Pedro Mafama lançou este ano Estava No Abismo Mas Dei Um Passo Em Frente, disco de bailes, rumbas e marchas. De festa. Falámos sobre o desafio de fazer música feliz. Mas não só.
Pedro Trigueiro não gosta de falar sobre si. Mas tem de ser. Conhecemo-nos há mais de uma década, desde antes de existir a Arruada, a sua agência, que está por estes dias a celebrar dez anos. Durante um longo almoço, no restaurante O Palácio, em Alcântara, a 15 minutos dos escritórios da Arruada em Campo de Ourique, vai dizer mais do que uma vez: “Estamos aqui para falar sobre a Arruada. Não é sobre mim”. Mas as duas coisas confundem-se. Foi ele, hoje com 45 anos, que imaginou o projecto, no início da década passada, quando ainda estava na Universal. Continuou com a ideia fisgada quando saiu da grande editora multinacional para acompanhar mais de perto a carreira dos Buraka Som Sistema e a expansão da editora deles, a Enchufada. E foi ele que, em 2022, decidiu alargar o raio de acção da sua agência e fundar a Arraial, uma estrutura paralela, mais focada na assessoria e acompanhamento estratégico de artistas.
Não admira que ele e a Arruada, por agora, ainda se confundam. Mas a ideia é separar-se cada vez mais do projecto, que ao longo destes dez anos trabalhou de perto com festivais como o Cool Jazz ou o NOS Alive, além de ter desempenhado um papel fulcral no descolar da carreira pós-Buraka Som Sistema de Branko; na trasladação do fado de Cristina Branco para junto de outros públicos; na institucionalização de Dino D'Santiago; e acompanhou a recente explosão de popularidade de Pedro Mafama. Carminho, Banda do Mar, Regula ou Mallu Magalhães são outros nomes na sua órbita. O talento e o mérito, diz, é dos artistas. Mas, sem a sua equipa por trás, talvez não tivessem chegado a tanta gente. Aproveitámos, por isso, para falar de música e de Portugal, e do futuro da Arruada. Segue-se o resumo possível de quase quatro horas de conversa, regada a água e cerveja, e acompanhada por fatias de queijo e presunto, um bom bife da vazia e uma bela posta de bacalhau à minhota.
Lembro-me de ler o teu nome pela primeira vez na revista Rock Sound, por volta de 2002 ou 2003. Já tinhas feito alguma coisa antes?
Quando acabei o secundário, ainda com 17 anos, não tinha média para entrar no curso que queria, que era Comunicação Social em Benfica, e o meu pai disse que tinha de fazer-me à vida. E havia um gajo na minha rua que tinha duas características: era um melómano como nunca apanhei mais na vida, e era da Força Aérea. Trabalhava 48 horas seguidas, quase sem parar, e depois tinha direito a ficar uma semana em casa. Percebi que dava para continuar a estudar e ganhar o meu dinheiro. E assim fiz. Foi tudo muito rápido. Fiz os exames, passei um ano só na Força Aérea e, mal estou colocado em Sintra, comecei a faculdade, na Lusófona. Estive a fazer as duas cenas ao mesmo tempo e no último ou penúltimo ano da faculdade começo a escrever, a receber uns pedidos.
Da Rock Sound?
Há uma cena pré-Rock Sound, um site chamado o underportugal. Comecei a frequentar cenas com os jornalistas e é aí que conheço o Daniel Makosch, que era o proprietário do franchise da Rock Sound em Portugal, e um gajo chamado Xavier Martins, que era o fotógrafo, e começo a escrever para lá. Quando estou a acabar a faculdade, o Makosch convida-me a estar a tempo inteiro na Rock Sound e saio da Força Aérea.
Nunca pensaste seguir a carreira militar?
Não. Podia ter continuado na Força Aérea, mas o jornalismo era mesmo o que queria fazer. Tinha estado quatro anos a estudar para isso, ao mesmo tempo que trabalhava.
Estiveste pouco tempo na Rock Sound.
Porque às tantas, já dentro da Rock Sound, aparece o Diário Digital. Um dos directores [do DD], o Filipe Rodrigues da Silva, também escrevia na revista e convida-me para escrever umas coisas para o Disco Digital, para fazer as duas cenas. Entretanto a Rock Sound pára e fico só no Disco Digital. Ao fim de uns anos, por me dar bem com o pessoal da Universal e ser um gajo prático, convidam-me para ir para lá. Nem foi preciso uma segunda conversa.
Como é que tu, um gajo que queria mesmo fazer jornalismo, passa para o outro lado? Ordenado. O dinheiro que recebia por mês no Diário Digital era para lá de vergonhoso. Era insustentável, não dava para fazer mais nada na vida. E o que me interessou mesmo sempre foi a música, queria saber como se fazia tudo. Backstage, promoção... E isto foi uma oportunidade de ir um bocadinho mais longe. De aprender mais sobre o negócio.
