Ben Yosei
João DuarteBen Yosei
João Duarte

Ben Yosei: “A religião verdadeira é uma que inclui toda a gente”

O cantor e compositor português Ben Yosei lançou há uns meses ‘Lagrimento’, um disco luminoso e cativante. Falámos com ele antes do concerto de sábado, 16, na Cossoul.

Luís Filipe Rodrigues
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Ben Yosei é uma figura fascinante. Baptizado Rafael Trindade há 24 anos, é autor de uma música inclassificável e bela. Um artesão de canções honestas em que a electrónica ambiental e os ritos e vivências do interior do país colidem e se transformam em beatíficos sonhos pop, sob a égide de Panda Bear, James Ferraro e outros bravos exploradores dos ângulos mortos onde o inconsciente colectivo e a música popular se enroscam. Lagrimento, o seu álbum deste ano, é uma homenagem em vida à sua avó, “a pessoa mais importante” para ele. Consegue, porém, soar universal – versa sobre o medo da perda e a importância de aproveitarmos todos os momentos passados ao lado das pessoas que (nos) importam. É, também, um entrevistado cativante, modesto e com um ar tímido que esconde um interesse genuíno por uma imensidão de assuntos, da luta livre americana ao anime japonês e, claro, a música, a fé religiosa e a intersecção destes mundos. É fácil perder noção das horas enquanto se fala com ele. No sábado passado, porém, tínhamos o tempo contado: uma hora e um quarto até ao início do festival DayDream Re:loaded, na ZDB, onde cantou um tema com o seu cúmplice frost.y. Por um lado, ainda bem: se assim não fosse, o mais certo era ficarmos a falar até sábado, 16, antes do seu concerto na Cossoul (Lisboa). Assunto não faltaria.

No texto de apresentação do Lagrimento, agradeces às pessoas que te ouvem e dizes que esperas que a tua música “retribua o favor e a crença ao contribuir para o espírito do ouvinte de forma positiva”. Podes explicar isto melhor?
Acho que o trabalho que faço e a função que exerço enquanto artista não existe sem a interacção do público. E sem essa apreciação. Tenho noção de que a arte acaba por não nascer quando eu a concebo. Ela nasce com os outros. Estou só parir o bebé, a pô-lo cá para fora. A partir daí vai ter bué experiências, e essas experiências passam pelas pessoas. Para mim é importante que a música contribua com algo de positivo e de construtivo para a vida das pessoas. Que, até num contexto de tragédia pessoal, providencie alguma catarse.

Por falar em tragédias pessoais… Já li entrevistas em que falas da tua avó, da “bó”, que samplas no disco, e dás a entender que ela ainda está viva – e espero que esteja. 
Está, felizmente.

Mas ao ouvir o disco parece que não. É quase como se estivesses a despedir dela. Quiseste fazer-lhe uma espécie de elegia enquanto ainda estava viva? 
Meteste da forma perfeita, mesmo. Cresci a ver as pessoas irem-se embora, e se calhar era tarde demais para dizermos o que sentíamos por elas. Mas é muito importante dizermos às pessoas que as amamos enquanto podemos. Tive algumas perdas na minha vida em que se calhar não pude fazê-lo, e uma pessoa tão importante para mim como a minha avó, que é a minha pessoa preferida no mundo? Não podia deixar que isso acontecesse.

Compreendo.
Foi quase uma espécie de pré-luto. Um luto enquanto ela ainda está cá.

Foi por isso que decidiste gravar, por exemplo, aquela conversa sobre as pessoas que partem? Já para não falar naquela reza… Aliás, tu pareces-me religioso. É por influência dela? 
Acho que é por influência de bué coisas, desde o contexto em que cresci, bastante católico – não de uma forma hardcore, mas comunitária. Cresci numa terra onde se vivencia muito o catolicismo, em Liceia [Montemor-o-Velho]. Claro que ela também foi uma influência, é super-religiosa.

Ainda vives em Liceia?
Vivo, actualmente. Estou cá ainda num regrouping económico, mas também me fez bem. Este disco foi o primeiro e o único que gravei na minha casa de infância. E ela vive mesmo ali ao lado.

