Não tenha dúvidas: a agenda da cidade está cheia de peças apetecíveis que surgem tanto pela mão de companhias já com provas dadas como à boleia de novos talentos. Para não ficar perdido no meio de tanta oferta, fomos à procura das peças de teatro e de muitos outros espectáculos performativos, desde dança a comédia, que não deve mesmo perder nos próximos meses em Lisboa. Alguns ficam apenas alguns dias em cena, outros esgotam num ápice. O que fazer? Apontar na agenda, comprar o bilhete e garantir o lugar.
Entrevista originalmente publicada na edição digital mensal de Março.
“Obrigada, baby, obrigada por teres vindo”, diz Salvador Martinha quando nos sentamos à mesa para esta entrevista, já em tom de personagem. “O que é que é o Salvador e o que é que é a Plim? Isso é que é o jogo”, dirá entretanto. As paredes cor-de-rosa que o rodeiam são o cenário perfeito para falar da personagem que encarna nesse ambiente também livre de defeitos que é o Instagram. Foi durante a pandemia que o humorista (e cronista da Time Out Lisboa) criou a figura de Plim, a directora de uma agência de influenciadores digitais que, ao telefone com Van, uma das agenciadas, gere carreiras no atribulado mundo que se move a gostos, comentários e patrocínios.
PLIM – Passa Lá na Agência é o nome da peça em que o comediante leva a palco a sátira ao universo da criação de conteúdos digitais. “Não é um espectáculo de stand-up”, frisa. É uma peça de teatro, que Martinha escreveu a meias com João Maria, comparsa com quem também partilha a cena, que decorre numa colorida agência onde não faltam peripécias sobre influencers – e com influencers. Com encenação de Rui M. Silva, PLIM – Passa Lá na Agência rouba a lógica de temporadas habitual nas séries e assume-se como uma primeira temporada de duas. Por agora, apresenta-se no Teatro Tivoli, em Lisboa, até 2 de Abril, e depois no Porto, de 10 a 12 e 21 e 22 de Abril, no Teatro Sá da Bandeira, já com várias datas esgotadas.
Disseste que aos 40 anos te reformavas. É daqui a um mês.
Ainda tenho tempo [risos]. Quer dizer que me dá um ano e um mês para cumprir com a minha promessa. Até dia 5 de Abril de 2024 tenho 40 anos.
O plano mantém-se?
O plano mantém-se, mas tem de haver aqui um pequeno ajuste. Quando disse isso... São daquelas frases que se atiram. Não deixa de ser verdade no sentido em que não me vejo refém desta profissão para sempre.
Refém do quê exactamente?
Do lado mediático, de aparecer. Não me vejo refém disso. Às tantas as pessoas que trabalham nestes meios ficam viciadas na sua própria exposição pública. Pode-se tornar uma adição, em que já nem te consegues ver sem ser reconhecido. Vejo-me a continuar sempre como criativo, mas gostava de diluir a minha exposição. Se calhar este ano até vai ser ao contrário. Faço séries, faço peças. É contraditório, não é? Mas também tem a ver com uma gestão de carreira. Gerir um percurso é gerir dinheiro. Se eu tivesse dinheiro para isso, se calhar não aparecia mais.
Tendo o dinheiro que entendesses ser suficiente não farias mais nada?
Acho que sim. Se fosse muito, muito rico, continuaria, mas como realizador, encenador, escritor. Investia esse dinheiro no meu desaparecimento físico. Ao ponto de ir diluindo. Um miúdo de oito anos já não me reconhece como tu me reconheces. Reconhece-me do anúncio da televisão. Para os que nascem agora deixaria de ser conhecido. Já conseguiria fazer uma hemodiálise de não-fama. É uma conversa profunda para estarmos a ter neste espaço [aponta para uma parede colorida repleta de parafernália]. Estou a descobrir. Não temos certezas absolutas.
Tens desbravado caminho fora de certezas absolutas, como era o stand-up. O teu último solo foi o Cabeça Ausente, em 2019. Numa entrevista em Dezembro dizias estar cansado do formato. Há pouco descreveste-te não como humorista, mas como criativo...
Isto mete pancas, vamos ser honestos. Dizemos essas frases, dos 40 anos, cansei-me do stand-up... Depois envelhecem mal.
Não é assim tão taxativo então.
Não, estou a fazer uma pausa. É assim tão interessante para o público mais um espectáculo meu? Neste momento andam a aparecer outros stand-up comedians. Também é giro o público ir vendo. Já fiz sete solos. Seria o meu oitavo. É um bocadinho 'lá está ele a fazer o que faz'.