É nesta altura que nos conhecemos. Quando eu estava no Diário de Notícias e tu do outro lado, na Universal, onde ajudaste a lançar algumas carreiras. Por exemplo, a dos Buraka Som Sistema.
Por acaso o começo dos Buraka nem é comigo. O primeiro álbum deles, o Black Diamond, sai pela Sony. Só comecei a trabalhar com eles no Komba. Já estavam mais que lançados. Mas ajudei outra malta. Por exemplo, a Luísa Sobral, quando chegou à Universal, ainda não era ninguém. Era uma grande compositora, só que ninguém a conhecia. Fui eu que escrevi o primeiro texto dela, que marquei as primeiras fotografias, que descobri um gajo no Porto para lhe fazer o vídeo. Ou mesmo o António Zambujo, que só chegou à Universal ao quinto disco. Já tinha quatro e não estava a ter o reconhecimento que merecia. Felizmente, apesar de eu estar quase de saída [da Universal], aquilo tocou-me a mim. E fez-se um trabalhão do caraças.
Porque decidiste sair da Universal para te concentrares na promoção dos Buraka?
Porque eles me desafiaram. Foi o João Barbosa [de Buraka Som Sistema], o Branko, que me disse uma coisa de que não me vou esquecer: “Era fixe vires para aqui desentupir isto. Ouvi dizer que tu eras fixe para desentupir.”
Eras fixe para desentupir?
Porque é relativamente fácil montares uma festa e os gajos fixes aparecerem todos na primeira festa. O que é difícil mesmo é haver consistência. Fazer as demais festas. É aqui que começa a aparecer a porcaria. No caso deles, o “Wegue-Wegue” é um salto como nunca houve na música portuguesa. É um salto internacional. O desafio depois foi manterem-se no ar. E é aí que eu entro. A dizer, pá, temos que olhar para Daft Punk. Temos que olhar para Prodigy, na altura. Pessoal da música de dança, mas com uma carreira que se mantém, com longevidade. E foram essas conversas que nos levaram a bulir juntos. É difícil criares um grande hit e seres conhecido. Mas é ainda mais complicado garantires o segundo hit. Teres da consistência. Tornares-te um nome institucional, mas sem te tornares frio e velho. Institucionalizares-te quase como uma marca.
Como é que se faz isso?
Eu não sei se tenho códigos para desbloquear, mas para mim esse é sempre o desafio. Perceberes e pensares onde é que vês os artistas dali a 20 anos. E foi o que perguntei aos Buraka [Som Sistema]. Já tínhamos falado todos, mas ainda não tínhamos dado o aperto de mão. E marquei uma reunião, num hotel, com eles os quatro, e disse mesmo: “Chavais, eu sou label manager da Universal. Estou fixe, não estou zangado. E vou saltar? Para fazer o quê? Isto de que estamos aqui a falar é para dois anos ou é para 20?” E eles dizem que é “para 20, claro que é para 20”. Era o que queria ouvir. Claro que não foi. Mas pronto.
Alguma vez te arrependeste de sair da Universal e ficares só com a Enchufada?
Não. Isso é que não. Também porque, quando eu salto para a Enchufada, já tinha a ideia e o logótipo de uma cena chamada Arruada Música. E disse logo: “Vou ficar um ano aqui com vocês, mas depois vou ter de trazer mais pessoas, mais artistas. Não vamos poder ficar assim, só nós”. E eles, meio tortos, aceitaram.
Como é que os convenceste a deixar entrar mais pessoal?
Não sei se se trata de retórica ou não. Acho que eles próprios queriam ser convencidos disto. Há uma frase de Mão Morta que é: “estavam demasiado entretidos a crescer”. E se calhar não estavam a ter essa visão de fora. De que dava para fazer grana boa e construir quase uma empresa em paralelo. De agenciamento, juntamente com a label. E eles deram-me mesmo carta branca. Quer dizer, não foi bem carta branca, mas chegámos a ter conversas com D'ALVA, :papercutz... Os PAUS passaram por lá também.
O Hélio chegou mesmo a trabalhar lá.
E o Pedro Mafama. Era o estagiário. Mas pronto. Havia a curadoria do próprio Branko com o Kalaf, a questão da label. Mas aí já não me metia. Estava mais interessado em montar a estrutura.
E com o tempo a Arruada descola-se da Enchufada. Parece-me um processo natural e orgânico. Mas porque decidiste agora, em Janeiro de 2024, assinalar os dez anos?
É verdade que isto já vinha de trás. Mas só em Janeiro de 2014 é que recebo o cartão de empresa do Estado. A 3 de Janeiro de 2014 vou buscá-lo a Benfica e, para mim, esse é o dia de nascimento da empresa.