Não sei se por influência do sítio onde o gravaste, mas este disco soa muito português, muito rural. É um testemunho de vivências que raramente são cantadas. Nesse aspecto, lembra o Gótico Português, dos Glockenwise.
That's a loaded question… Isto é o que sei e consigo fazer. Por acaso, o Gato Mariano perguntou-me também o que achava de toda esta cena da portugalidade e dos novos fados. E, pá, eu só posso falar por mim e pelo que vivenciei. Sei que isto está na moda, mas não conseguia fazer outra coisa.

Não estou a dizer que soa falso. Antes pelo contrário. Daí falar no disco dos Glockenwise, porque ambos os discos, musicalmente, não são novos fados, não é música de baile portuguesa. 
Ainda [risos].

Mas, lá está, soa-me português. Acho que um inglês não conseguia fazer este disco. Aliás, nem sei bem como descrevê-lo. Lembra-me música ambiental, mas não é bem, porque são canções quase pop, e nada…
Clínicas.

É ambient feito com o coração.
Entendo, porém, a comparação com o Gótico Português – e não és o primeiro a fazê-la. Acho que é mais num ponto de vista talvez essencialista. Portugal e as nossas vivências rurais têm uma essência muito específica, que para mim é indescritível. Se isso tivesse um nome, era o nome que eu dava à minha música. Mas não tem.

Também sou de uma cidade pequena, e ao ouvir o Gótico Português, ou o Lagrimento, sou levado de volta para lá. 
Há uma essência muito pura no que se vive na terrinha. Aquela dualidade do Cesário Verde, entre o campo e a cidade. O campo acaba por representar algo mais… Não quero dizer puro, mas talvez mais essencialista, mais próximo da essência deste país do que as grandes cidades. O Portugal que o pessoal não fala.

Mesmo. E no teu disco esse pessoal fala. Ou pelo menos ouve-se.
E é importante para mim falar dele. Não sei se é consciente ou não, mas a música está enraizada nisso. A cena de ser ambient, para mim também tem muito que se lhe diga. Porque eu comecei o meu trajecto enquanto produtor com o ambient.

Nota-se.
Mas eu sinto que isso também tem muito a ver com a música portuguesa. Remete se calhar para muitos trabalhos da Isabel Silvestre ou para a versão da “Roseira Enxertada” da Celina da Piedade. Que têm aqueles drones feitos com instrumentos portugueses. Sinto que a música portuguesa remete mais para esse mundo do que aquilo que possa parecer óbvio. 

Consegues fazer um mapa astral do disco?
Desculpa?

O mapa astral. Qual é o ascendente, onde está a Lua, o Mercúrio, Vénus.
Vou tentar. O mapa do Lagrimento?

Isso.
Então, tem ascendente em rancho, com Lua em funeral [não confundir com o disco de Arcade Fire], Mercúrio em Panda Bear e Vénus em Nossa Senhora de Fátima. Oh pá, queria fazer o name drop de uma cena específica, mas tem bué influências.... Screamo deve andar algures para lá, bandas emo.

A sério? O quê?
Tipo Saosin. A “Seven Years” para mim é tipo... 

Adoro. 
Então e “I wrote haikus about cannibalism in your yearbook”? Para mim é tudo.

É engraçado que muita gente da tua idade aponta o pop-punk, o emo e esse screamo mainstream dos 90s e dos 00s como influências. Mesmo na música experimental.
No meu caso se calhar nem se percebe, porque não estou aos berros. É importante conservar um som mais etéreo e frágil, talvez uma delicadeza – acho que é essa a palavra. Mas essa influência sente-se em termos do conteúdo emocional e da forma como procuro projectar uma cena expressiva e pessoal. Não digo necessariamente aberta, porque acho que o disco mantém algum mistério. E gosto muito de alguma ambiguidade, porque isso leva a pessoa a interpretar [o disco] também à sua maneira. É uma questão de respeito pelo ouvinte.

Além do screamo, outra coisa que me surpreende é a tua ligação ao trap. [Cantaste] na DayDream Re:loaded, e tens colaborado com malta como o frost.y, que também é uma das pessoas a quem dedicas o disco, a par de princess. Malta do trap, apesar de ser etéreo e angelical. Ou seja, tens o lado emo, ouviste música indie, agora o trap. Qual foi o teu percurso musical até chegares aqui? O que ouviste?
Eh pá, tanta coisa, amor. Sou bastante selectivo no que oiço, mas não sou bom em estabelecer barreiras no que toca a géneros. Posso ouvir uma coisa, que não tem a ver com aquilo que faço, e perceber que está ali uma grande ideia para um disco. Fontes díspares acabam por influenciar a minha visão. Mesmo que saiba onde quero chegar no final.

