“Acordar bem cedo (acordo sempre lá para as 07.00 ou 06.50) e ir buscar o pão ao Capa Negra, em frente à igreja do Bonfim, que é o meu café favorito e tem umas boas francesinhas. Ter uma discussão com a dona Teresa, a Patrícia e o senhor Alberto sobre o jogo de futebol do dia anterior enquanto espero pelo jornal. Depois, passear o cão e ter um dia de trabalho em que possa imaginar projectos com a equipa do TNSJ ou, então, passá-lo a ler um texto e a preparar o que vai acontecer. Esquecer-me de almoçar por causa disso [risos]. E acabar o dia a ir ao cinema, que também gosto muito, ou a ver uma peça de teatro. Gostaria de ver o Hamlet pelo Ostermeier, por exemplo. Por fim, voltar para casa para junto da família ou ir comer cozido à portuguesa ao restaurante Santa Clara.”
Qual foi o primeiro espectáculo que viu no Teatro Nacional São João [TNSJ]?
Era miúdo, foi A Tempestade do [encenador Silviu] Purcarete. Lembro-me também de ter ido ver o Dom Duardos [de Gil Vicente]. Pouco tempo depois, fiz lá um espectáculo chamado Porto Monocromático.
Que idade tinha? Já estava a viver cá nessa altura?
Sim. Tinha 25. Nasci em Canas de Senhorim e fui estudar Direito para Coimbra. Lá, com 17 anos, descobri que não tinha jeito nenhum para ser um causídico ou um jurista e andei perdido durante uns tempos, armado em poeta e boémio, como muita gente fazia em Coimbra naquela altura. Até que entrei para o CITAC [Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra]. Lá encontrei pessoas que sentiam o mesmo. Criámos um grupo, chamado Visões Úteis, e mudámo-nos para o Porto.
E como é que em Coimbra foi parar ao teatro?
Na Sé Velha havia um café chamado Oásis que tinha colada numa parede uma fotocópia a dizer: “Estão abertas as inscrições para o curso de iniciação do CITAC”. E tinha uma fotografia extraordinária do Kazuo Ohno, mestre do Butoh. Eu não sei muito bem porquê (talvez porque em 1992 Coimbra era a capital do teatro), mas decidi experimentar. Fui o último a ser seleccionado na audição. Depois, contaram-me que só fui escolhido porque era muito alto e podia subir ao escadote e chegar à teia [estrutura com os projectores] [risos].
Chegou ao Porto no final de 1994. Como era o panorama artístico da cidade?
Fui viver para a Senhora da Hora, para um quarto numa torre ao pé do Centro Comercial Charles. Tentámos [o Visões Úteis] vários contactos, com a Câmara, com a Seiva Trupe e o TEP [Teatro Experimental do Porto]. Acabámos por estrear As Criadas, do Jean Genet, que era um filme pornográfico na altura, no Teatro Sá da Bandeira. Era uma cidade bem diferente, mais fechada, mas também com um outro tipo de possibilidades que esta já não tem.
Que possibilidades eram essas?
A de ter espaço para uma cambada de miúdos que quer fazer uma companhia de teatro e isso acontecer.
Agora já não há espaço?
Não, porque o mundo muda e eu sou a última geração de pessoas que não estudou em escolas superiores de teatro. Havia o conservatório, e a ESMAE [Escola Superior de Música e Artes do Espectáculo] ainda era pouco conhecida. Nós chegámos ao Porto no momento em que aparecem as companhias produto dos primeiros cursos. E o Porto, a certa altura, começa a ser uma cidade emergente. As pessoas não têm memória, mas o Porto no final dos anos 90 tinha uma programação cultural fortíssima. Especialmente para quem gostava de teatro e de artes de palco. A Isabel Alves Costa com o novo circo, a Ana Cristina Vicente programava dança, o Ricardo Pais estava a programar o TNSJ. Apostou-se nos jovens criadores que estavam por ali. Ao mesmo tempo, o público não estava condicionado como está hoje a procurar nas grandes casas de espectáculo o espectáculo que quer ver.
Por falar em público, há público?
