Pedro Mafama lançou este ano Estava No Abismo Mas Dei Um Passo Em Frente, disco de bailes, rumbas e marchas. De festa. Falámos sobre o desafio de fazer música feliz. Mas não só.
Há uma tendência generalizada para reprimir as memórias dos anos em que a covid-19 condicionou – e em muitos casos descarrilou – as nossas vidas. Quase ninguém quer falar disso. Porém, por muito que o tentemos enterrar, o assunto volta sempre à superfície. Que mais não seja porque continuamos a viver nos escombros daquela catástrofe. Everywhen, o mais recente disco dos Best Youth de Ed Rocha Gonçalves e Catarina Salinas, é disso exemplo. Só chegará às lojas e plataformas de streaming na sexta-feira, 19 de Janeiro, e terá as primeiras apresentações ao vivo na terça-feira, 23, no Teatro Maria Matos (Lisboa), e na quarta-feira, 31, na Casa da Música (Porto), no entanto começou a ser composto em 2020, quando ainda mal sabíamos o que nos esperava, e as suas canções foram moldadas pelo que estava e continuou a acontecer nas nossas vidas. São os próprios que o admitem, numa conversa (por videochamada, como já é hábito) em que começamos por retroceder até 2020 e à génese do disco e acabamos a falar de como, desde então, o passado, o presente e o futuro – “todos os tempos” – parecem estar a acontecer ao mesmo tempo.
O disco anterior, o Cherry Domino, já saiu há quase seis anos. Por que demoraram tanto tempo a fazer este Everywhen?
Catarina: O álbum começou a ser feito no início da pandemia, mesmo antes, à distância. Por isso, levávamos mais tempo a fazer as coisas.
Ed: E como este disco começou mais em isolamento, só a trabalharmos um com o outro, acabou por ter menos influências externas. Então decidimos produzir e até misturar parte dele sozinhos. Foi algo que nunca tínhamos feito, sempre tínhamos trabalhado [com outras pessoas]. Neste trabalhámos também com o João Brandão do Arda [Recorders] nalgumas canções, mas a maioria foi misturada por nós. Esses processos extra, que envolveram alguma aprendizagem e muita asneira da nossa parte, atrasaram o disco um bocadinho.
Por isso é que o lançamento foi adiado várias vezes, imagino. Lembro-me que, quando editaram o “Never Belong”, em 2020, escreveram que seria o primeiro single de um disco a editar em 2021, e entretanto essa canção nem entrou no Everywhen.
C: Não é a primeira vez que isso acontece. Acho que vamos sempre ser a banda que lança singles a achar que vai lançar um álbum de imediato, mas depois esse single fica isolado.
Aconteceu algo parecido no vosso primeiro álbum, não foi?
E: Essa história foi espectacular. Lá está, é o que a Cate está a dizer. Sai o single e é anunciado no Blitz que o álbum ia sair pela PIAS, nunca me vou esquecer. Depois eles acabaram por não andar para a frente e nós, quando olhamos para as canções, sentimos que já não era aquele disco que queríamos lançar. Ou seja, temos um disco fantasma.
Desta vez aconteceu o mesmo? Também ficou um disco inteiro na gaveta?
C: Pode dizer-se que temos um lado B [risos]. Mas esta situação foi diferente.
E: Em todos os discos há muitas ideias que ficam pelo caminho e canções por editar. Todavia, no caso concreto da “Never Belong”, o que aconteceu foi que na nossa cabeça ela fazia uma boa transição entre o disco anterior e o seguinte. Mas agora, olhando para trás, sentimos que pertence muito mais ao disco anterior do que a este novo. Não concordas?
Concordo. Até porque o single que lançam a seguir [“Rumba Nera”], e que abre este disco, já não tem nada a ver.
C: Não encaixava, não.
Há muitas referências temporais, ao passado e à passagem do tempo, neste álbum. Era algo em que andavam a pensar muito quando estavam a compor as canções?
C: Como o Ed estava a dizer, vivemos este disco muito isolados. Por isso, a noção do tempo foi distópica e meia distorcida para nós. Daí termos demorado quatro anos [a trabalhar o disco] – que para nós não pareceram quatro anos, foi diferente. Acho que isso não foi pensado de antemão, não foi propositado, mas à medida que íamos desenvolvendo as canções e as letras, isso ficou impregnado no nosso trabalho.
Não estava a sugerir que tivesse sido uma decisão consciente.
E: Nunca partimos [para os discos] com uma temática muito delineada, a pensar que vamos escrever sobre isto, que vamos compor sobre aquilo.
C: Já tentámos, mas não é tão fixe para nós.
E: É a instrumentação que acaba por determinar sobre o que são as letras. Só quando começámos a reunir as canções que achávamos mais importantes e que nos diziam mais no disco é que começámos a perceber que muitas delas reflectiam sobre o passado, sobre o futuro e sobre o presente. Em parte, também, por causa do tempo dado pela pandemia, em que conseguimos pensar mais nestas coisas – em que tivemos tempo para pensar.
Parecia que o mundo tinha parado. O tempo fluía de outra forma.