O Dave Chappelle, em 2017, no New York Times, dizia que o stand-up é uma daquelas coisas "em que se fecha a porta, mas não se tranca". Que o stand-up se "faz durante dez anos e depois se pensa sobre ele nos trinta anos seguintes". Mas tu pensas não tanto sobre a vontade de fazer stand-up, mas mais sobre a perspectiva do público.
São as duas visões. É uma mistura com a minha vontade. O que é que tenho para dizer outra vez num solo de uma hora? Já fiz isto, isto e aquilo. Não é bom deixar passar um bocadinho de tempo? O Chappelle diz isso, mas parou dez anos. Ele está a dizer isso agora. Foi muito giro este comeback do Chapelle. Quem é que ele é agora, depois de ter fritado? Ele teve um burnout de trabalho, meio que fritou e voltou passados estes anos.
Esta pausa é uma prevenção?
Não, é uma prevenção de ser previsível. De me tornar previsível. Se reparares é uma questão de análise. Às tantas os humoristas são sempre os mesmos. Nós não mudamos de corpo, de cantilena. O tempo é um investimento na mudança. Para se tornar mais interessante. Respeito muito o palco. As pessoas pagaram para me ouvir, então é bom que tenha alguma coisa interessante para dizer. Se estou a fazer de dois em dois anos, posso entrar numa onda supermarket.
Se olhas para a tua carreira com essa visão abrangente, não é ingénuo pensar que quando lanças a Plim no Instagram não é já com esta peça em vista?
Foi completamente ingénuo. Por acaso foi. Sou muito premeditado nas minhas coisas, mas aí não. Foi na pandemia. Comecei a fazer aquela vozinha e foi crescendo. Há um dia em que digo: 'isto era giro uma peça ou uma série'. Depois, abandonas esse estímulo. Não é imediato. Depois, a ideia volta outra vez. É quase como se fosse uma voz: 'Faz uma peça, faz uma peça'.
É diferente criar um solo ou uma peça de teatro? Isto é uma peça de teatro, certo?
Tive essa dificuldade. É interessante partir esta imagem que as pessoas têm de nós. Se não é uma seca, às tantas. Sou um humorista linear? Mando aquele espectáculo para as Ticketlines e eles põem 'stand-up'. Mando a sinopse como peça de teatro e já estou ali no stand-up. O engano é normal. Seria expectável que fizesse stand-up. Tenho de dizer: não, não, isto é uma peça de teatro’. Temos de partir o que somos.
Quando de repente não estás a ser tu mesmo.
É isso. Esse é o desafio e o Rui [M. Silva, encenador] tem sido... [sobe o tom de voz] O Rui tem sido espectacular [risos]. Estou a parecer aqueles actores a dar entrevistas. O que é que é o Salvador e o que é que é a Plim? Isso é que é o jogo. Porque às vezes apareço lá. Mas o Salvador não se mexe assim. Eu mexo-me muito rápido [gesticula]. A Plim não. Tem uma pose mais altiva [endireita-se]. Isto é uma pessoa que está a querer. É diferente. Logo aí não estou a trabalhar o Salvador, estou a trabalhar um personagem. Como é que ele fala, como é que ele anda, como é que ele se mexe? É o oposto do meu treino, que é a naturalidade.
Foi natural ser actor?
O desafio é este: os telefonemas vêm daqui [aponta para a cabeça]. Como é que eu passo daqui para o corpo [aponta para o peito]? É isso que estamos a fazer nos ensaios.
O universo das influencers é rico como matéria prima?
Primeiro, é mesmo o sítio delas. Estou a fazer no sítio delas. Estou a fazer um conteúdo na casa das influencers, que é o Instagram.
Mas agora levas o conteúdo para o palco.
Claro, mas vou levar influencers comigo. O público interessou-se porque estava na casa das influencers. Quem vê o meu Instagram ou o teu, antes já viu uma granola, antes viu uma viagem às Maldivas. É o sítio certo para o fazer. Estou a responder ao que as pessoas acabaram de ver.
Como é que se replica esse efeito em cena?
Em palco vamos tentar fazer crescer este personagem e tentar montar uma história para se perceber mais. De onde é que ela veio e para onde é que ela vai. Aqui é só um sketch. Estamos a fazer do sketch uma narrativa.
Quem é o público que esperas que esteja no Plim – Passa lá na Agência?
