Sem a ajuda do produtor Raül Refree, Lina continua a apontar outros caminhos para o fado. Falámos sobre ‘Fado Camões’.
Manel Cruz recebe-nos em casa a coxear, com um hoodie verde e calças de fato de treino. Tem o pé inchado, suspeita que tenha sido mordido por uma centopeia. Um dos filhos também está doente, forçando-nos a atrasar a entrevista uma hora. Está a ter um dia lixado, se bem que nunca pára de ser um anfitrião acolhedor, deixa todos à vontade. Apesar de ser um dos mais acarinhados cantores e compositores portugueses desde a década de 90, quando o conhecemos ao lado dos Ornatos Violeta, é um tipo real, sem cagança e com uma honestidade desarmante. Ao longo de duas horas de conversa, vamos vê-lo a rir-se com o corpo todo, mas também a emocionar-se, quando falamos de Elísio Donas; e a irritar-se, quando o assunto é o STOP, que tentou salvar e onde durante anos ensaiou. Os últimos tempos naquele espaço de ensaios foram tão desgastantes que decidiu sair de lá e montar um pequeno estúdio em casa, no Porto, onde ainda hoje compõe e ensaia as canções que partilha com o país. Nos dias 27 e 28 de Fevereiro, vamos poder ouvi-las na Casa da Música.
Estás cheio de planos para os próximos tempos. Lançaste um novo single dos Pluto, deste uns quantos concertos com eles. E nos próximos meses vais andar a tocar sozinho pelo país. Porquê agora?
Sabes que esta coisa de tocar sozinho não tem muito tempo. Foi há uns anos que começou mais a sério. Antes disso, tentava sempre criar um nome para os projectos, porque desconsolava-me um bocadinho ser só o Manel Cruz.
Daí o nome Foge Foge Bandido.
Que também era um projecto a solo, só que não usava o meu nome. Até que o meu manager me disse que iriam mais pessoas aos concertos se me apresentasse como Manel Cruz. E eu pensei: “Porque não?” Então lá comecei a usar o nome. Mas na altura ainda tinha uma banda comigo, porque as minhas canções tinham bué arranjos. Para mim, não faziam sentido de outra forma.
Se bem que me lembro de te ver sozinho, como Manel Cruz há vários anos. Numa edição do Termómetro, por exemplo.
Porque às vezes convidavam-me para um concerto ou outro, para tocar três ou quatro temas sozinhos e eu fazia uma perninha. Porém, não me sentia totalmente confortável a tocar a solo. É preciso outro tipo de bagagem para aguentar um concerto todo sozinho. É diferente de tocar umas três ou quatro músicas e tal. Mesmo assim, deu para perceber que as coisas resultavam numa outra dimensão, havia outro tipo de interacção e de ligação, diferente da que havia no concerto de banda. Então comecei a fazer mais essas coisas.
E as pessoas gostavam à mesma.
Havia umas músicas que se aguentavam melhor sozinhas, só que tinha muitas músicas que não estavam preparadas para tocar a solo, era quase como se estivesse no campismo a tocar uns acordezinhos. As pessoas cantavam as músicas, porque as conheciam, mas não era propriamente o som em si que enchia a sala.
Porque as conheciam e porque as tuas letras são particularmente fortes e evocativas. Até funcionavam a capella.
Certo, funcionavam de uma certa maneira. Contudo, eu sentia-me sempre um bocadinho frustrado no sentido em que tinha quatro ou cinco músicas que podia tocar e funcionavam bem, enquanto música, enquanto som, e outras que eram mais por essa parte das letras, da comunicação e tudo o resto. E sentia-me um bocado frustrado quando chegavam essas músicas, porque não soavam tão plenas como outras. Por isso é que, quando fiz o Vida Nova, tentei que fosse um disco muito mais simples, em que eu deixava as músicas a marinar e acabavam por precisar de menos coisas do que no Bandido, que era um projecto mais experimental. E comecei a ter um leque de músicas que existiam sozinhas, ou no ukulele ou na guitarra. Agora sinto finalmente que toco um concerto do início ao fim, pensado para este formato. Isso deixa-me bastante confortável. Além de que aprendi a desfrutar do meu concerto e de tocar sozinho. Foi tudo uma aprendizagem. Ultrapassar a questão do nervosismo, de ter tocado sempre com banda e de repente estar sozinho.
