Manuel Manso
Manuel Manso

Christiane Jatahy: "Em Lisboa, dá para pensar em estar realmente"

Falámos com Christiane Jatahy, Artista na Cidade 2018, um programa que mistura teatro, cinema, performance, instalação e que decorre de Maio a Novembro em vários espaços da cidade.

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Até o café ficou frio, tal era a urgência das palavras, a sua cartografia com Lisboa, a tristeza com o seu Brasil, a crise dos refugiados no Mediterrâneo. Temos estas linhas e um ano para descobrir Christiane Jatahy, Artista na Cidade 2018 (depois de Anne Teresa De Keersmaeker, Tim Etchells e Faustin Linyekula), bienal promovida pela EGEAC que pretende dar uma mostra do trabalho de um artista internacional em parceria com várias entidades culturais lisboetas. Ora se é Artista da Cidade, nada melhor do que uma conversa citadina no belo Jardim das Amoreiras. Começa tudo esta sexta no Teatro Nacional D. Maria II.

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Já tinha estado aqui?

Estive uma vez, exactamente neste quiosque.

O motivo também foi uma entrevista?

Não, era mesmo tomando um café. 

Tem algum lugar preferido em Lisboa?

Eu ia falar Meco, mas não é Lisboa, né? Acho uma das praias mais bonitas que já vi, e eu vivo num lugar de muitas praias. Me parece um dado importante que Lisboa, uma cidade com essa história, com essa arquitectura, e ao mesmo tempo tem uma proximidade com a natureza, com uma exuberância. A primeira vez que vim aqui foi em 1992.

Era diferente. 

Muito. Tinha história, mas eu sentia uma melancolia, mesmo nos dias solares. Quase como se a cidade escrevesse o passado. 

E agora estamos no futuro?

Não, sinto que é uma cidade que tem o passado escrito, mas com um projecto de futuro. 

O seu gosto por Lisboa foi preponderante para aceitar o convite para Artista na Cidade ou teria dito que sim mesmo que odiasse a cidade?

É quase impossível responder a isso. Como fazer essa projecção diante deste lugar, tomando esse sol? Talvez, se fosse num lugar horroroso, com pessoas ruins, podia perguntar: “será que o Artista na Cidade pode ser só uma ou duas apresentações?” Aqui não, aqui dá para pensar em estar realmente. 

Esteve cá em 2013 no Maria Matos, em 2016 no Alkantara, em 1992 também foi em trabalho?

Sim, como actriz. E é curioso porque Lisboa foi a primeira cidade que visitei na Europa, nunca tinha viajado para a Europa. Também participei duas vezes no Festival de Almada. E sim, depois estive no Alkantara, aí já com uma história nos festivais europeus, mas para a gente, para mim e para os artistas que estavam comigo, foi um impacto. A gente já tinha apresentado o Se Elas Fossem para Moscou? em alguns festivais e sempre com uma resposta positiva, mas com intermediação da legenda. E o meu trabalho fala directamente ao público e quando a gente chega num lugar, que não é mais o nosso lugar e que você fala com o público como se fosse o seu lugar... isso foi incrível. 

Sabe-lhe bem estar por aqui. 

Sim, o meu trabalho é muito na relação com o espectador e isso foi bem importante. 

Recuando um bocado na sua história pessoal, como é que chegou ao teatro?

A expressão artística sempre esteve colada a mim, na leitura e na escrita, acho que sou uma autora, que me expresso através do teatro e do cinema, me formei em jornalismo...

...isso é que talvez não tenha sido boa opção. 

É, mas o jornalismo me abria duas possibilidades: o cinema e a literatura. Pensar a ideia da palavra como alguma coisa que chega no outro. E o teatro também esteve sempre presente, a minha família, que não tem nada que ver com arte, tinha uma prática que me foi muito importante. A gente assistia a várias peças infantis, a gente copiava todos os textos e depois apresentava na nossa casa, nas festas de aniversário, a gente ensaiava, fazia diferente. Vi os meus pais e tios actuando e, mais tarde, eles dirigindo a gente. É uma trajectória um pouco óbvia, sim, de continuidade. 