O público do teatro é de 35, 40 anos para cima, é uma coisa curiosa. Este é o público do teatro. No stand-up não é assim, é um bocadinho mais jovem. Acho que sempre tive um público muito dividido, 50% mulheres, 50% homens. Sempre achei bom. Um comediante que fale um bocado de futebol e não sei quê, já vai para 70% de homens. Sempre achei bom sinal ter mulheres na plateia. Primeiro, são o melhor público. Riem-se mais, têm um sentido de humor mais sofisticado. Agora sinto um acréscimo, sinto que vamos mandar-nos para os 60, 70% de mulheres. Estou com esse feeling.
Dedicaste um episódio recente do Ar Livre, o teu podcast, ao teatro, em que dizes: “As palavras e o teatro fazem-me sentir bem por dentro”.
Fazem. Há ali um quentinho, não sei explicar. É quase como uma suspensão da vida. A vida é muito rápida. Andamos de um lado para o outro. As pessoas na rua, a falar ao telefone, a dizerem mal umas das outras. Stress do trabalho, e de repente a pessoa sustém a respiração. Paramos e é ali um momento em que estamos a pensar um bocadinho com calma. E a pensar em grupo, que é diferente. É quase como, sabes quando estás a pensar na vida e tens boas conclusões a olhar para o mar? O teatro é um bocadinho isso, mas estamos a fazê-lo em conjunto. É uma experiência forte. Estás a ver aquele grupo de pessoas que fica mais próxima porque teve aquela reflexão em conjunto ? E depois a luz. Gosto de ver a luz. Já no cinema sinto isso. A luz da peça refletida nas pessoas. As pessoas ficam mais bonitas. Olhas para a pessoa que está ao teu lado e a pessoa está mais bonita.
Sentes-te mais bonito em palco?
Acho que sim. É mais fácil para mim conseguir uma beleza cénica [risos]. É chamada beleza cénica, normalmente a pessoas que não são bonitas, mas que no palco ganham qualquer coisa.
Ganhas sempre em palco? Nunca tiveste medo dele?
Não tenho, nunca tive. Fico muito nervoso... Agora disse que fico nervoso, mas normalmente não digo isto, porque realmente já não andava a ficar muito nervoso. Já tinha feito muitas vezes stand-up e nunca me aconteceu nada. Nunca morro, nunca nada. Nunca ninguém me bateu. Mas agora é diferente.
Porquê?
Porque agora vou ser um personagem. Será que as pessoas vão gostar desta personagem?
Não tens medo que as pessoas não gostem de ti enquanto Salvador, mas tens medo que as pessoas não gostem da tua personagem.
Sim, tenho medo porque é outra pessoa! [risos]. Se uma pessoa vai a um espectáculo meu de stand-up gosta de mim, mais ou menos, à partida. Gosta da minha cabeça. Agora, será que vão gostar deste personagem? Ou então não é a personagem, é se vão gostar de mim a fazer um personagem. Tenho várias dúvidas. Mas é isso que me está a excitar, é não saber o que vai acontecer.
Foste actor na nova série portuguesa da Netflix, Rabo de Peixe [produzida pela Ukbar Filmes e realizada por Augusto Fraga e Patrícia Sequeira, ainda sem data de estreia], em que fazes de estagiário. Como foi essa experiência?
Foi boa. É um bocadinho o que vou fazer aqui, no sentido em que não sou eu. Gosto muito. Tenho sentimentos contraditórios na profissão de actor. Gosto do desafio, de fazer as cenas, de estar triste e estar contente, e depois ver como é que fica e se fiz bem. Isso excita-me. Não gosto de algumas coisas na vida de actor: a espera, a fragilidade perante o realizador. O actor não é quem manda ali. Venho de um sítio em que mando nas minhas cenas.
Mesmo no teatro é pouco usual ser o actor a existir na obra antes de um encenador, por exemplo. Mas aconteceu com esta peça.
Pois é. Exactamente. Mas é curioso que a cada dia que passa o Rui M. Silva vai ganhando [espaço]. Através da sua experiência. Tem anos de teatro. Cada dia que passa vai ganhando a força devida que o encenador tem de ter numa peça. Só muda aí, o timing do convite.
Isso obrigou-te a abdicar do poder, do controlo...
Não sou agarrado a isso. Agora estamos a trabalhar em conjunto, tudo é desenvolvido pelos três. Não sou nada preso a ideias. Quero é que a peça tenha piada, que seja bem feita, que tenhamos bons actings e que as coisas corram bem. Em Rabo de Peixe ou nessas séries é completamente diferente. Sou um peão. É um lugar difícil ser actor. Ficam muito frágeis. "Foi bem? Queres que eu repita?". Não é que os realizadores os coloquem nesse sítio. Mas não estão a ver na câmara. O realizador é que vê.