“A música, para mim, sempre esteve muito ligada à vontade de tocar com os amigos”
Uma coisa é teres os teus amigos ali ao lado e saberes que, se algo correr pior, eles te vão puxar para cima. Outra é estares ali, desamparado. Com toda a gente a olhar.
É uma outra dinâmica. Apesar de já ter uma carreira grande, foi uma aprendizagem diferente. Por isso é que tive de começar a fazer músicas só para este formato. Tanto que, neste concerto, não estou a fazer uma revisitação da carreira. Toco um ou outro tema mais antigo, como o “Devagar” dos Ornatos, ou “O Navio Dela”, mas toco muitas músicas que nem sequer estão editadas. Tenho 20 e muitas músicas por gravar, algumas há anos, porque dado a correria da vida não tenho conseguido gravá-las com a regularidade que queria, então acabo por tocar um monte de músicas que as pessoas só conhecem ao vivo e só podem ouvir lá. Este concerto é um espaço muito específico, melancólico e calmo.
Por acaso, pensei que este concerto tivesse a ver mais contigo, com o facto de fazeres 50 anos no próximo ano e quereres olhar para trás, fazer um balanço. Mas já vi que não.
Pois não. É mesmo porque aprendi a gostar disto. Aquilo que me motivava na música é a vibração com as outras pessoas. Eu tinha uma carreira nas artes plásticas, já promissora e completamente definida, e desviei-me para a música por causa dos meus amigos. Porque tinha uma banda e aquilo dava-me bué de gozo. A música, para mim, sempre esteve muito ligada à vontade de tocar com os amigos. Acho que nunca me foi permitido sentir que o meu emprego era um emprego, porque sentia que estava a fugir do que devia ter sido a minha vida. Esta digressão a solo, de certa forma, sou eu a assumir que sou músico. Quer me sinta um grande músico ou não, ou quer me sinta um artista, esta é que é a minha vida.
É interessante ouvir-te dizer que sempre te viste mais como um artista. Realmente, quem abre o teu Instagram encontra poemas, desenhos, arte. Mas pouca música.
Tens razão. Mas é estranho um gajo pensar assim. Tipo, tu na arte andas a tentar encontrar-te ou andas a tentar fugir? Porque as coisas são muito parecidas, dão uma volta ao planeta e encontram-se de costas. Mas sinto-me mais como um artista porque sou uma pessoa que pensa sobre o mundo, sobre a vida. Isso é inevitável para mim, é incontornável. Mas é algo que só tenho vindo a perceber por ter começado a fazer algum trabalho de auto-análise, até de psicologia, para tentar entender e resolver certas [questões].
Andas na terapia mesmo?
Já há bastante tempo, sim. É muito bom. Não digo que toda a gente devesse fazer, mas acho que é sempre útil. E não é preciso estar-se mal para se fazer, é preciso só quereres perceber certas coisas na tua vida, acompanhado por um profissional que te ajuda a pensar nas coisas de outras perspectivas.
“Não é preciso estar-se mal para fazer [terapia], é preciso só quereres perceber certas coisas na tua vida”
É bom para rompermos com certos padrões de que às vezes nem nos apercebemos.
E era bom que toda a gente pudesse fazê-lo. Essa coisa de uma pessoa confessar estas coisas pessoais, sem ter de estar mal. Só falo disto porque pretendo inspirar o máximo de pessoas a fazê-lo também. É preciso dar credibilidade a essas profissões e o nosso país é uma nódoa e uma miséria na maneira como vê o trabalho dos psicólogos. Não tanto o dos psiquiatras, curiosamente, apesar de ser complementar.
Porque os psiquiatras tiraram um curso de Medicina. São doutores.
Tens razão. As coisas estão muito mais evoluídas do que há 20, 30 anos. Apesar disso, ainda precisam de evoluir mais.
