Voz pausada, sorriso franco, simpatia indiscutível, muitas milhas percorridas, histórias acumuladas e memórias para reciclar. Tradutor, jornalista, ficcionista, em 2018 perfaz 70 anos de idade. Foi uma das figuras da edição deste ano das Correntes D’Escritas, festival onde escutámos o seu linguajar solto do Rio de Janeiro.
Como poderemos conhecer a cidade de São Paulo? Os números que podem extrair-se da Wikipédia – 23º 33’ 01’’ de latitude Sul, 46º 38’ 02’’ de longitude Oeste, 12.106.920 habitantes (20 milhões na área metropolitana, 7.ª cidade mais populosa do mundo), 1.521,11 km2, 32 prefeituras, clima subtropical húmido, 760 metros de altitude – são elucidativos; a leitura dos três volumes de História da cidade de São Paulo, de Paula Porta, poderá conferir perspectiva à imagem; a assinatura da nossa irmã Time Out São Paulo permitirá desfrutar em pleno da oferta de gastronomia, vida cultural e entretenimento. Mas para se obter uma percepção mais profunda da realidade é preciso recorrer à literatura – não ao romance convencional, mas a algo que consiga exprimir a complexidade, diversidade e contradições de uma urbe tão desmesurada: “fumaça de carros e caminhões tachos de acarajés coxinhas quibes pastéis, vozes atropelam-se, amalgamam-se, aniquilam-se, em bancas revistas, jornais, livros usados, pulseiras brincos colares gargantilhas anéis, lã em gorros ponches blusas mantas xales, pontos-de-ônibus lotados, trombadinhas, engraxates, carrinhos-de-pipoca, doces caseiros, vagabundos, espalhados caídos arrastando-se bêbados mendigos meninos drogados aleijados”.
O trecho faz parte do capítulo 17 da sinfonia em 69 andamentos com que Luiz Ruffato (n.1961, Cataguases, Minas Gerais, filho de uma lavadeira portuguesa e de um vendedor de pipocas de ascendência italiana) faz um instantâneo de um dia – 9 de Maio de 2000 – na fervilhante vida de São Paulo. Cada andamento oferece uma perspectiva diferente: crianças, adolescentes, adultos e idosos, ratazanas e cães, milionários e sem-abrigo, prostitutas e traficantes de armas, ao nível da sarjeta e do alto dos helicópteros em que os ricos se deslocam para fugir aos engarrafamentos, aos assaltos e às massas com hábitos higiénicos duvidosos. Ruffato dá uma voz a cada um destes protagonistas – algo de que muitos romances ditos “polifónicos” não são capazes – e por vezes confere-lhe a natureza desconexa e truncada do pensamento, da oralidade, das conversas ouvidas de passagem e das comunicações telefónicas periclitantes. A esta estonteante cacofonia, Ruffato soma ainda matérias “em bruto” da mais variada natureza: horóscopos, ofertas de emprego, cardápios, orações, anúncios para encontros “sentimentais” ou eróticos, boletins meteorológicos, voice-mails.
Por vezes, o olho detém-se num farol (semáforo) e assume perspectiva realista, analítica e crua: “uma velha se oferece buquê de rosas encarnadas; um rapaz martela o pregão de uma caixa de ferramentas; outro embala panos-de-prato “bordados à mão”; um sujeito sua, nos ombros desfilando uma caixa de copos de água mineral; outro, ensonado bebê ao colo, exige esmolas; rodinho e balde em garras subnutridas disputam para-brisas; adolescentes coxas sorridentes impingem propagandas de imóveis”. Outras vezes esboça imagens de uma poesia diáfana: “lá em baixo, no playground, meninos e meninas grilos vermelhos acesos na escuridão nos cantos escuros da quadra agarrados aos silêncios nas reentrâncias do hall”. O capítulo 32 é uma descrição detalhada de uma copa e do seu conteúdo, o que torna evidente o vínculo com outra obra-prima fragmentária e multifacetada: A vida: Modo de usar, de Georges Perec. Mas enquanto o romance de Perec, que descreve sistematicamente as várias divisões (e respectivos ocupantes) de um prédio de apartamentos parisiense, é uma criação intelectual que obedece a uma meticulosa e rigorosa arquitectura, Eles eram muitos cavalos é uma obra visceral, torrencial e informe, que não hesita em incorporar detritos colhidos na sarjeta.
Apesar de esta visão de São Paulo ser vertiginosamente multifacetada, adivinha-se que Ruffato teve especial preocupação em dar voz aos deserdados da vida e aos marginalizados e que tem menos simpatia pelos que contemplam a cidade do alto dos arranha-céus – São Paulo alberga as sedes de 60% das multinacionais estabelecidas no Brasil e representa 10,7% do PIB brasileiro – do que por aqueles cujo panorama quotidiano são “escandalosas casas de tijolos à mostra, esqueletos de colunas, lajes por acabar, pipas singrando o céu cinza, fedor de esgoto”.
Embora seja sistematicamente referido que o romance foi distinguido com o Prémio Machado de Assis, atribuído pela Fundação Biblioteca Nacional, a obra não consta da lista dos vencedores deste galardão – nem poderia constar, uma vez que o prémio, que contempla obras publicadas no ano transacto, só começou a ser atribuído em 2008. Mas não custa adivinhar que o autor desse tour de force que é Memórias póstumas de Brás Cubas abraçaria, comovido, o autor do não menos audacioso Eles eram muitos cavalos.
Eles eram muitos cavalos ***** (cinco estrelas)
Luiz Ruffato
Tinta-da-China
144pp
13,90€