Temos médias de público muito boas. O público tem vindo a crescer constantemente, mas isso é um trabalho com vários anos, não apareceu agora. As pessoas esquecem-se que há um investimento na formação de público desde os anos 90. Não se lembram, por exemplo, que houve um Porto sem TNSJ [o edifício foi adquirido pelo Estado e recuperado em 1992, depois de várias décadas de degradação], mas ele existiu. Tudo isso é um trabalho subterrâneo que está a dar os seus frutos agora. Se as salas esgotam sempre? Não, claro que não. Mas acho que essa lógica da afirmação da valia de uma coisa só porque se enche de público é profundamente castradora e errada. Se assim fosse, os paradigmas da arte contemporânea nunca tinham existido. Agora fala-se muito do Artaud, Artaud, Artaud... Ninguém via o Artaud. Eram oito ou nove gatos pingados. E se calhar as pessoas deviam pensar nisso, porque a história da arte está cheia de triunfos – seja em mostras de pintura, em óperas ou em escritas teatrais de escritores triunfantes – de que ninguém se lembra. Estou prestes a fazer A Morte de Danton, do Büchner, que morreu com 24 anos. A peça que ele escreveu foi representada 101 anos depois.
Porquê A Morte de Danton?
Primeiro, porque é uma obsessão há vários anos. De cada vez que eu a tento fazer, acontece sempre alguma coisa: ou alguém a vai encenar ou há um outro projecto que as pessoas consideram mais interessante… No ano passado criei as condições para, de facto, a poder levar a cena e, com este convite, foi absorvida pelo TNSJ. E, depois, porque a Revolução Francesa, a ideia de revolução, e todos aqueles primeiros cinco anos antes do Directório fundaram a modernidade e a contemporaneidade. E também porque a ideia de revolução tem sido o paradigma da acção ocidental: o mecanismo, com vários gradientes de terror. Estou a falar das Primaveras Árabes, por exemplo. Foi uma ideia de revolução que desencadeou a guerra da Síria. E isso desencadeia toda a transumância de povos que, por sua vez, desencadeia o pôr em causa a democracia formal europeia.
Quando é que a vamos poder ver?
Estreia dia 13 de Setembro.
E o público sabe o que anda a ver ou deixa-se levar pelas modas?
O público do TNSJ é um público muito próprio e muito abrangente. É um público que é tão seduzido pelas novas formas, como também é um público com uma memória extensa. Na apresentação do programa para o centenário [o TNSJ faz 100 anos em 2020] fizemos um pequeno vídeo que me deu a oportunidade de falar com pessoas do público – e assaltou-me a sua memória e a fineza na recordação de tudo o que tem sido o trabalho desenvolvido pelo TNSJ. Temos pessoas que gostam da palavra, que gostam profundamente da palavra, como também temos pessoas que gostam de dança e pessoas que gostam de espectáculos metadramáticos ou pós-dramáticos. O TNSJ convoca para si várias tonalidades de público e, por outro lado, também entra em diálogo com os nossos parceiros institucionais, como é o caso do Rivoli. Diria que, face à voracidade do novo e da moda, o público do TNSJ é um público com um bocadinho mais de tempo e mais aberto a essas experiências. É um público que se dá tempo, e com isto quero dizer que vir ao TNSJ é uma experiência que exige trabalho, porque há todo um cardápio de textos e de reflexão sobre o que vai ver; porque tem uma programação variada; e porque essa programação não afina a sua bitola pela constante novidade. É um público gourmand e gourmet [risos]. Mas, obviamente, também sentimos esta necessidade de estarmos despertos para o que o público intui que precisa e, às vezes, ele também precisa de novidade.
Numa entrevista, Pedro Sobrado, presidente do conselho de administração, dizia que o TNSJ não pode ter medo de ser careta, ou seja, de apostar na palavra e nos grandes dramaturgos. No entanto, dizia também que precisava de ser “prafrentex”, como acabou de dizer. É possível conjugar ambos?
