Desde 2011 que acompanhamos, nestas páginas e fora delas, a carreira de Maria Reis. Vimo-la e ouvimo-la a crescer, a alargar horizontes, a apurar a lírica e a composição, a impor-se como uma das melhores escritoras de canções que este país já teve, independentemente do género. Benefício da Dúvida, o quarto registo a solo, entre mini-álbuns e EPs, é o mais recente marco de uma obra que se recusa a perder a relevância e inventividade.
Lembram-se de 2016? O “sim” ao Brexit, a eleição de Donald Trump, o consenso liberal a ruir no centro do império. “Que ano para esquecer”, suspirávamos. “Isto não pode piorar”, escrevíamos online. Éramos inocentes. A nova década trouxe consigo uma pandemia global, confinamentos generalizados, parecia que o mundo que conhecíamos nunca ia voltar a ser o mesmo. O pior é que voltou. O mesmo, mas um pouco pior. Provavelmente, está para vir ainda pior. Afinal, pairam sobre nós os espectros da guerra, a inflação galopante, a crise social instalada e os protestos continuados, cada vez mais altos. Quando este repórter ruma ao Porto, os comboios da CP estão parados. Distâncias que pareciam curtas alongam-se. Estamos solidários com os trabalhadores, ainda bem que a paralisação nos afecta. É bom sinal que assim seja, mas um mau princípio de entrevista. O que começou por ser planeado como um dia passado com os quatro membros dos Glockenwise – os fundadores Nuno Rodrigues, Rafael Ferreira e Rui Fiusa mais Cláudio Tavares – entre ensaios e tainada, foi reduzido a um almoço a dois pelos comboios parados e as vidas atarefadas. Estamos velhos, alguns têm famílias em casa e responsabilidades.
O ponto de encontro, no entanto, é o que está marcado há mais de uma semana: o Compadre em Campanhã. O escriba chega primeiro, o restaurante está quase a fechar, mas não recusam um comensal ressacado. Estamos em casa de gente boa, percebe-se. Passado um bocado, chega Nuno Rodrigues, vocalista, guitarrista e o único que conseguiu chegar ao destino. É conhecido do staff. Apetece-lhe um arroz de vitela. Vamos a isso, duas doses. Não nos víamos há anos, culpa da pandemia. Mete-se a conversa em dia. Fala-se da vida, das relações terminadas, do trabalho que o obriga a vestir um fato, ocasionalmente não resistimos e mencionamos o disco – variações de “calma, Nuninho, tenho o gravador desligado” vão escutar-se várias vezes ao longo do repasto. A rodela de música que nos traz ao Porto chama-se Gótico Português, tem pouco de gótico, tudo de português, e é das melhores coisas que vão passar pelos nossos ouvidos nos próximos meses. A vitela é delicada, cozinhada com saber e honestidade. A conversa continua boa. Eventualmente, rumamos aos estúdios ARDA e à Fonoteca Municipal do Porto, um dos equipamentos municipais com que Nuno trabalha. Sítio bonito, recomenda-se. Sentamo-nos lá fora, num pequeno jardim. E liga-se o gravador.
Vamos começar pelo título: Gótico Português. Sei que o gótico português é uma corrente artística e arquitectónica. Mas também há um southern gothic americano...
Boa. És o primeiro jornalista a pegar nessa questão que, para mim, é fulcral. O disco é completamente...
Southern gothic português.
Era mesmo aí que pretendíamos chegar. Mas é claro que este nome tem várias camadas. Tem esta camada óbvia, de ser um nome um bocado provocatório, porque nós não somos propriamente uns góticos portugueses, no sentido musical da questão [risos].
De todo.