Não estou a falar do disco. Nem obrigatoriamente de música. Quero falar de ti, do que te inspira. Por exemplo, percebi que partilhas o meu interesse pelo wrestling, porque fizeste uma story quando o Bray Wyatt morreu, no Instagram.
Vou ser sincero, alguns gimmicks do Bray Wyatt influenciaram letras que eu escrevi. Tenho um material que não editei sobre toda a mitologia da Abigail e de Samael. Aquilo vem da Bíblia. E o Bray Wyatt é um génio nessas merdas. Ele não é só um wrestler, é um artista. Vou começar a chorar se continuar a falar nele.

Adoro que estejas a falar dele no presente, como se ainda estivesse aqui. Vivo.
Não foi intencional, mas concordo. Antes do Lagrimento sair partilhei um vídeo da Isabel Silvestre a dizer que “os nossos mortos não morrem, eles ficam connosco”. Ela estava num programa de TV, a falar de algum político que tinha morrido, com eloquência e respeito. E quando o entrevistador pergunta se acredita mesmo nisso, ela diz que sim, que os nossos mortos continuam vivos dentro de nós. Acho o mesmo.

Concordo.
Imagina, não sei quantas pessoas se vão lembrar da minha música quando eu morrer, mas se houver só uma a quem a minha música ajudou durante um rough patch, e se quando me for embora desta vida, para a outra, ela disser: “isto ajudou-me, isto é precioso para mim”? Se isto acontecer estou vivo. Nem que seja só no coração dela.

Estamos vivos enquanto alguém se lembrar de nós. E amei este parêntesis, mas desviámo-nos da pergunta original: quais foram as tuas influências musicais?
Do meu pai herdei coisas como Metallica, AC/DC, Led Zeppelin, Guns N’ Roses. 

Ainda ouves isso?
Nem por isso. Se bem que ainda gosto de algumas malhas dos [Led] Zeppelin, talvez.

Continua.
Também há coisas que a minha mãe me passou, e que até consigo perceber como me influenciaram. Um certo gosto pelas divas da pop. Ela tinha uma compilação que se chamava Women in Music e tinha, sei lá, Sade, Enya, Anastasia, Shakira, Celine Dion, Lara Fabian, Dido, Natalie Imbruglia – a “Thorn” é a minha jam... Isso ficou comigo, consigo perceber. Mas do meu pai não sei o que herdei. Acho que a pessoa que ele é me influencia mais do que a música. Comecei a tocar bateria aos quatro anos por causa dele, e ainda em Agosto estive a tocar bateria com uma banda de baile. Amo tocar bateria.

Porque paraste de tocar?
Não sei bem. Mas lembro-me do momento em que houve o primeiro clash musical entre mim e o meu pai. Estava a ouvir Avenged Sevenfold no carro, nos meus phones, virei-me para o meu pai e disse que ia parar de tocar bateria, que queria cantar. E de ele me julgar bué quando estava no quarto a cantar música, sei lá, dos Tokio Hotel ou dos Linkin Park.

Tu ouvias Linkin Park? Isso ainda era da tua altura?
Claro. Eu nasci em 1998 e o Hybrid Theory sai em 2000.

Eras um bebé! Ouvias Linkin Park com dois anos ou três anos?
Não com três, mas talvez com cinco ou seis. Porque via bué MTV desde puto, e usava o eMule para música à toa. Curtia bué músicas de wrestling e o meu pai gravava-me CDs, com o repertório da banda de baile.

Ele tocava numa banda de baile?
Sim. Era baterista. E dava-me CDs piratas que tinham uma variedade de coisas: a “I’m Coming Undone”, dos Korn; a “In The End” dos Linkin Park. Depois havia Britney Spears, a “Everytime”. Foi a primeira música que me fez chorar, quando tinha talvez sete anos.

E fora do círculo familiar, o que ouvias com os teus amigos e descobrias na internet?
Sei lá. No sexto, sétimo ano já estava a descobrir bué metal diferente daquele com que fui criado. Coisas como Deftones, Converge, Dillinger Escape Plan...

