Edmondo de Amicis (1846-1908) é recordado quase exclusivamente por Coração (Cuore), um livro para rapazes cuja pedagogia dos “bons sentimentos” envelheceu mal, mas que, quando surgiu, em 1886, teve extraordinário sucesso em Itália, cuja unificação recente a obra exaltava. Porém, De Amicis foi também um viajante muito activo e publicou meia dúzia de livros em que verteu impressões colhidas em Espanha, Londres, Holanda, Marrocos, Paris e Constantinopla.
Há uma possibilidade de bonança, mas o caminho destas personagens nem sempre se deixa torrar pelo sol. Violento, inquietante, cruel e insólito são apenas alguns ingredientes de A Tempestade, autêntica central meteorológica dos estados das almas e corpos humanos. Marina Perezagua (Sevilha, 1978), a mesma autora do aclamado Yoro, editado em Junho de 2016, ajuda-nos a navegar por esta colectânea de contos.
Prevalece um estilo muito físico. Até que ponto o corpo é uma boa ferramenta comunicacional?
Penso que o corpo é o idioma mais democrático, aquele que todos entendem. Não há ninguém que não conheça a sensação de frio extremo, de doença ou de uma simples dor de cabeça. O corpo admite muito menos interpretações que as ideias. Há barreiras socioculturais que impedem a compreensão de certas condutas. Não é que não as partilhemos, é que o nosso cérebro nem chega a entendê-las.
Revela também uma boa dose de erotismo e grotesco. É algo que lhe surge naturalmente?
Interessa-me muito o erotismo no âmbito da comunicação e na capacidade de resolver, pelo menos momentaneamente, a distância em relação ao outro, mas quando escrevo faço-o sem pensar em usá-lo com este fim. Como dizes, por vezes este erotismo é bastante aberrante ou grotesco, o que acontece quando dois corpos têm dificuldade em expressar-se livremente, sem tensão entre o desejo e os preconceitos que a moral impôs. Outras vezes é um erotismo que se desenvolve de forma natural, como faria um animal se tivesse a nossa habilidade erótica. Curiosamente, por mais que sejamos seres eróticos, por vezes não conseguimos libertar-nos do peso da norma cultural.
Voltamos ao corpo: sente que escreve com a cabeça ou com a mão? O processo de escrita é-lhe claro?
Boa pergunta. É estranho, porque me considero muito intuitiva e ao mesmo tempo muito analítica. Para escrever preciso de ter um fim, isso é tudo, o resto escrevo-o de maneira directa, espontânea, com esforço, claro, mas sem um esquema premeditado. E no entanto, quando me releio, acho muito calculado, próximo da crónica, do jornalismo, ou de escritas mais herméticas, kafkianas, como se tudo tivesse sido planeado ao milímetro.
Há um misto de beleza desapontada e estranheza nas histórias. O que a atrai quando escreve?
Interessam-me os extremos. Costumo pensar na pintura de Caravaggio, no contraste de luz e sombra que domina a sua obra. Talvez esteja ligado à minha personalidade; não sou de meias medidas. As minhas acções são contundentes, mesmo quando vão contra o meu bem-estar. Nesse sentido, lembro-me sempre de uma passagem do Apocalipe, que chego a citar num dos meus romances: “Conheço a tua obra, não é frio nem quente. Oxalá fosse frio ou quente! Por enquanto és apenas tíbio, e nem frio nem quente te vomitarei da minha boca.”
É natural de Sevilha, vive em Nova Iorque. De que forma estes dois contextos moldam a sua obra?
Ter passado metade da minha vida num lado e a outra metade em Nova Iorque, que é um não lugar, ou um lugar tão plural, faz com que me sinta parte de todo o lado e de lado nenhum ao mesmo tempo. Em Espanha, na Europa, tenho as minhas raízes, reconheço que sou carne daquela terra, e penso que a parte emocional da minha escrita vem de onde nasci e onde passei os primeiros 20 anos. Nova Iorque traz outros ingredientes importantes: principalmente o desapego; sentir que a cidade te atrai e te afasta ao mesmo tempo. Sem esse sentimento a minha escrita não seria a mesma. É nesse desapego que encontro as questões que tento resolver mediante o que escrevo; onde me pergunto que mundo é este que me rodeia.
Como começou tudo?
De forma muito natural. Pensava que escrever histórias era o normal. Em casa escrevia letras de canções desde pequena. Guardo-as todas, com todos os erros de ortografia que tinham. Comecei a estudar piano no conservatório com sete anos e musicava essas letras. Claro que eram trabalhos com o valor de uma criança, mas já aqui denotava um cunho muito narrativo, uma inclinação para contar e escutar histórias. A minha mãe educou-me a cantar romances antigos, desses que se cantavam nas aldeias e que narravam histórias complexas de forma simples e bela.
Contos, romances. Qual a sua relação com a pequena história, nem sempre tão popular?
Para mim é uma questão de ritmo vital, de respiração. É como nadar [uma pausa para referir que Marina, professora na Universidade de Nova Iorque, é também nadadora de águas abertas]; às vezes são precisos treinos curtos e de velocidade, e outras vezes é necessário praticar longas distâncias e velocidade menos intensa. Durante o tempo que treinei a apneia costumava escrever contos; o conto é para mim deixar de respirar; por razões óbvias não pode durar muito tempo. O romance vive de um tempo mais distendido; entretém-se nos seus pensamentos antes de cruzar a meta. É uma travessia de muitos quilómetros e é preciso conservar a força e a tensão (as do escritor e do leitor) até ao final.
Em que tempo anda a trabalhar neste momento?
Estou de volta de um romance, mas já começo a pensar na ideia de que o meu próximo livro seja de relatos eróticos. Ando há anos para o fazer. A ver se desta vez acontece.
A crítica:
A Tempestade ***** (cinco estrelas)
Elsinore, 240pp, 15,92€
Ascendente em água, turbulência permanente. Marina Perezagua estreou-se em 2011 com as pequenas histórias e A Tempestade reúne contos desse Criaturas Abisales e ainda narrativas extraídas de Leche, obra de 2013. Uma colectânea onde o corpo, com todos os seus gemidos, fungos e fedores, se entorna para cima de cada página destas 22 paragens, com todas as suas misérias e prazeres. “A dor de hoje é sempre pior do que a do passado, porque é mais jovem, está no tempo de medrar. A minha dor tem ossos de adolescente e está a alongar-se”, diz a mulher que cuida d’ “Ele”, o homem que se debate numa cama entre “a morte e a coisa”. A autora do romance Yoro, e de quem esperamos que chegue também Don Quijote en Manhattan (2016), dá-nos mulheres impenetráveis, actrizes em modo de requiem, donzelas de Hiroxima e homens que amamentam, para um mergulho insólito e desconcertante num tanque onde o ser humano esbraceja tentando não morrer afogado. Marina junta-se à agitação. E continua a nadar com vigor, rumo à medalha olímpica.