Também não estamos interessados na arquitectura gótica do século XIII em Portugal. Mas esta camada semiótica do southern gothic é muito útil para descrever uma certa bizarria ou desconcerto e, ao mesmo tempo, uma energia e uma série de soluções criativas para as carências que são encontradas naquilo a que chamamos a margem – tanto no plano físico como no plano metafísico. Este espírito ad hoc e estranho e bizarro remeteu-nos para essa ideia do southern gothic. Isto apareceu-nos aliás num sítio que nos estava a desconcertar um pouco até que alguém disse: “isto é um jardim, mas parece na verdade um cemitério”.
Onde era, pode saber-se?
É o sítio onde tirámos todas as fotografias do disco, em Santa Maria de Lamas, para os lados de Santa Maria da Feira. Foi construído durante os anos 30 e 40 por um senhor da família Amorim, que enriqueceu com a cortiça. Durante o período do Estado Novo houve uma altura em que se pegou nas igrejas românicas e quis devolver ao suposto estado original, o que fez com que imensos altares e ornamentações barrocas fossem retiradas. Ele comprava-as todas e montava ad hoc, sem qualquer experiência museológica.
Como é óbvio.
Construía sala após sala. Montava-as tipo puzzle. E o jardim é uma extensão disso.
Está aberto ao público?
Sim. Aconselho toda a gente a visitar o Museu de Lamas, é assim que se chama. Ele é um benemérito lá da terra, construiu o estádio e mais não sei o quê, incluindo este espaço que é um dos sítios mais surreais onde estive em Portugal. Encarna na perfeição esta ideia do gótico português a que o disco alude. Ele era uma pessoa com um pavor ao vazio. Todos os espaços estão preenchidos. Quando não havia mais nada para comprar, contratou um pintor de Braga, um homem muito naïf também, para fazer reproduções de El Grecos e Caravaggios.
Sabes o nome do pintor?
Não conseguimos descobrir. Já falámos com a directora [do museu] e ela vai tentar investigar melhor esta parte. Mas pronto, o jardim tem este ambiente meio de cemitério. Uns arranjinhos, umas coisas em granito, e de repente há este espaço onde está o que parece um rancho ou uma banda popular, em granito, petrificada, como se tivesse lá passado a Medusa. Num backdrop industrial, com um armazém, com uma casa antiga portuguesa, com um galo de Barcelos ao fundo. Pá, aquele sítio fez-nos sentir em casa. Tinha tudo a ver com o Minho que nós conhecemos tão bem. Com este Portugal que existe na margem.
Falavas há pouco do medo do vazio que o fundador do museu tinha. E é curioso porque, antigamente, as vossas canções eram mais simples, mas no novo disco há sempre muitas coisas a acontecerem. É também uma reacção a esse medo do vazio?
Há várias coisas a verterem umas para as outras. Se por um lado estamos em casa a trabalhar e a mexer nas músicas, por outro lado estamos a pensar: “este é o sítio imaginário onde gostávamos que o disco fosse”. Até que estas coisas se começam a aproximar e os arranjos começam a reflectir cada vez mais esta ideia, esta temática. Ao mesmo tempo, o facto de as músicas serem muito compridas, ou terem muitas caudas, muitas partes, acaba por ser uma reacção ao que fizemos no Plástico.
Que era o vosso disco pop.
O Plástico era conciso, straight to the point, algo cínico também. Este é liricamente mais abstracto, mais impressionista. E, no que toca à música, indulgente. Sentimos algumas vezes que as músicas deviam ter sido encurtadas. Mas não foram. Deixámo-nos ir até ao final com elas. Achámos que isso ia ao encontro de toda esta temática do disco.
É engraçado que, apesar de ser o álbum mais maduro e estruturado que já fizeram, é também aquele em que vos sinto mais livres, a fazerem o que querem. Se vos apetece fazer uma malha de oito minutos que soa a My Bloody Valentine, por que não?
Sim [risos]. Depois de termos saído da Valentim de Carvalho, achámos que tínhamos de fazer um statement. Como, por exemplo, o nosso primeiro single depois de quatro anos sem nada de novo ser uma canção com quase oito minutos, cheia de distorção.
