Pedro Mafama
Francisco Romão Pereira / Time OutPedro Mafama
Francisco Romão Pereira / Time Out

Pedro Mafama: “Não estou a levar demasiado a sério a felicidade”

Pedro Mafama acaba de lançar ‘Estava No Abismo Mas Dei Um Passo Em Frente’, disco de bailes, rumbas e marchas. De festa. Falámos sobre o desafio de fazer música feliz.

Luís Filipe Rodrigues
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Num dia normal, descer a Rua do Salvador, ali entre a Graça e Alfama, e chegar ao Centro Cultural Dr. Magalhães Lima leva menos de um minuto. Mas, nesta quinta-feira de Verão em Maio, já com os bairros típicos vestidos a rigor para os Santos Populares, vai demorar dez minutos. A culpa é de uma carrinha de caixa aberta, que transporta precariamente uma estrutura metálica pela estreita via. É um exercício arriscado, mas que precisa de ser feito. A Marcha de Alfama a tanto obriga. É ela que nos traz ao Magalhães Lima. Pedro Mafama compôs o hino que este ano vão levar à Avenida da Liberdade, e decidimos encontrar-nos aqui para falar sobre isso. E também sobre o seu segundo álbum, Estava No Abismo Mas Dei Um Passo Em Frente, acabado de editar. E sobre os bailaricos onde vai apresentá-lo em Junho (quarta-feira, 7, no Arraial do Centro Cultural Dr. Magalhães Lima, em Lisboa, e sexta-feira, 23, no Arraial Guindalense Futebol Clube, no Porto); e até sobre a sua relação com Alfama e com a Graça, bairros que conhece como a palma da mão.

Pedro Simões, 30 anos, o homem que conhecemos como Mafama, abre a porta do Magalhães Lima. Conhece o sítio há muitos anos, mas nos últimos tempos estreitou a relação com esta instituição lisboeta: é onde ensaia a Marcha de Alfama e é onde a fotografia que abrilhanta a capa do novo disco foi tirada. A capa de Pedro da Silva tem várias camadas: há uma fotografia do cantor acompanhado por dois amigos de infância, bem no meio de um bolo de pasteleiro à antiga, que por sua vez jaz sobre uma toalha de tasca, decorada com frases em azul que dão algumas pistas para descodificar o álbum. “Um bolo de pasteleiro feito por um pasteleiro”, sublinha o músico. “De uma pastelaria chamada Abelha d’Ouro.” Faz questão de deixar claro que é genuíno e não “uma criação de designer”. Esta exigência de genuinidade e representação estende-se à música. Mas já lá vamos. Antes, ele quer aproveitar que estamos no Magalhães Lima para nos mostrar a música que escreveu para eles. Escutamos com todo o gosto.

Quão diferente ficou a versão final da marcha daquela que tu escreveste?
Apresentei-lhes três ideias e [o director Luís Rodrigues e a banda que toca na Marcha Popular de Alfama] juntaram as partes de que gostavam mais e não sei quê. E depois também deram o toquezinho deles. Não queria fazer uma revolução musical aqui. Depois a marcha tinha pontuação zero e era uma grande responsabilidade [risos].

Teria feito o mesmo.
Como sabes, as músicas têm sempre um tema, e o deste ano é estivadores e varinas. Então fiz uma coisa que me interessasse, mas que servisse o propósito deles. Porque é importante a pessoa dar e receber. Ou seja, convidei algumas das marchantes, convidei a ensaiadora das marchas, que é a Vanessa, para fazer ali uns “puxa” e uns “ais” e não sei quê no meu álbum. Mais o Luís Rodrigues, que é o maestro. Chamei-os para as minhas músicas para servirem o meu propósito, a minha ideia. E depois quando fui fazer a Marcha de Alfama, quis servir o propósito deles. Ainda deu para evocar a gentrificação, com um “Daqui não saio/ Daqui ninguém me tira”. Mas é uma coisa que eles estão a usar como deles. Porque é deles.

