortilhas de farinha que acomodam as gringas ou as salsas da marca mexicana. O trio quer explorar um modelo de negócio que, apesar de se apoiar no universo digital, vai buscar à proximidade com o cliente semelhanças do modelo tradicional de restauração. As paredes em cimento, decoradas com ilustrações e fotografias de artistas, tornam o ambiente mais aprazível e o gira-discos permite que os visitantes possam escolher a música que ouvem enquanto aguardam que os pedidos lhes sejam entregues ou põem a conversa em dia com um dos anfitriões.

Para os FoodRiders, “existe uma restauração pré-pandemia e existirá uma restauração pós-pandemia”. O conceito de dark kitchen “é uma coisa escura, tal como o nome indica, que está à distância e que entrega comida, a única relação que as pessoas estabelecem é com a embalagem ou com a comida que recebem em casa”. Aqui, “há uma abordagem muito diferente do processo; há interdisciplinaridade entre várias áreas; há um conceito de bebidas; uma linguagem gráfica e artística de colaborações. Temos uma dinâmica no sentido de criar uma comunidade e de incluir as pessoas em vez de ser um restaurante virtual puro e duro”.

No todo, há várias lições a retirar, acredita Diogo Noronha, que antes de se juntar ao colectivo estava à frente do Pesca, no Príncipe Real, outra vítima do primeiro confinamento. “Em grande medida, os modelos de entrega que operam agora são de sobrevivência. São de pessoas que, com alguma resiliência, tentam aguentar os seus negócios e estão a tentar adaptar-se. Haverá uma direcção interessante, que é a que estamos a desenvolver como projecto, que é a de beber o melhor de dois mundos e de encontrar conceitos e experiências. O que tentamos desenvolver aqui é uma experiência que vai além de estar em casa e ter fome.”

Cozinhas ou fábricas, eis a questão

Se o ecossistema digital permite que da mesma cozinha saiam refeições para restaurantes ou marcas diferentes, o desafio está em optimizar o seu funcionamento. Uma equipa de duas ou cinco pessoas é, muitas vezes, a responsável pela confecção de pratos tão diferentes quanto sushi e pizza. Para Manel Perestrelo, chef e um dos fundadores do Cookoo The Kitchen Hub, no Alto dos Moinhos, em Benfica, importa clarificar que “[as cozinhas virtuais] são como uma fábrica, não como um restaurante. Quanto mais os processos estejam oleados, melhor é a operação”. Nesta cozinha, funcionam nove marcas que servem perto de 15 mil utilizadores – traduzindo-se em cerca de 120 encomendas diárias, sendo que 70% delas “correspondem a pedidos para duas ou três pessoas”. Ali há uma linha de montagem que obedece a uma ordem de entrada e de saída do pedido. Quem prepara o sashimi do Zao, a marca de sushi, também dá uma mão na confecção das malgas preparadas para o Pokay, o restaurante de bowls. O mesmo se passa para as restantes marcas, como o Tortto, o italiano do hub – quem faz as massas das pizzas não é necessariamente um pizzaiolo.

Manel Perestrelo reconhece que a dependência das plataformas de entrega é uma fragilidade neste modelo de negócio. “As dark kitchens que surgem agora dependem sempre destas aplicações e plataformas.” Para a sua cozinha virtual, criou uma aplicação de raiz e contratou um serviço de estafetas próprio, de forma a não ter o peso das comissões excessivas. “80% da receita vem da nossa plataforma, as outras são só um complemento e funcionam para diluir custos fixos”, explica. Mas qual a diferença do Cookoo para as restantes cozinhas virtuais? “Não somos simplesmente um espaço que aluga uma cozinha. Temos essa possibilidade, mas controlamos todo o processo, temos a nossa própria logística, fazemos e controlamos a entrega.”

O desafio desde que o hub foi criado, há dois anos, tem sido chegar a mais pessoas. “O humano idealiza a loja de onde está a encomendar. A dark kitchen deixa de ter uma loja de frente, deixamos de conseguir perceber onde é que ela está. Há um investimento muito maior em marketing, porque temos de chegar às pessoas e temos de fazê-las acreditar no nosso produto e no nosso restaurante sem o poderem visitar.”