Uma óptima canção, ainda por cima. Já agora, porque é que saíram da Valentim?
É uma história muito pouco polémica, na verdade. Só temos as melhores coisas a dizer sobre a editora e, sobretudo, sobre o período que trabalhámos com eles no Plástico, que foi muito importante para o nosso crescimento. Colocaram-nos numa posição em que não achávamos que pudéssemos vir a estar, e acreditaram em nós. Isto acontece numa altura em que, de repente, a Valentim de Carvalho assina dez artistas independentes.
Vocês, o Filipe Sambado...
Os Ermo, vários artistas. E achámos isso incrível. Mas é uma estrutura que tem muitos anos, muita história, e tem necessidades específicas. Nós, por outro lado, temos modus operandi muito próprio e não somos artistas a tempo inteiro. Os nossos objectivos não eram os mesmos e decidimos que amigo não empata amigo. Nunca sentimos que não nos quisessem editar, por outro lado também sentimos que não lhes íamos dar o que queriam.
Compreendo.
Estava a haver mesmo um certo desencantamento de parte a parte, sem nunca isso ter escalado para uma coisa litigiosa. Portanto, foi super-natural quando aconteceu. Para ambas as partes. Desejamos o melhor a toda a equipa da Valentim de Carvalho, e eles foram incríveis connosco. Depois de lhes dizermos quais eram os nossos planos e que íamos tentar fazer isto como uma edição de autor, eles disponibilizaram-se logo para nos ajudar a distribuir o disco. Foi muito fixe da parte deles, mas por acaso não precisámos.
Criaram a vossa própria editora, a Vida Vã. É suposto ser só uma etiqueta para lançarem as vossas coisas, ou encaras isto como um projecto mais ambicioso?
É uma ideia totalmente em aberto. Por agora, só estamos focados em lançar o nosso disco. Achámos que, ao fazê-lo com uma edição de autor, podia fazer sentido darmos uma chancela a isto. Mais tarde, dependendo de para onde é que as nossas vidas vão, para onde é que as nossas carreiras vão, logo se vê. Há um mundo de oportunidades que nem sequer explorámos.
Vocês os quatro, neste momento, além de Glockenwise, fazem o quê? Tu tens outro projecto adormecido há anos: Duquesa...
Talvez não volte a acordar [risos].
E o resto da banda? Não sei nada do [Rui] Fiusa, por exemplo.
Ele é talvez o Glockenwiser mais a tempo inteiro [risos].
Mas também tem um trabalho das nove às cinco, ou não?
Tem, tem. A vida dele é voltada para a fisioterapia na área do futebol. Rock e futebol.
No Gil Vicente?
Não. Esteve bastante tempo em Barcelos, no Gil Vicente. Mas mora no Porto há muitos anos e está com o Padroense, uma equipa local de que ele gosta muito. Mas é o único Glockenwiser mesmo, o que não tem outras namoradas [risos]. O Cláudio [Tavares] é o oposto disso. É o único que vive só da música. É engenheiro de som, trabalha muito com teatro, grava bandas, mistura. Foi ele, aliás, que gravou o disco e o produziu connosco.
Como é que ele aparece aqui? Vocês tinham outro baterista, o Cristiano Veloso, que saiu da banda há uns anos. Depois no Plástico eram só os três fundadores mais um baterista de sessão...
Que já era ele. Depois do Cris sair, o Cláudio foi a opção imediata. Ficou próximo de nós pela nossa relação com os estúdios Sá da Bandeira, de que era co-fundador, com o João Brandão.
João Brandão que agora está aqui [no ARDA].
Sim. Eles gravaram os nossos discos a partir do segundo. Ou seja, o Leeches, o Heat e o Plástico. E, como sabíamos que o Cláudio era baterista, gostava de nós e já estava a tocar bateria comigo em Duquesa, foi a escolha mais imediata. Era o nosso mercenário, a quem pagávamos para vir tocar [risos]. O Plástico ainda saiu com esta ideia de que éramos nós os três com um músico convidado. Só que ele estava em todos os ensaios, era tão parte da banda como qualquer um de nós, por isso decidimos fazer esta contratação de Inverno. O que é uma chatice porque agora temos de dividir o cachet dos concertos por igual e os direitos de autor. Mas não estamos preocupados com isso.
