Eles Eram Muitos Cavalos”, o romance de estreia de Luiz Ruffato, chegou a Portugal 17 anos após a edição original. Deixámo-nos arrastar pelo turbilhão da metrópole brasileira.
Um dos pontos que saltam à vista quando lemos estes contos é uma presença constante – apesar de discreta – que age em contraponto à designação que os agrupa. No título do livro surge a palavra vida, mas em quase todas estas narrativas o ponto fulcral é uma morte. “A vida é sempre um princípio, mas nós acabamos por morrer um bocadinho a cada dia. E o tango tem algo de sensualidade, de paixão, mas também de morte… de todas as coisas que fazem parte de uma vida vivida de forma intensa”, justifica Cristina Norton.
Em quase todos estes episódios são as mulheres que decidem e tomam as rédeas dos acontecimentos, com peripécias que não escondem alguma perversidade. Veja-se, por exemplo, o conto “Menina-modelo”, com uma personagem rebelde, originária de boas famílias, que envenena a ama-seca e trama a morte das colegas. “É um lado de que gosto muito e que num romance não tem esse efeito tão forte, como se consegue transmitir num conto, num texto mais conciso. Muitas vezes gostaríamos que alguém desparecesse… da vida, do país onde vivemos, da nossa realidade. Como, e ainda bem, não somos capazes de matar, podemos matar na ficção”, reconhece a autora.
Em algumas etapas há ironia (como em “O bígamo”), relatos que nasceram da realidade (“A mãe da Plaza de Mayo”), ecos de desencanto (“nesse almoço tinha armazenado felicidade e ilusões para uma semana”, in “O bambolear de Adéle”), quezílias irreparáveis (“O grão de arroz”, um dos contos mais fortes). Noutras, o destino: “Seria da aproximação do solstício, do nascimento do menino ou de as forças do mal não quererem deixar nada por fazer antes do fim do ano?”; in “Feliz Natal”. E há também muitas vinganças. Exploração ficcional ou expiação pessoal? “Não, de todo, é pura imaginação. Para mim, um conto é uma coisa que eu tenho de escrever de uma penada, de uma vez só, ao contrário do romance, que vou escrevendo aos poucos. Essa questão das vinganças foi uma coisa que me divertiu, eu sou incapaz de me vingar de alguém, tenho pena das pessoas que são más, das pessoas que magoam, e afasto-me sempre desse tipo de pessoas. Foi uma brincadeira… até porque algumas destas vinganças fazem rir”, assegura.
Em “O pescador de sereias”, um homem seduz (ou é seduzido por) uma sueca. Acaba por sucumbir ao fastio e ser devolvido ao seu país de origem. Desta vez, é o pescador a ser devolvido ao seu mar (de enganos?). Há referências que se repetem, como a família, as heranças, o que os pais esperavam das filhas, a desilusão do matrimónio. Por outro lado, sente-se que muitas destas personagens teriam tudo para que a sua vida fosse de uma certa maneira e ela decorre de outra. “A vida é inesperada e, cada vez mais, não podemos ter a certeza de nada. Eu conheço muitas pessoas que se reformaram e trabalharam toda a vida, numa empresa, ou na lavoura, sempre no mesmo lugar. Hoje, ninguém tem essa segurança”. No conto “A perna direita de Frida Khalo” lemos como “as crianças são cruéis e acreditam que rindo dos outros ninguém irá notar os seus defeitos”. Serão só as crianças a recorrer ao estratagema? “As crianças mais do que os adultos. São muito mazinhas. Eu tenho quatro filhos e sete netos, adoro-os a todos, lidei muito com crianças quando dava aulas, e não há dúvida que a criança é assim. Se uma criança usa óculos, logo as outras lhe chamam caixa de óculos”. O título do livro levanta algumas questões, lançando sobre a imagem escolhida a possibilidade de leituras várias. Uma coisa é certa, se a vida é um tango, sempre ouvimos dizer que são precisos dois para o dançar. Quisemos saber junto de Cristina Norton quem é que dança este tango. A resposta é curta e rápida: “Uma mulher, que sou eu, e a minha paixão, que é a escrita”.
A Vida é um Tango **** (quatro estrelas)
Cristina Norton
Oficina do Livro
172 pp
14,40€