Curiosamente, ao longo destes dez anos, tu e a Arruada fizeram muito mais do que agenciamento de artistas. Fazem booking, assessoria, produção, até houve discos…
Que editei.
E dos quais foste produtor executivo. Como é que isso foi acontecendo?
Eu nunca me imaginei a fazer na Arruada aquele trabalho de booker, a estar com o cu sentado na cadeira à espera que o telefone toque. Não estou para isso. E todas as pessoas que passam pela Arruada percebem isso. Não me digam que vamos fazer as coisas como sempre se fizeram. Não me digam que estamos em velocidade cruzeiro. Porque tu montas uma estratégia digital, em Janeiro de 2024, e em Abril de 2024 ela está obsoleta. Portanto, o caminho não é sempre igual, nem todos os dias está igual. E a produção executiva de discos foi algo que percebi que estava a faltar. Via artistas, às vezes, a patinar. Durante muitos anos, eles confiaram que as editoras resolviam os problemas, tudo o que tinha a ver com os discos. Mas isso começou a dar tão pouco dinheiro que as editoras se deixaram disso. E alguém tem que se agarrar à massa e amarrar processos, onde se grava o disco, com quem... E muitos artistas não estão para aí virados.
É aí que tu entras.
Sim. Tens de ser um facilitador de soluções, num ponto. E noutro ponto tens de ser um proponente de coisas. Por exemplo, eu trabalhei com a Cristina Branco quando ainda estava no Universal. E quando saí foi ela que me procurou e perguntou: “Pedro, o que é que tu achas?” Eu fiz uma análise do que achava. Estivemos cinco horas a falar e depois disse: “Vai para casa a pensar sobre isto”. Quando voltou, entreguei-lhe um papel A4, onde tinha escrito: “Eu tenho um plano para isto. Não questiones”, uma piada. Só que não era bem uma piada.
Qual era o plano?
Passava por meter gajos da cultura do indie, da cultura dos esquisitos, a compor para uma cena de fado como não havia. Quando eu contei à banda dela que havia um gajo chamado Cachupa Psicadélica, que ia chamar para o disco, eles riram-se. Estávamos aqui.
Aqui n’O Palácio?
Sim. Riram-se. E, repara, não foi por desdém. Mas acharam que estava a brincar ou que estava maluco. Porque não era uma cena normal, de facto. Tens lá o Luís Severo; o André Henriques [de Linda Martini], que nunca tinha composto para ninguém; o Filho da Mãe. A [Filipe] Sambado também faz o tema-single do segundo disco. Porque eu não tenho medo de chamar às coisas produto. E é importante dizer isto. A componente artística está no que os artistas realmente fazem. Mas nós, na Arruada, não podemos ir para lá também armados em artistas. Temos que olhar de uma forma super pragmática e pensar “isto é um produto, como é que vamos montá-lo?”. Por isso é que a Arruada, entre outras coisas, faz também a assessoria, que é uma coisa que não se costuma fazer nas agências. Contrata-se sempre alguém externo. Mas eu não me imagino a conceber tudo de raiz e depois subcontratar alguém…
Para vender o produto de uma maneira que não queres que ele seja vendido.
Não quero. Porque como a minha mãe dizia, e com razão, “isto só dói a quem dói”. É a mim que me dói se as coisas correrem mal. É por isso que apresento um plano completo. Pode ser um plano de merda, podemos bater a 360 [quilómetros] à hora contra a parede. Mas está aqui um plano pelo menos.
E consegues perceber melhor o que correu mal e o que correu bem.
Mas voltando à produção executiva. É algo que surge por necessidade. A Arruada tem pessoas dedicadas ao agenciamento, à produção de espectáculos, de festivais, do que quer que seja, e à assessoria. Não tem nenhum gabinete de produção executiva de discos, nem de projectos. Mas o produto é nosso, temos de nos responsabilizar por ele. E mais vale estarmos envolvidos desde o início.
Dizias há pouco que o primeiro desafio, quando começas a trabalhar com um artista, é pensares onde é que o vês daqui a 20 anos. Pensas o mesmo sobre a Arruada?
Onde é que vamos estar daqui a 20 anos?
Daqui a mais dez anos, porque os primeiros dez já passaram. Onde imaginas a Arruada em 2034?
Para começar, há a Arraial, que tem dois anos, vai fazer agora os três.
Nunca percebi bem isso. Qual é a diferença entre a Arraial e a Arruada?
É isso. Temos de dissociar muito mais a Arraial da Arruada. Porque a Arraial, no fundo, é assessoria de imprensa, pura e dura, e consultoria cultural.