Até porque todos têm outros trabalhos.
Exactamente.
O Rafinha faz o quê, além de tocar com Glockenwise e Ra-Fa-El?
Também é freelancer na área da cultura, sobretudo na produção cultural. Esteve a trabalhar no departamento de artes performativas de Serralves, como produtor. Esteve também como assistente de curadoria da Marta Mestre, no CIAJG [Centro Internacional das Artes José de Guimarães]. E agora está a trabalhar também como produtor para a Bienal de Arquitectura de Veneza. Está todo lançado.
Wow. Que fancy.
Curiosamente, só não trabalha em produção de música. É engraçado ter ido para as artes.
Tu também foste.
Pois. Talvez por sermos músicos, nunca explorámos as outras vias dentro da música. As oportunidades que acabaram por surgir dentro da cultura foram em áreas à margem disso.
Imagino que, do ponto de vista criativo, o contacto com outras áreas seja positivo.
Para nós foi muito importante, porque vínhamos de uma cultura de música do-it-yourself, do rock. Estávamos muito focados nisso. Nenhum de nós foi estudar artes nem tinha uma relação muito forte com isso; éramos de humanidades. Por isso havia um desencontro cada vez maior entre o que estávamos a fazer e o que era o discurso artístico contemporâneo. Estes trabalhos e o contacto com as outras áreas artísticas fizeram verter muitas ideias para o que estamos a fazer.
Isso sente-se muito neste disco. Não é só rock’n’roll, é cultura.
Se bem que Plástico já tinha algumas preocupações estéticas.
A ideia da plasticidade, etc.
Claro. Mas concordo que o Gótico Português tem preocupações discursivas mais vincadas.
Era aí que queria chegar.
Sei que é um pouco provocatório dizer isto, mas tem estado muito presente no discurso contemporâneo a ideia de identidade. É claro que não nos arrogamos no discurso ao nível das identidades de determinados contextos que precisavam de visibilidade e precisavam de afirmação. E que têm a maior legitimidade artística neste momento para se afirmarem.
Isso nem se discute.
No entanto, paralelamente a isto tudo, reparámos que estávamos a escrever um disco sobre identidade, que é uma coisa muito engraçada. E achamos que esta identidade também é importante, sobretudo no contexto português. Recentemente, houve uma tendência de fetichização da portugalidade e do tradicional. Sobretudo na música dita pop, ou alternativa pop. Acho que se notou muito mais depois da Rosalía lançar El mal querer. De repente toda a gente tinha pauliteiros de Miranda e lenços de Viana e adufes.
Enquanto gajo do Alentejo, este é o vosso disco que mais fala para mim, que mais fala para todos aqueles que cresceram no cu do país. Só que não tem esse folclore.
Nem mais.
Está bem que sempre foram putos do interior a fazer música para combater o tédio. Mas, discursivamente, este é o primeiro disco que pensa e confronta essa vivência. Que reflecte a maneira como crescemos nos anos 80 e 90. É um disco muito português e muito marginal, mas recusa o tradicional.
O que nos irrita nesta fetichização é que é tudo meio kitsch. Quisemos mostrar que há muito mais diversidade, muito mais formas de fazer portugalidade, além dessas.
Porque Barcelos não é só Galos de Barcelos.
Exactamente. Para nós foi super-importante termos aquele excerto da Rosa Ramalho a dizer que o galo do Picasso é mais bonito do que o Galo de Barcelos.
Quem é ela?
É a maior ceramista barcelense.
Não sei disso. Fala comigo como se estivesses a falar com um bebé.
É um ícone da cultura popular portuguesa.
É conhecida nesse meio, portanto.