Menos óbvia é a trilogia que apresenta como primeiro acto da programação da Artista na Cidade, três espectáculos distintos: Strindberg (Júlia), Tchekhov (Se Elas Fossem para Moscou?) e Shakespeare (A Floresta que Anda).

A trilogia não é necessariamente porque os textos têm uma correlação... 

Tem a ver com o processo. 

Sem dúvida. E com as linhas de pesquisa que estou desenvolvendo naquele momento. É sempre um pouco casual essa ideia de trilogia, aqui foi um bocado: como é que textos clássicos de diferentes épocas, e que estão na nossa memória, podem ser pensados no dia de hoje, a realidade actual dentro desses textos? E também foi a primeira vez que meti o cinema em cena, procurando ver de que maneira é que essas duas artes se podem conjugar, se friccionar. E é curioso porque Ítaca, que apresentamos em Junho, no São Luiz, a propósito do Alkantara, é para mim uma continuação. Então, fecha uma trilogia e começa logo uma outra trajectória. É, no fundo, a minha trajectória. 

Em Ítaca recua ainda mais, até Homero. Gostei que se dissesse no programa: “Sobre a Odisseia de Homero, odisseias imaginadas e reais”. Tais como?

As reais através de algumas entrevistas sobre travessias de refugiados que chegaram à Europa, as verdadeiras odisseias de hoje, alguns momentos dessa descrição parecem escritos por Homero. Há um paralelo concreto, o Ulisses no desejo de voltar para casa, os refugiados no sentido de criar uma nova casa. Mas há outras, as odisseias de vir do Brasil para aqui, a nossa odisseia como brasileiros, do que estamos vivendo hoje no Brasil, isso está bastante no Ítaca

É impossível não falar sobre isso?

Completamente e nem quero. Quero mesmo é falar sobre isso. E repara: uma das grandes belezas deste Artista na Cidade é a possibilidade de apresentar uma linha de trabalho e não um ou dois trabalhos. Já vinha sendo sobre o Brasil, no Júlia é sobre o microcosmos dentro de uma casa, que para mim já é a bomba dessa diferença descomunal entre as classes sociais. O Se Elas Fossem para Moscou?, quando a gente fez, parecia um momento de estabilidade que nunca existiu, tanto que desembocou nas manifestações de 2013, um desejo de mudança mais profundo. Na peça pergunta-se o que a gente faz para mudar. E no A Floresta que Anda anunciava-se a possibilidade de um impeachment, quando a gente fala de ganância a gente fala do Brasil, a gente fala até de coisas que ainda não tinham acontecido, é quase um prenúncio desse momento trágico. 

Isso pode ser bastante perturbador. 

Claro que sim. É sobre como um advento social é uma catástrofe nas vidas pessoais. E o Ítaca vem no pós, quando a gente está vivendo na sombra absoluta. Se pensarmos que durante dez anos a casa é devorada pelos pretendentes, querendo a mão da Penélope. No fundo, querendo poder. A ideia de devorar é literal, eles comem tudo, esses pretendentes. Essas penélopes são o Brasil. No Brasil a gente está sendo devorado, pelas bordas e por dentro. É uma casa caindo, só que desmorona na cabeça de quem não tem, porque quem tem está comprando coisas aqui em Portugal. 

Falemos de coisas mais alegres. A Falta que nos Move começou por ser uma peça e virou um filme. Isso reflecte um bocado a sua postura na arte?

Sim, é interessante, é sobre um projecto que desperta a pergunta sobre o outro, então o outro existe devido a uma questão que vem do anterior. A gente fala de trilogia mas podia falar de uma linha e A Falta que nos Move é central na minha pesquisa. É sobre a memória, fala do passado, é sobre a geração que cresceu na ditadura militar brasileira, é uma falta em vários sentidos: dos pais, que se perderam ou de que se perdeu pelo menos o contacto. E fala-se de uma geração que fica perdida, sem biografia, a quem é tirado o direito de escrever a sua própria história.

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Filmou todo o processo, certo?