Acho que a melhor maneira é arriscar sendo careta muito à frente. Ou seja, as duas ideias não são antitéticas. Acho que o reclamarmos a palavra, o tempo de uma representação ou de uma mise en place comum, não implica ser careta porque, por exemplo, eu vou fazer A Castro, a seguir, que é um texto extraordinário. Como encená-la? Não vou tocar no texto. Não o vou reescrever, ainda para mais com a herança que o Ricardo Pais deixou, mas, por outro lado, vou fazê-la num apartamento. Acho que conseguimos confluir as duas coisas. Acabei de ver uma gravação de uma A Morte de Danton feita à época, e era extraordinária porque estava muito bem explicitada. Nós não temos de vestir jeans para mostrar que os textos são bons. Os textos andam a mostrar que são bons há dois mil anos. Se não tivermos medo de ser caretas, provavelmente as pessoas chegam à conclusão que não somos caretas. Eu percebo o que o Pedro quer dizer e estou de acordo com ele. Acima de tudo não devemos ter medo de falhar.
Foi isso que fez no Ao Cabo Teatro?
No Ao Cabo Teatro existe essa ideia de estar ligado a um teatro de palavra, de o visitar de uma forma contemporânea. Todos gostamos de peças grandes, gostamos de fazer Shakespeare, gostamos de Molière, de Racine, Tchékov e de coisas pequenas também. Então, criámos uma coisa entre o clássico e o contemporâneo, entre o grande teatro do mundo e o pequeno teatro do mundo e, depois, como precisamos de muitos meios, apostamos muito na circulação e na digressão, porque é a maneira de criarmos uma engenharia financeira para sustentar esses projectos. O Ao Cabo Teatro foi das companhias que mais circulou e montou repertório.
Estava à espera deste convite?
Foi muito simples. Estava em casa a regar o jardim e telefonou-me a senhora secretária a marcar-me uma reunião com o senhor ministro e aí foi-me feito o convite e eu aceitei. Quando me telefonaram a convidar para dirigir o ANCA [Auditório Nacional Carlos Alberto] também estava no jardim dos meus pais a regar as plantas. Seria absolutamente hipócrita dizer que nunca imaginei dirigir um teatro. Qualquer encenador que faz repertório imagina sempre aquilo que melhor pode potenciar ou deseja fazer. Agora, o principal objectivo que eu sempre tive foi fazer teatro.
Como actor?
De todas as maneiras possíveis e imagináveis. Eu divirto-me muito como actor, sofro mais como encenador mas, mesmo assim, é a profissão mais maravilhosa do mundo, especialmente se uma pessoa tiver a sorte que eu tenho tido (também fiz por ela). Podemos ser criança até à terceira idade.
Na apresentação da programação para o centenário falou-se de uma companhia quase residente. Como é que isto vai funcionar?
Uma companhia residente é uma companhia que se prolonga indefinidamente no tempo. Uma quase residente é uma companhia que nos permite o convívio com actores durante o período de um ano que, depois, pode ser renovado ou não.
E já há nomes?
Estamos a trabalhar. Tem de haver uma escolha aturada porque também queremos ter em conta a questão da paridade, que é muito importante e que é preciso confrontar com a assimetria das dramaturgias clássicas, sobretudo, porque ninguém pensava em paridade naquela altura.
Também está envolvido em projectos comunitários. Vê a arte como modo de integração?
A arte é o estabilizador social número um. Isto surgiu por acaso. A ideia não foi minha, foi do Carlos Costa, do Visões Úteis, que me desafiou a levar O Subterrâneo às prisões do país. Marcou-me muito e enche-me profundamente de alegria ir para uma comunidade, como fui para a Cova da Moura, ou agora no Aleixo, de poder intervir com aquilo que eu sei fazer, que é brincar, e de poder com isso discutir e potenciar a dignidade das pessoas. Vamos [TNSJ] abrir dois clubes de teatro. O sub-88 e o sub-18 estão ligados ao serviço educativo e vamos construir dois espectáculos ao longo do ano de 2020. Um chama-se Once Upon a Time na Cantina e o outro Once Upon a Time no Autocarro. Eu não tenho carta de condução, conheço o Porto todo a pé ou de transportes públicos e sou um fã incondicional dos autocarros STCP, porque são melhor do que o cinema. Às vezes viajo de autocarro por vício. É um sítio onde se vive a cidade de outra maneira.