Muito conhecida. E muito coleccionada. Não apenas por portugueses. Foi descoberta nos anos 60 por alguns artistas e críticos que começaram a interessar-se pela arte popular e por aquilo que então se chamava arte bruta, que hoje é um termo meio em desuso.
OK.
E era uma personagem, ainda por cima. Rapidamente cavalgou esta oportunidade com a maior cagança possível, e tornou-se uma gaja mesmo célebre. Carregou às costas toda uma tradição de ceramistas de Barcelos que já tinha esta ideia do figurado, uma geração que aparece a fazer artesanalmente barro que não é utilitário. Que é criativo, artístico. Há uma entrevista muito boa, de 1968, que está nos arquivos da RTP.
Foi daí que retiraram aquelas declarações dela que se escutam no disco?
Sim. Aconselho toda a gente a ver essa entrevista. Ela diz coisas maravilhosas, incluindo algumas que tinham imenso a ver connosco e com esta ideia de desconstrução da cultura popular portuguesa, destas pessoas ligadas à terrinha e aos símbolos. Ajudou-nos a demonstrar como podes ser da margem e ter uma relação crítica com a margem. Este Portugal da província não é um Portugal de acéfalos, é um Portugal de massa crítica e de pensamento e de soluções e de criatividade.
É verdade. Tenho estado a viver no Alentejo e posso confirmar. Por acaso vim ontem de lá e na viagem estava a comentar com o condutor que, neste disco, estás a usar melhor a tua voz e a nossa língua. Foi algo que te esforçaste por melhorar?
Tive muita dificuldade em gravar as vozes para este disco. A voz é assim por intenção estética, mas também por obstáculos fisiológicos. Já não consigo cantar como cantava quando tinha 23 anos, o meu alcance está muito mais limitado. E decidi naturalizar a voz. Ao ter esta atitude menos afectada, por assim dizer, pude encarar com mais naturalidade o meu sotaque, cantar com mais suavidade e explorar as canções de outro modo. [Cantar] ao vivo é muito difícil para mim agora, por causa disso.
Ai é?
Estava habituado a projectar muito e a ouvir muito a minha voz. Agora tenho de aprender a ouvir melhor.
Até no disco a tua voz está mais em baixo na mistura.
O timbre também é mais baixo.
E como é que pegas nas canções antigas ao vivo? Colam bem com as novas?
Ainda estamos a ensaiar, mas há uma energia boa a fluir entre o Plástico e este disco. Há pontos de contacto evidentes, somos a mesma banda, estamos a cantar em português, não temos de mudar quase sons nenhuns. Até os arranjos que estamos a fazer são parecidos.
Se bem que este disco é muito diferente do anterior.
Sim. Para te ser sincero acho que esta banda que nos estamos a tornar, a banda que agora podemos ser, é aquela que sempre devíamos ter sido.
Por que achas isto?
Acho que tem a ver com idade, com os nossos interesses, com o momento que estamos a viver, com a maneira como encaramos esta banda e a nós mesmos. Isto está a fazer mais sentido do que nunca para nós. Estamos desapegados de qualquer ideia de cena ou tribo, apesar de estarmos a fazer uma coisa que está bem balizada dentro do seu género.
É interessante dizeres isso, porque passei os últimos tempos a reouvir a vossa música antiga, para perceber de onde é que este disco vinha. Até fui reler os textos que escrevi sobre vocês ao longo destes anos. Antes do Plástico era fácil perceber que ouviam muita música e quais eram as influências de cada canção. Agora não.
Acho que há músicas que têm influências muito evidentes. Os My Bloody Valentine, como disseste. Algumas cenas de Manchester mais góticas. Mas o curioso é que as músicas são muito díspares e, ao mesmo tempo, nunca me pareceram tão próximas umas das outras.
Não podia estar mais de acordo.
