Pedro Mafama lançou este ano Estava No Abismo Mas Dei Um Passo Em Frente, disco de bailes, rumbas e marchas. De festa. Falámos sobre o desafio de fazer música feliz. Mas não só.
Com o anterior álbum, Lina_Raül Refree, a fadista Lina reinventou-se. Deixou de ser a Carolina do Clube de Fado, dos musicais de Filipe La Féria e de um par de discos com a chancela da Sony. E, acompanhada pelo músico e produtor catalão Raül Refree – que, paralelamente às colaborações com luminárias da música independente e experimental como Richard Youngs e Lee Ranaldo, acompanhou Rosalía e El Niño de Elche, entre outros, nas suas heresias flamencas –, fez dos fados e do legado de Amália uma música ambiental e assombrada pelas electrónicas.
No novo álbum, produzido por Justin Adams, volta a convidar os puristas a arrancarem os cabelos: continuam lá os teclados e as programações electrónicas, também violinos, guitarras portuguesas e eléctricas, um piano. Os instrumentos podem ser insólitos, porém são colocados ao serviço da voz sábia de Lina, do fado tradicional e de versos de Luís Vaz de Camões, adaptados por Amélia Muge e pela própria fadista. Mas este Fado Camões, que saiu na semana passada e é apresentado na terça-feira, 30 de Janeiro, no Teatro da Trindade, não foi feito nem pensado para acompanhar as celebrações dos 500 anos do nascimento do poeta. É só coincidência, “um feliz acaso”.
Gravaste um disco inteiro a partir dos poemas do Camões, e estás a apresentá-lo no ano em que se assinalam os 500 anos do seu nascimento, por acaso?
Completamente por acaso. Queria que o disco tivesse um conceito, para não estar a gravar músicas avulso. Estava há algum tempo a pensar nisso, e esta ideia surge muito no início dos concertos com o Raül. Estava a ler a biografia da Amália, em vários livros, e ela dizia que Camões era o maior fadista de todos, e o poeta preferido dela. Sabia que a Amália tinha gravado os sonetos, mas sabia que havia outras coisas. Comecei a investigar, a ler sobre a lírica do Camões, e a tentar perceber se havia a possibilidade de vestir os poemas do Camões num fado tradicional. E comecei, nalguns momentos com a ajuda da Amélia [Muge], a fazer estas adaptações. Essencialmente, pretendia trazer o Camões para a actualidade – para o presente e para o futuro.
Porque sentiste essa necessidade de “trazer o Camões para a actualidade”?
A forma de escrever dele é muito diferente da escrita do nosso dia-a-dia. Mas o que me fascina e que me emociona é que, às vezes, parece que escreve em provérbios. Isso é muito interessante. E escreve sobre temas muitos similares àqueles que aborda o fado. A própria palavra “fado” aparece inúmeras vezes na lírica do Camões. Portanto, havia material para fazer estas 12 canções. E tive a oportunidade de convidar o Justin Adams para trabalhar nelas comigo.
Como é que ele aparece no teu radar?
O Justin Adams produziu o disco da Souad Massi, que foi considerado um dos melhores discos europeus de 2022, salvo erro, pela World Music Charts – tal como o nosso Lina_Raül Refree tinha sido. E eu tive curiosidade em saber quem era e conhecer melhor o trabalho dele. E percebi que as influências dele também eram as músicas tradicionais, o Norte de África, a música árabe. Que são muito próximas das minhas influências e do fado. Então convidei-o para produzir este disco. Conhecemo-nos e estivemos em Janeiro e em Maio do ano passado juntos no estúdio [Namouche, em Lisboa]. Depois ainda fizemos alguns ensaios juntos. Temos falado frequentemente.
Apesar de o disco ter fados tradicionais, compostos por grandes vultos do género, a instrumentação é tudo menos tradicional: há guitarras eléctricas, órgãos, violinos... Pegar neste repertório e neste autor para depois usar uma instrumentação tão distante do fado foi, de alguma forma, uma provocação?
Não, não tem a ver com a provocação.
Tem a ver com…
Tem a ver com a minha forma de ver a música, e de escolher instrumentos que me permitam ter espaço para cantar. Ou seja, para mim o importante é a palavra. E nessa palavra ter os silêncios no seu devido lugar, e muitas vezes as explosões também, as texturas de cada instrumento. Isso para mim é algo que não só é bonito, mas algo que emociona, que nos provoca sensações. Para mim, por exemplo, o piano foi o primeiro instrumento com que tive contacto, faz todo o sentido. O violino também acaba por ter ali umas distorções, que também criam um ambiente de misticismo, de mistério, que eu procurava. Certas coisas foram opções do produtor, mas eu também queria continuar a desenvolver a linguagem do meu disco anterior. E foi o que fiz.
Estes dois últimos discos como Lina são discos muito mais arrojados que os teus primeiros dois discos, quando respondias pelo nome Carolina.
Podem ser mais ainda.
Não duvido. Mas porquê a mudança de nome? Quiseste cortar o passado?
O meu nome é Lina, não sou Carolina. Foi uma opção da minha anterior editora.
Não fazia ideia.
O meu nome de nascimento é Lina Cardoso Rodrigues. Mas quando assinei pela minha antiga editora, eles achavam que Lina era um nome muito pequeno. Também não podia ser Lina Rodrigues, porque não queriam que ficasse associada à Amália. Então surgiu a ideia de ser Carolina. Depois, quando mudei de editora, aproveitei para recuperar o meu nome verdadeiro. Porque é melhor ser chamada pelo nome do que por um aumentativo. É que não era um diminutivo sequer.
A mudança de nome e de sonoridade podem ser encaradas como uma tentativa de te começares a rever mais na tua música?
Acho que não. Até porque eu consigo rever-me nos discos que fiz como Carolina.
Durante muitos anos cantaste em casas de fado.
E continuo a cantar. A formação tradicional para mim é algo muito familiar.
Continuas a integrar o elenco de alguma casa?
Continuo a estar no Clube de Fado alguns dias. Sou uma pessoa versátil. Acho que consigo adaptar-me a qualquer instrumento, desde que entenda aquilo que estou a cantar, para transportar as emoções do que estou a dizer e fazê-las chegar às pessoas.
Como é que o disco com o Raül e este novo foram recebidos nas casas de fado, num meio mais purista e conservador? O que sentes da parte dos teus colegas?
Às vezes sinto indiferença.
Indiferença?
Acho que sim. Ou então não gostam e não dizem nada. É muito isso. Às vezes falta um bocadinho de maturidade para entendermos a música de outra forma e abrir horizontes. Mas não é só no fado que acontece.
Pois não. Basta ver como os espanhóis têm reagido às transformações do flamenco nos últimos anos.
Claro. Na altura em que o Raül gravou com a Rosalía, diziam que ele devia ter os dedos cortados, que não podia tocar o flamenco daquela forma. As pessoas vivem muito fechadas na sua bolha e é difícil aceitar aquilo que é diferente.
Teatro Trindade Inatel (Lisboa). 30 Jan (Ter). 21.00. 10€