É engraçado o tema serem as varinas e os estivadores, e mesmo assim a letra ser sobre encontrares uma pessoa que te muda a vida. É uma ideia transversal a este novo disco. É o mood em que estás?
Sim. Mas junto sempre várias pessoas e ideias e sonhos nas minhas canções. Isto é mesmo verdade, não estou a dizê-lo de forma cínica. Estou sempre a pensar em conceitos universais. São cantados na primeira pessoa, porém acho que são universais.

“Sempre gravei muito em estúdios comunitários, em centros da juventude... Era a forma de um jovem gravar alguma coisa, por isso passei por muitos deles”

Pausamos a gravação. A conversa continua por entre flashes da máquina fotográfica e músicas no telemóvel, mas Pedro quer mostrar-nos a “sua” Alfama. Foi no bairro que a sua carreira começou e ainda hoje se sente em casa. As interrupções sucedem-se, porém. O artista tem de posar para selfies. Ou cumprimentar amigos. Uma algazarra. “Este era um colega do liceu”, conta. “Andei com ele na Gil Vicente [escola da Graça]. Há muito pessoal de Alfama que também estudou lá e me conhece.” 

Não estamos a andar à deriva. O destino é o Espaço LX-E8G, um dos sítios onde Pedro começou a produzir as suas canções. "Há para aí cinco anos, quando já trabalhava no hostel. Sempre gravei em estúdios…” Pausa. “Quer dizer, gravei em casa com os amigos e não sei o quê, uns raps e tal, e cantávamos muito na Nossa Senhora do Monte e no Miradouro da Graça. Mas mais tarde comecei a gravar num estúdio comunitário aqui em Alfama e noutro na Mouraria.”

O que é que gravaste aqui que tenhas editado?
O primeiro EP, o Má Fama. Acho que no Tanto Sal também há coisas gravadas aqui. Sempre gravei muito em estúdios comunitários, em centros da juventude... Era a forma de um jovem gravar alguma coisa, por isso passei por muitos deles. 

Foram sítios importantes para o teu desenvolvimento?
Sim. Até porque foi aqui que conheci o António Nascimento, que sem saber foi o meu primeiro manager. Estava aqui a fazer música, as minhas misturas, de referências portuguesas com kuduro, e ele ajudou-me a organizar as coisas todas. Dizia: “vais mandar um mail para o Rimas e Batidas” ou “uma semana antes de editares vais fazer este post”.  

Fazia isso de graça?
Completamente. Só porque gostava do que eu estava a fazer. Sem esse apoio não sei se tinha ido a algum sítio. Se calhar tinha desistido.

A fazer música e a trabalhar num hostel, se ninguém quiser saber, nunca vais chegar a lado nenhum.
Essa motivação é essencial. Mesmo que não haja dinheiro. Mas eu também já tinha uma visão um bocado específica do que a cultura urbana e a cultura popular deviam ser. Antes de fazer música, até cheguei a fazer umas passagens de modelos com miúdos que vinham aqui. Tinha uma marca de roupa que era a Azinhaga, em 2016. Estivemos quase a estar no Sangue Novo, na ModaLisboa, e o Tiago Manaia fez um artigo sobre nós na Vogue. Como vês, já andava a congeminar a minha visão do que podia ser a cultura popular portuguesa.

Falaste em juntar a cultura popular e a cultura urbana. E o teu trabalho é muito isso. Neste disco, por exemplo, trazes a tradição das margens de Portugal, do Alentejo, do Minho, para Lisboa.
Interessa-me perceber porque é que há coisas a que chamamos populares e coisas que chamamos pop, quando o chamado pop é só a cultura popular americana e anglo-saxónica. Quero esbater essa diferença, e trazer o popular para o pop. Porque é a mesma coisa, é só uma diferença de branding. Exploro o que acontece quando dás um branding pop a uma música popular.