Acho que a produção contribuiu muito para isso. A voz também. E aquilo que dizias há pouco, de haver mais coisas a acontecer em cada canção, veio também do processo de gravação independente que tivemos. À excepção das bases de duas músicas, das quais aproveitámos só a bateria, que foram gravadas nos estúdios da Valentim de Carvalho, foi tudo gravado na nossa sala de ensaios no Stop e em casa.
Quando é que começaram a trabalhar neste disco?
É difícil responder a isso. Diria que, mais a sério, começámos há um ano e meio.
E menos a sério?
Antes disso já havia demos, já havia ideias, já havia o tema sobretudo. Isso está definido desde 2019. Sabia que o disco ia chamar-se Gótico Português há muito. E esse tempo permitiu-me também ter outro cuidado com as letras.
Como te dizia há bocado, é o teu disco mais bem escrito.
Obrigado.
A “Natureza” para mim é a melhor letra que já escreveste. Quando dizes que “as namoradas não importam”? Adoro.
“As namoradas não se importam”, aliás. Digo é que “os namorados não importam”.
Pois é. Estou a projectar…
Estas letras são propícias a esse tipo de projecção. Eu próprio projecto imensas coisas. Estas frases em particular, das namoradas e dos namorados, significam mesmo muitas coisas para mim ao mesmo tempo. Nuns dias são mais negativas, noutros mais positivas.
Que coisas?
Tantas diferentes.
Não queres explorar isso? Imagina que estás na terapia e me estás a pagar 100 paus para te ouvir.
Podemos falar dessas [letras] em particular. Começo por dizer que “as temporadas não importam”. É o meu problema com o tempo, algo que está presente em quase tudo o que escrevo, uma relação complicada com o tempo e com a sua passagem. Umas vezes preocupado com ele, outras vezes sem pensar nele porque há algo que me está a consumir tanto a atenção que não consigo dar sequer pela sua passagem. Era o que estava a pensar quando escrevi isso, que as temporadas nem se notam a passar com isto tudo a acontecer.
Continua.
E o que é que está a acontecer? A consumir-me? “As namoradas não se importam” na verdade tem a ver comigo.
Com a tua insegurança?
Sim, com as minhas inseguranças. Ou até o contrário, com o facto de fazer aquilo que me apetece e do outro lado estar alguém que não se importa que eu faça o que me apetece. E nem sempre é assim na verdade. Ou que “os namorados não importam”...
Porque tu não importas?
Também. Mas os namorados que não importam posso não ser eu, podem ser os outros. Pode ser a minha relação com alguém que tenha um namorado: “os namorados não importam”. Têm várias acepções em cada dia, estas questões. Dependendo de onde estou a situar-me psico-emocionalmente.
Tu estás com que idade? Trinta e poucos?
Farei 33 este ano. Sou de 1990.
E já andas nisto há muito tempo. Lembro-me de ver-vos em 2008/2009.
Comecei mais ou menos com 16 anos e o Rafa com 15.
Mais de metade da tua vida foi passada neste grupo. Ao fim de tantos anos, quão diferente é para ti tocar? O que procuras hoje e o que procuravas na altura?
Tento sobretudo ocupar espaços que não ocupava antes. Quando comecei tinha imensa energia, só queria pular e saltar.
E sangrar.
Todas essas coisas. E de repente perco a vontade de fazer isso. Quero estar inerte, a absorver a banda que está à minha volta, mais concentrado no que estou a cantar e como é que estou a fazê-lo. O próprio público relaciona-se connosco de outra forma. Ninguém vem a pensar nesse mosh ou não sei quê. As pessoas vêm procurar outras interacções.
Mas não tens saudades disso?
Tenho, sem dúvida. É uma espécie de nostalgia, no entanto. Porque não quero repetir.
Não queres mesmo?
Acho que não. Há outros sítios para onde gostava de ir antes. Não quero regressar a onde já estive, porque nunca vai ter o sabor que teve nessa época.
Seria postiço.