Muito mais.
Acima de tudo, quando fazes esse trabalho, começas a perceber que nem tudo diz respeito às tuas opções profissionais. Eu fugia muito para o trabalho, mas parte da minha obsessão com o trabalho também tinha a ver às vezes com uma fuga pessoal. E isso é salutar numa certa medida. É bom que te refugies na arte em vez de andares aí a bater nas pessoas ou a fazer merda no mundo. Ao mesmo tempo, é bom ver um certo equilíbrio. Encarares os teus problemas pessoais, os teus demónios, os teus medos e não te tornares um workaholic. É um bocado aquela coisa: vive a vida e canta a canção, não vivas a canção e cantes a vida. Tenho vindo a perceber que há uma vontade de auto-provocação e de provocação da sociedade em mim, na maneira como escrevo, nas coisas que faço. Deve ser esse o papel da arte no mundo: provocar, mesmo que não seja no sentido desestabilizador puro e duro.
Pelo menos da arte que importa.
Sim. Deve mexer com as coisas, fazer as pessoas pensar, mudar os paradigmas. Nessa medida, não me importa tanto o suporte em que faço as coisas. Acabo por fazer mais música porque é o que me dá dinheiro. Inicialmente, o desenho era aquilo que me dava o dinheiro e a música era o meu hobby. De repente, a música começou a dar-me mais dinheiro. Passou o resto a ser o meu hobby. Até porque não me interessa tanto o sucesso, mas sobretudo a comunicação e a expressão. É isso que precede tudo.
No início da conversa tentei fazer-te uma pergunta, mas acabaste por não responder… Vais fazer 50 anos em Outubro. Sentes o peso desse número? Eu estou com 38 anos e a ideia de fazer 40 aterroriza-me. Penso muito em quem é que vai querer andar comigo com essa idade, que futuro me resta. Isto é sequer algo em que tu penses?
Por acaso, sinto-me sempre mais novo do que às vezes me apercebo. É um bocado como teres um chapéu na cabeça, mas como não estás sempre a olhar para ele só quando te vês ao espelho é que percebes que tens um chapéu, porque já nem estavas a pensar nisso. Acho que é possível já ter passado por uma crise de meia-idade, porque tudo isto são nomes para significar coisas que te acontecem. Às vezes dizes que o dia te correu mal, mas se calhar não foi o dia que correu mal. Estás só com uma gastroenterite e nem atribuíste à doença o facto de estares mal.
É tudo uma questão de perspectiva, portanto.
São fases, às vezes são dias, às vezes é um ano. Nós focamo-nos nesta ideia da idade porque queremos sentir-nos jovens. Não quer dizer que queiramos ser mais novos, mas queremos sentir a frescura e aquilo que traduz no nosso coração o estar vivo, que é respirar bem, ver tudo brilhante. É uma juventude que não tem a ver com a idade que tu tens, mas com a gratidão que tens em relação à vida e ao dia que te é presenteado. Porque é de facto uma prenda. E muitas vezes não reconhecemos isso. Sentimos que estamos mais velhos porque há algo que nos empurra para um certo cinismo. Perdemos a inocência e passamos a ser aquilo que construímos para nos defender do mundo. Isso é legítimo e saudável, mas às vezes essa defesa cria muralhas que também impedem as coisas boas de entrar.
Aconteceu-me muito. Ainda acontece.
Sim, porque tu não te apercebes do que fazes. Às vezes pensas que estás a defender-te…
Mas estás só a atacar-te.
Sim, é só o medo. E estás a criar mais medo. Porque viver é fácil, o difícil é ser fácil. Temos de estar constantemente a crescer e a melhorar e a questionarmo-nos. Mas também podemos questionar demais. É este equilíbrio que é difícil de atingir. Por isso é que às vezes é um sofrimento, a vida.
Demasiadas vezes.