OK…
Vou dar-te o exemplo do Pedro Mafama... Agora é giro bater-se palmas, mas quando ele começa a debitar demos para o WhatsApp, no Verão [de 2022], aquilo era muito diferente do que vinha a fazer. Havia um lado de baile, mas um baile de futuro, bailecore. E juntei uma equipa, que era uma pessoa que faz comigo uma espécie de coordenação de artista, e a Nádia [Lima Pereira], que é da Arraial, que é a assessoria, pura e dura, naquele mesmo mindset de que estávamos a falar há bocado. E montamos uma estratégia para depois isto andar. Então começámos mesmo a chamar o Mafama para vir de Cascais para cá, para vir para reuniões às cinco, seis da tarde, acabávamos de trabalhar às oito e depois copos. Não era para a bebedeira, era para a reunião não parar. Íamos para minha casa, jantávamos lá. E porquê? Foi o que disse às miúdas, exactamente, ipsis verbis: “Nós, se não nos desviarmos muito, Mafama pode ser uma cena. Não nos podemos é desviar.”
Desviar?
Desviar do foco, das necessidades do artista e do mercado. Temos de nos concentrar. Nisto – e ainda para te responder à pergunta da Arraial – conseguimos falar com a Sony e dizer: “O disco é vosso. O master de exploração é vosso. Mas temos aqui uma proposta de parceria de marketing e assessoria. Estão ok com isso?” Eles aceitaram e nós arrancámos com isto tudo na mão. O marketing e todo o trabalho que fizemos [em conjunto] vem desta conjuntura entre a Arruada e a Arraial. No fundo, o melhor papel que posso atribuir à Arraial, é ter a assessoria dentro de casa, não só para cumprir objectivos, mas também para pensar.
E isso faz toda a diferença.
Eu também penso que sim. Respondendo à tua pergunta, para 2024, a Arraial precisa mesmo de mais músculo. Precisa de um maior distanciamento entre a Arruada e a Arraial.
Tens algum disco para lhe dar esse músculo?
O disco do André [Henriques, de Linda Martini] saiu por lá. O disco da Rita Vian saiu lá. Também já saiu um disco da Cristina Branco por lá.
Mas nenhum desses discos é o disco do Pedro Mafama.
Não, não. Ainda não.
Vês mais alguém a trabalhar num disco com aquele potencial, neste momento?
Não, não tenho. Até porque um fenómeno com esta dimensão que o Mafama adquiriu não se repete tão depressa. É uma dimensão nacional. Ele em seis meses deu 60 concertos. Fomos ao país real mais real. E isso é algo que não se repete assim tão de repente. Ele [esteve agora] a fazer uma campanha de publicidade nacional, para uma grande marca. Vais vê-la daqui a uns tempos. Há oito meses, se te dissesse isso, rias-te na minha cara. Mas está a acontecer. E no meio disto tudo, voltando à nossa conversa da consistência, agora tem que haver um plano de consistência. E de institucionalização do Pedro Mafama. Que é um papel…
Que vocês fizeram bem com o D’Santiago, por exemplo.
Sem dúvida. Com a história da Medalha [de Mérito Cultural, atribuída em Dezembro, pelo ministro da Cultura], acho que chegámos ao cúmulo da institucionalização. É isso que me dá tusa. É isso que quero para a Arruada, voltando à conversa dos 20 anos: institucionalizar. O Dino D’Santiago está a entrar na sala do [António] Costa, está a entrar na casa do Marcelo Rebelo de Sousa. Está a entrar em todo lado. E é o único black em muitos destes sítios.
Até há alguns anos ninguém diria que era possível.
Mas é isso que me alimenta. É o meu fuel. Já tive artistas estabelecidos a entrarem no meu escritório e apresentarem-me grandes números, uma folha de Excel muito interessante. Mas e depois? Eu não quero que a Arruada venda a banha da cobra. Não quero enganar jornalistas. É algo que sempre disse à Nádia desde que entrou: “Não estamos aqui a enganar ninguém”. A cena é propor. Tu propões uma ideia e, se o jornalista diz “grande merda”, vem-te embora. Não chateies. “Ah, mas porque é que não vais fazer?”
Porque não quero, porque não é relevante para mim e para o meu meio.
Exacto. Acho que talvez tenha essa visão por também já ter sido jornalista. Esta história de fazer 360 [graus] à volta da música é boa por isso. A gente não sabe quantos já te vieram com a mesma conversa. E não é uma questão de gosto, é uma questão de pertinência. É importante passar isto às pessoas que trabalham comigo. Porque, voltando à conversa dos 20 anos, o meu objectivo é perder qualquer tipo de preponderância na vida activa da Arruada. Não quero essa ego trip à minha volta. Não preciso disso. Quero que as pessoas ao meu lado brilhem, para não ter de carregar o peso nas costas. Quero distribuí-lo.