Continuamos em marcha. Pedro aponta para um ginásio de boxe castiço. “O pessoal treinava aqui”, conta. Quando damos por nós estamos na loja da Dona Manuela, uma velha mercearia portuguesa, daquelas cujo nome se confunde com o da dona, mas que resiste à gentrificação, a poucos metros do Museu do Fado. Assim que o vê, a proprietária exclama: “O meu menino está tão grande!” Metem a conversa em dia, falam da “Preço Certo” e do Preço Certo. “Quando cheguei a casa já não te ouvi”, confessa a senhora de cabelos brancos, que ainda se lembra de quando Pedro “fazia as músicas dele” no centro comunitário do bairro e levava os turistas do hostel onde então trabalhava a comprar fruta à sua mercearia. Passado um bocado, já com uma pêra na boca, Mafama despede-se. E continuamos a gravar.

Este disco é muito diferente do Por Esse Rio Abaixo (2021). Num metias Portugal em diálogo com o mundo, mas neste pareces querer meter Lisboa em diálogo com o resto do país. Com os mineiros de Aljustrel, com os ciganos da raia.
De acordo. Além disso, no disco anterior estava a tentar pensar no nosso passado – nas nossas origens que não são nossas e nas não nossas-origens que são nossas na mesma. As minhas referências eram muito a música de recolha, estava a mexer em arquivos, até inspirado pelos registos do Artur Pastor.

Lembro-me de falarmos sobre o Giacometti há dois anos.
Estava realmente a ir lá atrás e a reconstituir as peças acerca da origem da nossa música popular e da nossa cultura. Nunca apresentando uma proposta fechada. Fazendo mais perguntas do que dando respostas. E aqui estou muito mais interessado no nosso presente. E estou a abordar géneros mais especificamente. Isto é uma marcha, isto é uma rumba, isto é um baile. Estou a manter os géneros mais intactos, enquanto no anterior misturava-os todos. O que estou a tentar agora não é pensar o nosso passado, mas reflectir... Aliás, viver o nosso presente. Porque a música de baile está viva. E as marchas estão vivas. E as rumbas estão vivas. Não é preciso ir aos registos. 

Obviamente.
É um disco para Portugal, sobre Portugal, um disco de agora, para ser vivido agora… Deixa-me só cumprimentar esta senhora.

Quero vestir-me de forma mais terra-a-terra. Para que vejas a forma como estou vestido e penses: “Isto podia ser eu”

Corta. Desta vez, para falar com a modista Carmo Boucinha, que fez os fatos que vestiu durante a digressão de apresentação do álbum de estreia. Neste momento, ela está “muito ocupada” a fazer umas roupas para a Bárbara Bandeira, conta ao velho cliente. “Depois já não tem tempo para mim”, brinca ele. “Ai tenho, tenho. Para ti tenho sempre tempo”, responde. Trocam-se sorrisos. “Eu vou passando por aqui. Agora estou viciado em calças rasgadas”, partilha Pedro, à porta do atelier na Rua do Salvador. “Fico feliz por saber que está com trabalho.” 

Quando voltamos a conversar, ao fim de um minuto, estamos na Graça. “Foi ela quem me fez os fatos da tour do disco passado. Desde o fato cor-de-rosa, aquele meio toureiro…” Outra interrupção para cumprimentar um par de marchantes de Alfama. Trocam notas sobre os ensaios, parecem entusiasmados. Despedem-se. Logo a seguir, na mesma rua, Sara Tavares. Mafama conhece-a e quer dar-lhe uma palavrinha. “É rápido”, promete. Alguns minutos mais tarde, retomamos a gravação. 

Estavas a dizer que aquela modista fez os fatos da digressão anterior. Nesta já não vais trabalhar com ela?
Não sei. Como estava a dizer, quero que este disco viva no presente. Então acho que não faz tanto sentido estar a desenhar fatos. Quero usar roupa de agora. No disco passado estava a tentar criar um mundo que já não existia, um certo imaginário. Mas agora não preciso. Quero vestir-me de forma mais terra-a-terra. Para que vejas a forma como estou vestido e penses: “Isto podia ser eu”. No passado, o gajo que vias em palco…

Não podia de todo ser eu.
Onde é que compravas aquelas roupas, não é?