Sim, e sempre fiquei com a ideia de que em algum momento seria interessante mostrar isto na linguagem cinematográfica. Como não me interessava fazer uma versão cinematográfica da peça, nem filmar a peça, nem criar um roteiro, queria criar uma sensação parecida ao espectador de cinema que criei no de teatro, quando o teatro é sobre o presente e o cinema é sobre o passado.

Como é que conseguiu?

Não sei bem, é um filme sem cortes, sem take dois, os actores não sabiam o tempo que ia durar, eram três câmaras na mão e podia durar cinco ou seis horas, acabou por durar 13 e foi feito na véspera do Natal. E isso virou material potente. Então fiz uma apresentação no Parque Lage, no Rio de Janeiro, que durou as 13 horas, com três telas de cinema, começa na mesma hora em que o filme começou a ser filmado e acaba na mesma hora. O público pode entrar e sair, o som é feito por mim ao vivo e a gente vai apresentar isso no São Luiz como encerramento do Artista na Cidade. 

Li que o ambiente é de festa, que o bar vai estar aberto. 

Claro, os actores comem e bebem no filme, o público come e bebe aqui. O público é a performance. No Parque Lage teve um grupo que viu as 13 horas. 

Só que aqui não é num parque, é no teatro. Presumo que isso lhe interesse, a festa no teatro. 

Interessa porque é o espectador que determina a hora, esse público que viu as 13 horas é o filme.

E o que viu duas horas?

Também, claro. Como é uma festa, as pessoas dançam na música do filme, quando estavam, sei lá, quinhentas pessoas em simultâneo aquilo era uma festa da qual o filme fazia parte. 

O que também faz parte da sua linha é esta questão das migrações, que está presente na instalação-performance Moving People que se passa num contentor no jardim do Museu de Lisboa em Setembro. 

É uma instalação-documentário-
-performance, já venho trabalhando com essa questão dos refugiados desde 2014. A gente fez um trabalho que é a Utopia.doc (passa em Novembro, no Cinema Ideal, integrado no festival Temps d’Images) aquando do Se Elas Fossem para Moscou?, como as três irmãs têm esse desejo de ir para Moscou, me interessa que Moscou seja esse lugar de utopia, então falávamos com pessoas que se tinham deslocado em vários momentos históricos. O Moving People vem daí e é um encontro entre um actor local, com duas pessoas que chegaram aqui, estão dentro de um espaço, a gente está fazendo um documentário ao vivo e as pessoas estão vendo do lado de fora. É sobre reconstruir memórias, sobre o que nos aproxima, o actor está lá como ideia de alguém que representa a ficção, mas está falando dele e, ao mesmo tempo, o refugiado quando chega aqui ele conta uma história que é real ou não? 

Ou seja, também ser ficção. 

Exacto. Até que ponto é que ele não ficciona a sua história para ser aceite neste novo lugar? Não sabemos. 

O que sabemos é que saberemos muito melhor quem é Christiane Jatahy no final do ano. 

Sim, isto foi mesmo uma dramaturgia Artista na Cidade. Começa com toda a trajectória na relação do teatro com o cinema, conclui o primeiro semestre com Ítaca, que é recente e aponta para o futuro do trabalho. Começa o segundo semestre com Moving People, que aporta na cidade, a ideia de um contentor num jardim da cidade, e depois tem a perspectiva do audiovisual, da minha relação com isso. É no fundo uma ocupação da cidade. 

Fora dos palcos

Quem fica por trás da cortina
Quem fica por trás da cortina

São elementos-chave no xadrez de um espectáculo, porque o palco não é só dos que dizem, mas também dos que dão licença para que se diga. Esta terça-feira, 27 de Maço, assinala-se o Dia Mundial do Teatro e essa é a razão pela qual, em jeito de homenagem, trazemos para a luz cinco artistas que habitam os bastidores. Uma cenógrafa, um sonoplasta, um director de cena, um iluminador e uma ponto que trabalham com vários encenadores e estruturas teatrais – e têm boas histórias para contar. Ora leia.  

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