Se o modelo de negócio obriga a este investimento, ao contrário do modelo tradicional de restauração que privilegia a compra de cadeiras, mesas e recursos humanos, “consegue-se ser mais ágil com investimentos iniciais muito inferiores”. “Em menos de 15 dias consigo pôr uma marca no ar. Se for uma marca que já existe, que já tenha todo esse processo feito, consigo em muito menos tempo pô-la activa na nossa plataforma e consigo arranjar um espaço dentro da minha zona de produção e de expedição para esse restaurante operar”, exemplifica o proprietário.

A possibilidade de pôr um restaurante no ar e de ir atrás de tendências também permite mais flexibilidade financeira. “Agora é mexicano, amanhã será sushi e consigo ter rapidamente uma resposta ao que o mercado me pede. O mexicano já não está a vender o que gostava que vendesse, a tendência é outra, ou não funciona em determinada zona devido ao poder de compra: consigo ir ao encontro do que o consumidor pretende.”

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Palavra de ordem: readaptação

Com os restaurantes repletos de produtos por escoar, a atenção do grupo que detém o Soão, em Alvalade, ou o Meat Me, no Chiado, teve de ser canalizada para o segmento das entregas. No início não havia nenhuma operação montada, mas o cenário foi mudando ao longo dos últimos meses.

António Querido, um dos administradores, sabe que, mesmo antes da pandemia, o Prego da Peixaria já tinha alguma relevância no segmento digital, com 20% das vendas do restaurante a corresponderem a entregas ao domicílio. Os planos para 2021 apontam para que o grupo atinja uma receita de três milhões de euros com o segmento das entregas. A resposta para esses números? “Em 2020 não estávamos preparados e estivemos um ano a desenvolver ferramentas para conseguir vender online”, justifica. Empresas como a Kitch começaram a dar resposta a essas necessidades. À semelhança do Cookoo, também o Grupo Sea Me criou uma espécie de food court virtual, o Brothers&Sisters, que agrega todas as marcas, dispondo de um serviço de entregas próprio. Mas será essa uma tendência que se manterá quando a pandemia for debelada? “Não sabemos, ninguém sabe qual é o peso natural que as vendas online terão no negócio da restauração. Acredito que será superior ao que era antes da pandemia. No caso do Prego da Peixaria, poderá chegar a 40% das vendas.”

Numa coisa todos estão de acordo: o aparecimento e o crescimento das dark kitchens surgiu de uma necessidade de readaptação de locais que já existiam. Questionada sobre o número de negócios que operam neste formato, a Associação da Hotelaria, Restauração e Similiares de Portugal (AHRESP) confirmou haver “alguns associados que funcionam assim”, mas que não possui “dados concretos”. É difícil prever os hábitos que os consumidores vão adoptar quando a Covid-19 ganhar distância no retrovisor, mas é quase certo que estas cozinhas vieram para ficar.

Na opinião do responsável do grupo Sea Me, “as empresas tecnológicas em Portugal não estavam preparadas para o boom de necessidade de vendas online [na restauração]”. Antes da pandemia todos sabíamos ao que se assemelhava um restaurante. No pós-pandemia não sabemos muito bem”, remata Damian Irizarry, do colectivo FoodRiders.

Comer bem sem sair de casa

A pandemia trouxe muitos problemas e outros tantos desafios a quem dá a cara por um negócio. As condições adversas no sector da restauração deram força aos restaurantes virtuais, que são uma espécie de fantasma da restauração, sem portas que se abram ou fechem ao público. Há quem olhe estes tempos como um verdadeiro desafio e aposte forte neste modelo de negócio que não pára de conquistar adeptos, entre os empresários e a clientela.

São três palavrinhas mágicas: comida ao domicílio (ou apenas delivery, se preferir recorrer à capacidade de síntese anglo-saxónica). Só tem de decidir o que lhe apetece comer, pegar no telemóvel ou sentar-se ao computador, fazer a encomenda e desfrutar de uma boa refeição sem sair de casa. Estes são os melhores restaurantes com entregas ao domicílio em Lisboa. Há para todos os gostos.

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