Nem era só comprar. Era ter coragem para me vestir daquela maneira.
Sabes que é engraçado que, quando comecei a usar os coletes de bolero, as pessoas diziam que estava a vestir roupas de toureiro, a glorificar os touros e não sei quê. Agora, passados dois anos, toda a gente usa casacos curtinhos, e já ninguém se lembra que aquilo se calhar tinha alguma coisa a ver com a cultura de touros. Porque não tinha só a ver com isso.

Claro.
No disco passado, em palco, encarnava quase uma personagem. Era um concerto muito teatral. Mas estou a largar um bocadinho esse lado mais encenado e a ser mais directo. Porque este álbum é sobre as minhas experiências e as minhas alegrias de agora. Sabe-me muito bem chegar a um programa de televisão ou a uma entrevista e perceber que só tenho de ser eu. Não tenho de fazer aquele exercício de lembrar-me porque escrevi aquela música, de voltar àquele lugar. De tentar tornar a sentir o que senti.

Porque agora estás a cantar sobre onde estás.
Mesmo. Só tenho de relaxar e de estar no momento.

Chegamos à Mourisca, um daqueles restaurantes de bairro que todos os moradores da Graça conhecem. Pedro guarda muitas memórias de almoços com o avô na velha marisqueira. Cachecóis de equipas de todo o lado cobrem as paredes, toalhas de papel (como as da capa do disco) cobrem as mesas. O tipo de sítio onde normalmente há comida portuguesa honesta e bem servida. Vamos tirar a barriga de misérias. Lá fora, por favor, que está sol e parece Verão. Mafama protesta, diz que gosta mais da vibe da sala interior, todavia conseguimos chamá-lo à razão. 

O disco anterior teve um parto complicado, com uma pandemia pelo meio, deitaste muito material fora. Este parece ter sido menos sacado a ferros. Não digo que tenha dado menos trabalho, mas foi mais fácil de fazer, ou não?
Pelo menos foi mais rápido. Comecei a escrever há um ano e meio. Antes de a minha filha nascer pensei que era melhor escrever tudo. Porque não sabia como ia ser quando ela chegasse. Podia não conseguir voltar a trabalhar. 

E conseguiste?
Continuei a trabalhar normalmente. E as músicas reflectem muito a minha experiência agora. Por exemplo, fiz um grande esforço para começar a escrever de dia. Porque no início ainda me saíam as coisas muito nocturnas.

O outro disco era muito mais nocturno do que este.
Completamente. A minha vida era muito nocturna naquela altura. E quando comecei a escrever este disco, numa fase inicial, as músicas ainda eram nocturnas e pesadas. Aquilo não estava a fazer sentido, porque já não estava aí mentalmente. Tive de arranjar formas de conseguir fazer música que reflectisse o meu estado de espírito. Isso trouxe-me um grande desafio, que foi fazer música alegre e interessante. Que faça sorrir, mas que faça pensar também. Há muito esta ideia de que a música triste é mais séria, é melhor. É difícil, por isso, fazer música alegre. Tive de puxar muito pela cabeça. Tive de me forçar a escrever só de dia, só de manhã. Porque no início, quando começava a escrever às quatro da manhã, com um copo de vinho, aquilo vinha-me tudo ao de cima, sentimentos mais melancólicos. E acho que não estaria a ser verdadeiro comigo mesmo se ainda fizesse essa música. E não seria um desafio.

Em que sentido?
Ia estar a escrever a mesma coisa que já tinha escrito. 