É por isso que manténs o Ar Livre, podcast que fazes sozinho, onde quem ouve sente que és só tu e os teus pensamentos?
É o que eu vejo positivo no Ar Livre. Abro a cabeça, confusa, com todos os pensamentos, aleatórios, alguns ajustados, outros... é uma cabeça. Se entrar na tua cabeça não vou ver uma casa toda arrumada. É uma cabeça. O que me inspirou foi uma frase do Miguel Esteves Cardoso que é: ‘os artistas estão cá para se expôr’. Se não, o que é que estamos cá a fazer? Porque na nossa exposição outras pessoas vão buscar força. Isso é o que é atractivo. Lá estou eu a pensar macro. Para mim é bom poder mostrar a minha cabeça e através do feedback das pessoas também vou aprendendo muito.
A exposição pode ter consequências. Já falaste de política no podcast, por exemplo. Não tens medo de criar controvérsia?
Como nunca fui um humorista político, parece que estou completamente fora dessa órbita. Nunca senti nenhum impacto negativo por nada do que disse. Nunca falei muito de política e só à medida que fui amadurecendo é que tenho realmente algumas preocupações políticas, se queres que te seja sincero. Sempre fui apolítico, a roçar… não é o anárquico porque achava bem as pessoas irem votar, mas um bocadinho anárquico no sentido de não estar bem a ver a importância. Só agora é que vejo.
Podias ter escolhido politizar-te enquanto cidadão e não o quereres mostrar.
Pois, mas agora acho que estamos numa altura importante, sabes? Não quero acordar e o André Ventura ser primeiro-ministro. Se não quero isso, acho que nós, artistas, humoristas, canalizadores, médicos… Não faz sentido haver políticos e pessoas. Metemos tudo nas mãos dos políticos como se tivéssemos passado a concessão a quem está no Parlamento para resolver isto tudo. Vem aí uma fase em que realmente temos de nos preparar todos, toda a gente, para a discussão. Vão ser anos de muita retórica. Temos de ler, temos de estar informados, temos de debater, temos de pensar sobre isso. Vejo-me cada vez mais disponível para isso. O que não me apetece nada é ir para a lama. Não quero ir para chavascais ou para caixas de comentários. Há sítios certos para fazer isso. Não é uma story.
No teu caso é no podcast.
Como nunca falei muito de política, vou passo a passo. As pessoas dão me os seus inputs. É engraçado que num ambiente tão controlado, com aquele público em que temos essa relação… Mesmo assim volta e meia vejo coisas... São feridas. Falas de política e estás a falar em feridas das pessoas. Imagino o que é estar a falar de política em ambientes mais desprotegidos. É uma lama em que não tenho interesse. Mas tem de ser feito.
O Ar livre é um casulo.
Sim, posso mandar uma mais ao lado que tenho uma mão amiga que me manda um link a dizer o contrário. Devia ser assim! Devíamos poder falar de política e poder errar. Mas ninguém pode. Toda a gente sabe tudo, num jantar, numa caixa de comentários. Ninguém tem uma discussão saudável. Não. É equipas e morte à outra equipa.
O [humorista] Fábio Porchat falava disso há pouco tempo, de ser cada vez mais difícil falhar no humor. Sentes que ainda tens espaço para o erro?
Sim, é a vantagem de falar para um nicho. Estamos a falar entre 10 a 15 mil pessoas que ouvem aquilo. Se faço uma story tenho 100 mil pessoas que viram. Será que é pelo número de pessoas que estamos protegidos? Mais pessoas aumentam a probabilidade de dar merda? Mas sim, ali tenho um espaço fixe.
E errar no teatro, assusta-te?
Também considero um espaço protegido. É um bocadinho mais exposto, mas é um espaço onde há contexto, onde se respira. O problema são os cortes. Nós vivemos no mundo dos cortes. 15 segundos deste e este agora morreu.
As peças geralmente não podem ser filmadas.
Tocaste agora num ponto. Exactamente. Só se passa ali naquele contexto. Tudo aquilo que é filmado está sujeito ao mundo louco dos cortes.
Se não te reformares, o que é que te imaginas a fazer?
[O telefone vibra]
É a Plim.
Teatro Tivoli BBVA (Lisboa). 27 Mar-1 Abr. Seg-Sáb 21.00. 18-25€. Teatro Sá da Bandeira (Porto). 10-12 Abr. Seg-Qua 21.00. 16-25€