Pela parte que me toca, e não tendo sido a minha vida só sofrimento – foi muita alegria e muito sofrimento –, o meu sucesso neste momento, a minha sensação de sucesso, é sentir que, com a idade, me tenho vindo a aperceber de certos mecanismos meus, certos vícios, certas formas de pensar viciadas, que acredito ainda ir a tempo de melhorar. Que ainda tenho vida pela frente para ter mais qualidade de vida. Quando há uns tempos um amigo me perguntou quais eram os meus planos para 2023, à espera que lhe falasse em gravar um disco ou em fazer não sei o quê, sabes o que respondi? “Ter menos ansiedade.” Juro-te, é o meu projecto de vida. Ter menos ansiedade é aquilo que mais quero neste momento.
Por falar nisso, quais são os teus planos para 2024?
[Risos.] Continua a ser ter menos ansiedade. E ter mais consciência das coisas que posso melhorar em mim.
Os Pluto lançaram agora um single, a primeira canção nova em quase 20 anos. Há mais planos para o futuro? O que vos levou a reunirem-se?
Nós nunca parámos propriamente. Fizemos uma interrupção porque tínhamos outros projectos, mas de vez em quando encontrávamo-nos e falávamos e dizíamos que tínhamos de nos juntar. Mas não era fácil, andávamos sempre a correr. Além disso, vivemos num país relativamente pobre e precário, não temos propriamente uma indústria que promova a sustentabilidade, a subsistência de quem trabalha. Não há majors nem uma grande indústria musical em que vendes para um 1% da população e tens a vida feita. Temos um território muito pequeno. É muito fácil ires fazendo isto e aquilo para desenrascar e pagar a renda, e passares muito tempo sem um reflexo nas redes sociais do que andas a fazer.
“Vivemos num país relativamente pobre e precário, não temos propriamente uma indústria que promova a sustentabilidade, a subsistência de quem trabalha”
Não é por acaso que a maior parte dos músicos, mesmo aqueles que aparecem na imprensa e na televisão, é amadora. Têm de ganhar a vida de outra maneira.
Porque aqui, se queres contratar um manager para seres mais ágil, tens de pensar muito bem antes de o fazeres. Precisas de um manager, de um agente, de um booker, de um roadie, de um runner, de um road manager, de um publisher, dessa gente toda. Mas depois, quando mal tens dinheiro para ti, como é que lhes pagas? Sobretudo quando não sabes se o que recebes a mais por teres esta gente a trabalhar para ti chega para pagares os ordenados. É mais fácil – e menos arriscado – ficares quietinho e receber o guito da SPA.
Era o que eu faria. Já tenho problemas que cheguem.
As pessoas não se apercebem, mas no meio das bandas e tudo há muitas private jokes. Mesmo nos Ornatos Violeta, que tiveram um dos maiores cachês da música portuguesa quando se reuniram. Porém, comparado com o que ganha qualquer banda estrangeira, isso não é nada. Nós uma vez tirámos uma fotografia quando estávamos a regressar e havia todo aquele glamour da reunião dos Ornatos. Quando chega a altura de sermos fotografados, estamos conscientes de todos os nossos problemas, de todas as nossas idiossincrasias, de toda a realidade. Tirámos a fotografia, e estamos assim em pose, alta fotografia, mesmo boa. Mas na altura ninguém reparou que estávamos ali cheios de estilo, e no chão estava um cagalhão de cão. E isto é Ornatos como a gente conhece. Vivemos entre a merda e a maravilha. Isto é a realidade.
Já estamos a dispersar-nos outra vez. Não chegaste a dizer porque decidiram os Pluto reunir-se agora.
Porque tínhamos muitas saudades de tocar juntos. Cada banda e cada projecto satisfaz-nos uma vontade artística diferente, de acordo com o código de comunicação que encontras em cada sítio. Eu curto estar e falar contigo, e vou falar contigo de uma determinada maneira e vamos curtir de uma determinada maneira. Mas, quando preciso de outro tipo de sensação, vou falar com outra pessoa, que é mais assim ou mais assado, que quer ir beber uns copos. Com as bandas passa-se o mesmo. Há um espaço que temos construído, musical e não só, e temos sempre a vontade, o instinto de voltar lá. E o convite do Luís Salgado [do Maus Hábitos, no Porto] para fazermos O Salgado Faz Anos… Fest! foi um bom pretexto para a gente voltar a aprender as músicas que criámos. Sacar as nossas malhas, essas coisas. Também para mostrar músicas que tínhamos que não tinham sido editadas. Entretanto, temos muitas ideias na gaveta e esta foi uma música que surgiu e – por estar mais fresca – tivemos mais vontade de mostrar para depois trazer a reboque todas as outras.