“Não estaria a ser verdadeiro comigo mesmo se ainda fizesse música melancólica”

Se há coisa de que ninguém pode acusar Pedro Mafama e o seu co-conspirador Pedro da Linha (oiçam o EP Rua Rosa, 24, já agora), que produziu com ele todas as faixas, é de nos servirem outra vez arroz em Estava No Abismo Mas Dei Um Passo Em Frente. É um disco radicalmente diferente do que fizeram antes, que coloca novas perguntas e encontra novas respostas. É certo que, até ao momento, o cantor, compositor e produtor português ainda não se tinha repetido. Mesmo assim, nada nos tinha preparado para canções como “Estrada”, onde o cante alentejano e a rumba portuguesa dialogam; “Alegria”, marcha a piscar o olho ao Brasil de Caetano Veloso, com as vozes dos marchantes a repelirem a melancolia que tenta encobrir o autor; ou “Preço Certo”, hino para pistas de carrinhos de choque, música de baile pós-pimba.  

Tens muitos convidados no disco. Muitas vozes e mãos a carregarem-te. Além do Pedro da Linha, com quem estás sempre a trabalhar, estão aqui o Diego El Gavi, os marchantes de Alfama, etc. O que trouxeram eles para as canções?
Elas foram compostas por mim, numa fase relativamente solitária. E depois foram postas à prova e fui pedir o contributo das pessoas e das comunidades a que estes géneros musicais pertencem. As marchas foram levadas ao Luís Rodrigues, que trabalha com a Marcha de Alfama. As rumbas ao Diego El Gavi e depois ao Chico Montoya, aos Ciganos D'Ouro. Ou seja, aquilo que era uma ideia transforma-se numa coisa completa. 

O que é que essas pessoas te diziam?
Por exemplo, o Diego El Gavi dizia muito que o disco tinha palmas “à payo”, que é a palavra dos ciganos para os brancos, os “olés” também, e tinham de ser feitos de raiz. Então acabou por fazer as palmas e os “olés”, e o Chico Montoya toca guitarra. Apresentaram-me também o José Lebre, que é um teclista cigano português e acabou por fazer quase todos os teclados do álbum. Por isso é que o disco ganhou vida. Para mim não seria uma hipótese fazer uma rumba portuguesa sem uma contribuição cigana, porque a rumba portuguesa não é dissociável da experiência cigana. Assim como tens os Mineiros de Aljustrel a cantar o “Hino dos Mineiros”. Há toda uma história que as pessoas trazem para o disco. Usar umas palmas do Diego não é a mesma coisa que samplar umas palmas da internet ou umas vozes flamencas. E o mesmo aconteceu com as marchas. Quis ter marchantes a cantar os coros, os amigos da Graça a cantar aquelas letras. Porque ganham um contexto diferente. Passam a ser uma coisa colectiva.

Essa é uma das coisas extraordinárias do disco. Os diálogos que ele promove. Mas isso leva-me para outra questão. Há pouco falavas das críticas de que foste alvo.
Sobre os fatos e os toureiros.

E tenho ideia que neste disco também tem havido um zunzum à volta dos Mineiros de Aljustrel. O que está a acontecer?
Houve algumas pessoas nas internets a dizer que isto era um insulto, estar a usar um hino da classe operária para fazer uma música pop de festa. Quem é este burguês de pólo para estar a cantar o “Hino dos Mineiros”?

E os próprios mineiros, o que te disseram?
Estava muito receoso de estar a cometer um sacrilégio, a insultar o cante alentejano. Mas a verdade é que eles adoraram a música, começaram logo a bater palmas ao som da rumba. E houve uma coisa muito bonita que me disse um deles: que aquilo que acontece na rua, no terreno, é uma coisa; e o que acontece em música é outra. As tensões todas que se vivem no dia-a-dia podem desaparecer no espaço de uma música de três minutos e meio. Estava preocupado com a mistura cultural que estava a fazer, porque a vida já esteve mais fácil, e a convivência já esteve mais fácil, mas pude confirmar que na música isso não importa. 

Como lidas, pessoalmente e enquanto artista, com essas críticas?
Estou sempre em contacto com o nosso país e a nossa cultura, e não estou a fazer as coisas de olhos fechados. Senão não estava a fazer este álbum. Mas não sei… Sinto que estamos a fazer um grande esforço para que as pessoas percebam que há uma intenção original aqui, que há uma intenção sincera de fazer uma coisa boa pela nossa cultura. E às vezes também de fazer uma coisa má por ela. De cometer sacrilégios, de homenagear e quase desrespeitar ao mesmo tempo. Porque se tiveres demasiado respeito pelos sítios onde as coisas estão não consegues construir nada, porque não tocas em nenhuma pedra.