Também é nessa altura que encontras os Saosin?
Talvez no secundário. Descobri-os por causa do Yu-Gi-Oh!, que também foi uma grande influência.

Eles tinham uma música na banda sonora da série? De algum filme? 
Não [risos]. Mas apanhei uma música deles num AMV [vídeos feitos por fãs, com músicas acompanhadas por sequências de anime] de Yu-Gi-Oh! GX, a “You're Not Alone”. E depois fui ao eMule ver o que havia para trás: a “Seven Year”, o Translating The Name

Mudando de assunto: sei que acreditas em Deus, mas que deus é esse? Cristão? Judaico? Islâmico? Ou simplesmente Deus, sem qualquer ligação a uma religião organizada?
Short version, ambas e nenhuma. The long version é que eu não sinto que as religiões possam ser divisórias como os clubes e os partidos. Porque acho que a religião parte de uma só essência e que historicamente pode ter começado onde tu quiseres. Mas a verdade acaba por existir no meio de tudo isso. Acreditar já é quase um Deus em si. A minha música não se prende com um Deus específico, prende-se com fé.

Mas uma fé católica?
Sim. Porque fui criado dessa forma e a imagem de Cristo fala comigo. A imagem do mártir, a imagem do carpinteiro, modesto, simples, humilde. 

O Cristo histórico?
Exacto. Porém, não separo as coisas. Porque acho que o Cristo histórico pode também ser divino enquanto um exemplo, enquanto uma metáfora ou algo análogo, entendes? Deus existe em várias expressões, em várias manifestações. No entanto, acredito que todas as religiões têm um ponto de verdade e talvez mesmo a junção holística de todas elas seja realmente “a” religião. Dito isto, se me soubesse denominar religiosamente, eu saberia o que Deus é. E não sei. Acho que a fé vem daí, do que eu não sei.

Alguma vez deixaste de acreditar?
Tive a minha idade dos porquês, como toda a gente. Aos 14, 15, li Nietzsche e isso fez-me questionar muitas coisas. Continuo a questionar algumas. Mas é importante a fé ser provida de dúvidas. Outro filósofo, o Kierkegaard, define o crente como um cavaleiro da dúvida. Ou seja, a dúvida não só pode existir como deve existir, e é fundamental para que a fé se fortifique. Os momentos em que Deus mais existe são os momentos em que corresponde à dúvida. Vais-te redescobrindo e fortificando a tua fé à medida que fazes perguntas. É preciso que sejas céptico acerca de Deus. Para que, se ele é mesmo verdadeiro – e é –, se revele. Time and time again.

E como reages quando vês pessoas, como vimos na Jornada Mundial da Juventude, supostamente cristã, católica, a atacar pessoas apenas por terem consigo uma bandeira LGBT, ou a invadirem um serviço religioso?
Isso frustra-me. Quando vi isso, a minha primeira vontade foi estender uma mão e ajudar quem sofre deste tipo de abusos. Eu acho que a religião verdadeira é uma que inclui toda a gente, é inclusiva, não separa, não divide. Ela é holística. The water does not part ways, it flows into each other. A religião tem que ser isso. 

Vais à missa?
Vou, quanto posso e quando consigo. Mas podia ser mais praticante. 

Não sei nada sobre a tua vida, mas...
Sabes um bocadinho, ouviste o disco [risos].

Mas o disco…
Não é sobre mim. É, espero eu, universal.

Pois. É sobre a tua avó, sobre as nossas avós, sobre aquilo que perdemos e vamos perder.
Sabes que chorei quando fui apresentar o disco às Damas e alguém me disse: “Quando estás a cantar sobre a tua avó, não é sobre a tua avó, é sobre a nossa avó.” Fiquei de boca aberta. Não consegui responder.

E não só as avós. Quando oiço o disco não penso na minha avó, penso na minha mãe, que ainda está viva e é a pessoa mais importante da minha vida. Só não te digo que quero morrer antes dela porque isso iria magoá-la, mas não sei se consigo estar vivo sem ela.
Vou-te fazer uma pergunta: o meu disco dá-te vontade dizeres à tua mãe que a amas enquanto podes?

Digo-lhe isso frequentemente. Mas sim.
Então pronto. My mission is done. That's the work I want to do

Cossoul (Lisboa). Sáb 16. 21.00. 7€

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