Essa conversa das pessoas e dos grupos e das relações faz-me pensar nos Ornatos Violeta. Tendo em conta que as bandas para ti são as pessoas e as relações, consegues imaginar uma banda como os Ornatos a continuar sem o Elísio Donas?
O Elísio nunca vai deixar de fazer parte dos Ornatos, no sentido em que isto agora não é uma banda sem ele, é uma banda com a falta dele. E com a memória dele. Ou seja, a vida continua e se a gente vir as coisas numa perspectiva positivista, agarramo-nos ao que ficou de bom e não nos prendemos à ausência. Se o Elísio estivesse em algum sítio, ou estiver nalgum sítio, a ver-nos, enquanto os Ornatos continuarem ele está vivo de alguma forma.
“O Elísio nunca vai deixar de fazer parte dos Ornatos, no sentido em que isto agora não é uma banda sem ele, é uma banda com a falta dele. E com a memória dele”
Estamos vivos enquanto alguém se lembra de nós.
Sim, sim. E transportamos todo o passado e todas as pessoas que se cruzaram connosco na nossa existência. Seguirmos em frente é a única forma, a única hipótese da existência dessa pessoa se repercutir no futuro.
Sentem então mais necessidade de manter vivos os Ornatos Violeta hoje do que quando ainda estavam cá todos?
Acho que o que nos dá vontade de continuar, e o que me faz feliz nos Ornatos, é muito mais pessoal, porque nós vivemos mais connosco do que com o mundo e o reflexo mediático das coisas. Como pessoas, como empresa, como o que quer que seja, vivemos muitas coisas juntos. O que mais me orgulha, neste momento, é que quando acabámos e éramos miúdos tínhamos um discurso muito de “a culpa é tua; e não, foste tu que fizeste”. Ainda me lembro de estar a encontrar-me com o Kinörm antes do regresso, depois de já sabermos que as coisas são mais complexas do que um gajo pensa quando é adolescente. Lá está, quando tem medo. E disse que eles tinham razão no que me disseram, que eu era impossível de aturar em certas merdas, já numa conversa de amigos. Ele diz-me que “não, desculpa, eu, havia coisas em que tu tinhas razão e não sei quê”. Para mim, isto é o verdadeiro sucesso.
Aceitarmos que não somos os donos da razão e os heróis da nossa história é das melhores coisas que nos pode acontecer. Para muita gente fomos mesmo os vilões.
E do que é que serve teres razão se ficares sozinho? Às vezes penso que é tão lindo eu ter conhecido aqueles gajos na escola e, mesmo que já não tenhamos a mesma energia, termos voltado a ser amigos agora. Eu não conseguia estar nos Ornatos só por uma questão de funcionalidade profissional, porque a nossa banda ergueu-se numa relação de amizade sem a qual não existe comunicação artística. E acho tão bonito nós sermos miúdos e estarmos apaixonados uns pelos outros na altura, como é bonito agora, depois de sermos mais cotas e já termos perdido a inocência, conseguirmos encontrar uma certa beleza dentro desta imperfeição. Às vezes é difícil acreditar no amor para sempre, nas amizades para sempre, porque tens tantos exemplos das coisas a não funcionarem, que deitas fora o miúdo com a água do banho, esqueces-te que não existe evolução sem manutenção, que tudo o que é bom dá trabalho.
Tens razão. É-nos vendido que o amor é algo que acontece e dura para sempre. Mas não, só dura enquanto lutares por ele. E quem diz o amor diz a amizade. As relações.
Se tu não lutares pelas coisas elas não vão lutar por ti.