É bom promover a discussão e o diálogo.
Isso. Dialogar com o que nos legaram. Os antigos não fizeram coisas incríveis e únicas para agora estarmos a chamá-las tradicionais e a pô-las como monumentos.

Somos interrompidos por outro comensal. A conversa descamba e de repente estamos a falar de 50 Cent. Não perguntem como. “Na minha adolescência adorava 50 Cent. Porque sentia que aquela música correspondia à solidão que estava a sentir”, descortina o cantor. “Naquela música, era o 50 Cent contra o mundo. Ele não era um gajo de gangue, era uma pessoa muito solitária.” Refere-se à relação de 50 Cent com Dr. Dre, que colaborou com o rapper norte-americano nos seus melhores discos. Faz-se um paralelismo com a relação de Mafama com o outro Pedro, o Da Linha. Nesta altura, está ele a temperar uma salada de tomate e orégãos com mestria, sem medo do sal grosso e do vinagre. “Sai uma salada bem temperada, pelo chef Mafama.” Risos. 

No outro disco houve um grande trabalho de pesquisa, sei que ouviste muitas recolhas. Como foi desta vez?
A primeira coisa claramente diferente do álbum passado, em que mergulhei, foram as marchas. Foram muito úteis para desbloquear uma maneira de escrever, mais alegre, feliz, e mais descritiva, menos baseada no “eu”. O fado, por exemplo, e muita outra música, são lamentos pessoais, lamentos do que tenho saudades, quem me partiu o coração. Já as marchas são descrições da cidade, com os seus candeeiros e as suas pessoas.

Mas tu fazes marchas do “eu” neste disco.
Sim, o “eu” está lá sempre. Mas as marchas desbloquearam-me este olhar de dentro para fora que não havia no Por Este Rio Abaixo. Nesse disco havia as minhas mágoas, os meus demónios, contextualizados na tradição portuguesa. Substituía a Catarina Chitas por mim. Ela cantava a sua experiência de pastorinha, enquanto eu cantava a minha experiência de pessoa em Lisboa a viver de noite em noite. Aqui estou a tentar sair um bocadinho da primeira pessoa e a colocar-me como pessoa que observa também.

Que é coisa que as marchas fazem muito bem.
E também o movimento da tropicália. Sabes que muitas daquelas músicas, por exemplo, a “Alegria, Alegria”, do Caetano Veloso, ou até “A Banda”, do Chico Buarque, são marchinhas, que descendem das marchas portuguesas.

Eu sei.
A “Alegria, Alegria” é uma marchinha com arranjo à Beatles da altura.

E isso é o que é interessante nos melhores discos da tropicália, do Caetano, do Gil, mesmo da Gal, é eles ouvirem o que lhes estão a dar os americanos, e mesmo os ingleses, e pegarem em músicas brasileiras para fazerem uma coisa nova e especial.
E eu alimentei-me muito disso, porque sinto alguma coisa em comum com o que esta geração está a tentar fazer aqui. Inspira-me muito eles conseguirem ser descritivos e poéticos e profundos, e nunca numa postura de lamento pessoal. 

E mesmo quando há um lamento pessoal, isso funciona. Porque há uma alegria, ou uma esperança. Olha por exemplo a “No Dia Em Que Eu Vim-me Embora”, também do Caetano Veloso.
Adoro. E é mesmo isso que dizes. Ainda por cima, eles conseguiam ter uma intelectualidade que não era nada pretensiosa, que era leve e simples.