E: Demos por nós a valorizar e a buscar memórias que já não íamos buscar há muito tempo, a lembrar-nos de coisas, mesmo em conversas com amigos, a ir buscar fotografias. E no ritmo de vida aceleradíssimo que vivemos todos, às vezes, é bom ter um momento para parar e ver para onde é que estamos a ir e o que está a acontecer. Estamos tão embrenhados [nas nossas vidas] que nem paramos para ver o que está à nossa frente. Antes de termos chegado ao nome Everywhen, dizíamos entre nós que [o disco] era um sítio em que o tempo parava para podermos organizar as ideias.
Gosto do título: Everywhen. Reflecte o momento actual em que a tecnologia conduz a que o passado, o presente e o futuro se misturem e se confundam. E isso nota-se no som do próprio disco.
E: Tentámos ilustrar isso que estás a dizer, de todos os tempos acontecerem ao mesmo tempo, um bocadinho na instrumentação, nas referências de produção que fomos buscar. Quando estou a fazer um disco, às vezes, tenho muita dificuldade em ouvir música de fora. Passo tanto tempo a ouvir música que os ouvidos ficam cansados.
C: Já eu preciso de ouvir música de fora. Somos completamente distintos nas abordagens.
E: Desta vez, porém, quis forçosamente expor-me a música diferente daquela que ouvia no dia-a-dia e tentar até… Não digo ouvir música do futuro, porque ainda não dá para fazer isso, mas música do hiper-presente... Estar atento às coisas novas que saíam, ao mesmo tempo que ia buscar coisas mais atrás do que alguma vez tinha ido.
Fala-me dessas pesquisas musicais. Houve algumas canções que nasceram daí, ou apenas soluções de instrumentação e produção? Como se desenrolou o processo?
E: Que nasceram daí, não. Mas, por exemplo, a “Rumba Nera” tem uma linha de harpsichord [cravo] que foi inspirada pelas Variações Goldberg de Bach. E isso não foi escuta recreativa, foi mesmo o resultado desse trabalho de pesquisa para Best Youth.
Estava a pensar mesmo nessa.
E: Dei por mim a ouvir muita música de harpsichord, que era uma coisa que não costumava ouvir e achei que esse tipo de linhas melódicas podiam encaixar bem naquela canção.
Imagino que não vão ter um cravo em palco nos concertos de apresentação, a 23 de Janeiro, no Teatro Maria Matos, e a 31, na Casa da Música. Como é que vão reproduzir o disco ao vivo? Vai estar mais alguém em palco com vocês?
C: Somos nós os dois.
E: Nós sempre fomos só os dois, mas ao longo do tempo tivemos várias configurações, tanto para gravar os discos, como ao vivo, que foram espectaculares.
C: E das quais temos muitas saudades.
E: Mas havia sempre uma inevitabilidade que era, por causa da escala do nosso projecto, por causa da escala do país e da conjuntura actual, sempre recebemos muitas propostas para tocar em que só podíamos ir os dois. A certa altura, começámos a sentir que fazíamos um disco e depois quando era para o apresentar ao vivo estávamos sempre a fazer uma adaptação para duas pessoas do disco. O que era estranho quando na verdade, na génese, a banda somos nós os dois.
Faz sentido.
E: Já no Cherry Domino tentámos começar a resolver essa questão, quisemos fazer um disco para ser interpretado por duas pessoas, com mais recurso a drum machines em vez de um baterista, sintetizadores sequenciados em vez de um músico a tocar baixo, etc. E neste disco quisemos continuar a desenvolver essa ideia. Até porque não tivemos outra hipótese, por causa da pandemia, tivemos mesmo que fazer o disco sozinhos.
Tendo em conta que a Catarina só canta, como é que tu fazes tudo o resto sozinho? Lançar os instrumentos, tocar guitarra...
E: Com muita dificuldade [risos]. Mas a maior parte das vezes a criatividade vem das limitações. E se isto foi composto por nós, gravado por nós, feito por nós, e somos só duas pessoas, temos de pensar qual é a melhor forma, a mais honesta e genuína, de apresentar o disco ao vivo. Por exemplo, as sequências de bateria não foram tocadas, foram ajustadas, foram sequenciadas, compusemos aquilo e depois fizemos o resto da canção por cima, basicamente. Então não há problema em fazer o mesmo ao vivo. Por outro lado, há instrumentos e há partes das nossas músicas que vivem da interação e de serem tocadas em tempo real, como a guitarra. Não faz sentido nenhum ter uma guitarra eléctrica que está a tocar numa gravação, da mesma forma que há vozes da Cate que são de suporte, que faz sentido estarem numa backing track, e há partes que têm mesmo de ser cantadas. Tem sido um processo muito engraçado, ainda que difícil, perceber, em primeiro lugar, o que é que merece estar e o que é que não merece estar na canção; e depois o que tem de ser interpretado ao vivo e o que não tem de ser. É claro que as músicas mudam…
C: Bastante. Mas a interpretação está a ser mesmo fixe.
Mais uma vez, tiveram de fazer uma adaptação do que se ouve no disco.
C: Faz parte da nossa vivência a dois. É sempre a adaptar.
Teatro Maria Matos. 23 Jan (Ter). 21.00. 16,50€-30€