E isso leva-me ao STOP. Durante muitos anos, foste a cara do STOP para muita gente, tinhas lá a tua sala, chegaste a estar à frente da associação. Como é que vês o que aconteceu ali, o que pode acontecer ainda, e o que podia ter acontecido?
Aprendi muito durante aqueles dois anos em que estive à frente da associação. Tinha estado 13 ou 15 anos como músico no STOP e percebi que aquilo tinha algo que falta muitas das vezes nas associações, que é já existir matéria, existir resiliência. Tinha tudo. A dada altura, por questões legais, o STOP teve que lutar pela sua legalização, porque havia um aviso de fecho. Nesse momento, pediram-me que fizesse parte da associação, e eu candidatei-me, integrado numa lista. Durante esses dois anos, tentei avisar muitas vezes que aquilo era para levar em conta, que poderia fechar, e as pessoas diziam que não. Mas havia um aviso, havia a Protecção Civil, e eu não me considero à margem da sociedade. Eu quero uma sociedade. Por exemplo, a polícia pode exercer mal a sua função às vezes, mas não quero deixar de repente de ter polícia. Quero é melhorar a polícia. Porque temos sempre de trabalhar com o que temos. Não podemos…
Deitar fora o miúdo com a água do banho.
Exacto. Fico um bocado emocionado quando falo disto. Aquilo que encontrei no STOP foi a coisa mais bonita do ponto de vista político, do associativismo e do ponto de vista humano. Mas foi também, simultaneamente, a maior desilusão que tive. Tanto que a dada altura não tive energia para continuar. Estava ali a dar o máximo e começaram a ouvir-se insinuações, de que eu tinha agenda com a Câmara [Municipal do Porto]. Só porque tentei dialogar com a Câmara. E dialoguei porque era a Câmara que existia. Apesar de repudiar o Chega, se o Chega estivesse lá, era com eles que ia falar. Se eu tiver uma laranja seca e tiver de dar de comer aos meus filhos, não vou deitar a laranja fora. Vou espremer o máximo que houver nesse fruto. E isso não é ser hipócrita. Isso é fazer política. É isso que a gente tem que fazer. E que muitas vezes as pessoas não percebem. Eu não sou moreirista. Eu não sou bloquista, eu não sou comunista, eu não sou nada, eu não sou “ista”.
“A polícia pode exercer mal a sua função às vezes, mas não quero deixar de repente de ter polícia, quero é melhorar a polícia. Temos de trabalhar com o que temos”
Temos de trabalhar com o que temos.
Exacto. E eu sinto que as pessoas só acreditaram em mim quando me passei, quando desci à chinela e mandei todos para a puta que os pariu. Eles perceberam aí que eu era real. Quando tentei ser diplomático, toda a gente duvidou de mim. No final, quando saí, já tínhamos tudo aprovado, com fundos europeus, mas não queria estar a trabalhar para dizerem que eu mudei o espírito disto. Portanto, passei a pasta, caguei no assunto e saí.
Fazes ideia do que vai acontecer agora?
Não sei. Espero mesmo que eles consigam salvar o STOP. Mas eu não consegui mais. Agora olho para as manifestações e só penso onde é que aquelas pessoas todas estavam quando foram as assembleias gerais? Sei que isto é perigoso de se dizer, porque eu também não vou a montes de coisas, eu sou preguiçoso, mas depois não vou para a rua dizer “Rui Moreira morto”.
Isso interessa-me. Por que achas que as pessoas vão para a rua agora manifestar-se, mas não iam às assembleias?
Não consigo responder de uma forma taxativa a isso. E eu também fui à manifestação. Acho que as pessoas na rua sentem que conseguem tomar o pulso à dimensão da companhia que têm. E isso é muito importante, essa sensação.
Como te sentiste na manifestação?
Na rua senti-me um estranho. Não sabia se ia para lá e se alguém me ia bater, ou se ia protestar. Mas não me senti sozinho.
Casa da Música (Porto). 27-28 Fev (Ter-Qua). 21.30. 35€