“A Catarina Chitas cantava a sua experiência de pastorinha, enquanto eu cantava a minha experiência de pessoa em Lisboa a viver de noite em noite”

Já pedimos os cafés e a dolorosa, estamos prontos para marchar da mesa. O próximo destino é a Vila Berta, morada do mais icónico arraial da Graça, a meio caminho entre as casas onde morámos, cada um na sua ponta do bairro. Foi lá que ele começou a tomar o gosto pelos bailes. E a criticar a branquidão – quando não mesmo o branqueamento – de muito do que se ouvia nesses contextos. Às vezes, Pedro pensa se não foi aí, nessas festas, que o seu destino foi traçado. Se não foi por isso que no ano passado decidiu promover um Arraial Triste na Graça, em parceria com a sua parceira, Ana Moura. Se não é por isso que este ano leva o seu disco aos arraiais. O passado paira sempre sobre o presente e o futuro, como um espectro. Um antepassado.

Neste disco, retratas o presente e o passado, a alegria e a tristeza, o dia e a noite. Assumes que já estiveste em baixo, que estiveste à beira do abismo, e salvaste-te. Ou salvaram-te. Sinto que estou a ouvir alguém dizer: “Estás a ver onde tu estás? Não vais estar sempre aí, há um caminho para fora, pode haver alguma coisa a seguir.”
É engraçado dizeres isso, porque sinto que a minha música também abre caminhos de vida para mim. Isto faz-me um bocadinho sentir como uma pessoa bué básica, que tem de ver exemplos fixes de vida para depois os poder viver.

Não há mal nisso.
Mas há algo de ridículo nisso. Porque faço música para reflectir a minha vida, mas também tento construir um sítio, quase um lugar artístico, onde posso sentir que continuo a ser fixe na minha condição de feliz e de pessoa que volta um bocadinho mais cedo da noite ou que já não vai às noites. Quase tenho de vestir uma capa de super-herói à volta da minha própria felicidade para poder habitar esse espaço. Isso tem alguma coisa de ridículo, no sentido de “precisas de ter um branding à volta do teu estilo de vida para ele ser fixe”. Mas por outro lado é incrível porque realmente consegues abrir espaços novos para viver melhor. Se bem que não acredito que vá durar para sempre. O próprio título do álbum brinca com essa ideia. Não estou a levar demasiado a sério a felicidade e este sítio onde estou na vida agora.

O título é, obviamente, uma referência à mítica tirada do João Pinto, do Futebol Clube do Porto. Mas qual é para ti esse passo em frente?
Aquele título é como quem acaba de dar uma grande queda e se levanta a sorrir sem quatro dentes na frente. Mas a sorrir. É um bocadinho a dizer, por um lado estava no abismo, estava a ir por esse rio abaixo, mas agora estou feliz. Dei um passo em frente. E por outro lado admitir que a vida é caminhar para um abismo. Não me esqueci disso.

Porque tudo vai acabar.
A moral do disco é fechar os olhos e aproveitar. Porque nada dura para sempre. Isso é uma certeza que temos. O que me agrada no título é que dá quase um sentido filosófico a uma frase que foi dita sem querer. E isso mexe com o meu interesse com a alta cultura e a baixa cultura. E estar sempre a jogar com isso, o que também remete sempre para o “Hino dos Mineiros”, etc. Sinto que há sempre o tal trocar as peças de sítio.

“O que me agrada no título é que dá quase um sentido filosófico a uma frase que foi dita sem querer”

A conversa está a chegar ao fim. Voltamos à porta da casa onde Pedro cresceu, nas Escadinhas Damasceno Monteiro. No caminho, passamos por uns garotos, a andar “à penda no 28”, como ele descreve em “Golo!”, amparado por uma guitarra portuguesa. “Olha os novos Mafamas”, atira ele para o ar, no gozo. Mas agora é altura de celebrar os Santos Populares – perdão, Santos Pop – e o Verão que aí vem. Quem achar que não tem nada para festejar, só precisa de ouvir Estava No Abismo Mas Dei Um Passo Em Frente e ter a coragem de dá-lo. Se perder os quatro dentes da frente, só fica com um sorriso mais aberto.

Arraial do Centro Cultural Dr. Magalhães Lima (Lisboa). Qua 7. 21.00. Entrada livre

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