Sim. Ali tinha um propósito. Agora não. Se bem que o mais importante não é o que mudou. É o que não mudou.
E o que é que não mudou?
O facto de continuarmos a ser os melhores amigos. É por isso que continuamos juntos. Não conheço mais nenhuma banda que tenha uma relação de amizade com a longevidade que nós temos. Tirando o Cris ter saído e isso ter levantado alguns problemas, há um núcleo que está ali desde o início. Nunca houve uma interrupção. Parece que narrativamente conseguimos traçar todos os nossos passos enquanto amigos até ao primeiro dia.
Não sendo uma banda, há um colectivo que tem uma postura muito parecida, que é a Cafetra. As bandas do início separaram-se, Os Passos em Volta e os Kimo Ameba, mas as pessoas continuam lá, a tocar juntas. Noutros projectos, mas sempre juntas.
Sim. Tenho, aliás, um apreço enorme pelo que eles fazem. E é muito engraçado que quando julgo que alguma coisa phased out neles...
Volta.
Reinventam-se. De repente tens a Maria Reis a tocar com Putas Bêbadas, e é espectacular.
Ou a Maria volta a tocar com a irmã.
Estão-se sempre a cruzar.
Lá está, porque são amigos. Vamos ser sérios, muito poucas bandas em Portugal se mantêm juntas se não for pela amizade.
A esta altura do campeonato não. Ou és miúdo e não tens nada melhor para fazer, e estás a tentar, e há ali um hustle…
Nem que seja para sacar gajas. Ou gajos.
Exacto. Mas agora não. Só queremos fazer a música que nos apetece e mostrá-la nas condições que achamos adequadas.
Que condições são essas? Temporais? Materiais? Olhando para as vossas próximas datas, depois do Courage, vão a Aveiro e Viseu. Em Maio vão à Culturgest de Lisboa e só tocam no Porto, no Plano B, daqui a quase meio ano. Nas calmas. Também é uma consequência da idade? Ou é porque tem de ser, porque Portugal não dá para mais?
Há uma ideia mais logística que é: quanto tempo dá para esticar? Quando é que se esgota um disco? Esgota-se relativamente rápido. Se fizeres tudo de rajada depois já não há mais onde tocar. E não queremos estar a lançar discos de dois em dois anos. Isso não volta a acontecer. Por isso mais vale fazer render lentamente, nem sempre apresentar nos sítios mais óbvios ou mais imediatos. Por exemplo, Lisboa e Porto por uma vez podem esperar.
Claro. Ainda por cima num disco como este, sobre um Portugal periférico, esquecido, quase invisível. Faz sentido que toquem primeiro nesses sítios menos óbvios.
É mesmo isso. E até gostávamos de ir a mais sítios, como a Cafetra foi no ano passado. Mas, por causa do disco que estamos a tocar e das pessoas com quem trabalhamos, há toda uma logística que já não nos permite ter essa liberdade. Mesmo assim, imagino que nos próximos dois anos estejamos a tocar este disco.
E depois? Mais uns tempos sem Glockenwise?
Podem aparecer outras coisas. O Rafinha continua sempre a fazer muita música, é um grande criativo. Mas estamos lentamente a caminhar para ser uma banda de culto.
Já tinhas falado disso em Julho, quando escrevi a história da Lovers & Lollypops. Quando falas na banda de culto, em quem estás a pensar? Qual é o modelo?
Eh pá, não há modelo nenhum. Pessoalmente, aprecio muito aquelas bandas cuja visibilidade não é a mais imediata, tanto que às vezes até te esqueces que elas existem. Mas depois quando fazem alguma coisa é um acontecimento.
Como os My Bloody Valentine.
Ou Low. Ou os Mão Morta. Nós se calhar não temos essa qualidade, mas o ritmo com que eles fazem as coisas tem muito a ver com o ritmo que nós próprios estamos a ir ganhando. É normal que, se não me imagino a fazer muita música, queira que seja especial sempre que isso acontecer. Que seja intenso.