Edmondo de Amicis (1846-1908) é recordado quase exclusivamente por Coração (Cuore), um livro para rapazes cuja pedagogia dos “bons sentimentos” envelheceu mal, mas que, quando surgiu, em 1886, teve extraordinário sucesso em Itália, cuja unificação recente a obra exaltava. Porém, De Amicis foi também um viajante muito activo e publicou meia dúzia de livros em que verteu impressões colhidas em Espanha, Londres, Holanda, Marrocos, Paris e Constantinopla.
Edmondo de Amicis (1846-1908) é recordado quase exclusivamente por Coração (Cuore), um livro para rapazes cuja pedagogia dos “bons sentimentos” envelheceu mal, mas que, quando surgiu, em 1886, teve extraordinário sucesso em Itália, cuja unificação recente a obra exaltava. Porém, De Amicis foi também um viajante muito activo e publicou meia dúzia de livros em que verteu impressões colhidas em Espanha, Londres, Holanda, Marrocos, Paris e Constantinopla. A viagem à capital do Império Otomano fez-se na companhia do seu amigo Enrico Yunck, que deveria ter providenciado imagens para uma edição ilustrada – a morte de Yunck frustrou este projecto e o livro saiu em 1877-78 sem ilustrações e só em 1882 surgiu a edição ilustrada por Cesare Biseo e Stefano Ussi. Constantinopla foi um sucesso na época e a edição ilustrada até teve honras de edição portuguesa, em 1889, pela Companhia Nacional Editora. Regressa agora – sem ilustrações, hélas!, mas com sábio prefácio de Umberto Eco – numa exemplar colecção coordenada por Carlos Vaz Marques, que luta para manter a nobreza da “literatura de viagem”, minada nos últimos tempos pela disseminação da ideia de que qualquer frequent flyer que seja capaz de alinhavar duas ou três frases está habilitado a redigir um livro sobre as paragens que visitou (e que inclui, fatalmente, a asinina asserção “X é um país de contrastes”).
A Constantinopla de De Amicis está duplamente perdida: por um lado porque a cidade de 1874 se ocidentalizou e banalizou de forma vertiginosa e pouco conserva do encanto “exótico”; por outro porque a facilidade com que hoje se viaja, a constante exposição a imagens de todos os pontos do planeta e a proliferação de guias e revistas de viagens que se afadigam em instruir-nos sobre o que devemos ver, comer, comprar e experimentar em cada cidade (e o que devemos retirar de cada uma dessas experiências), arruinaram a “virgindade” do viajante, tornaram-no cínico e blasé e privaram-no do êxtase da primeira impressão, do enlevo da descoberta – sentimento a que De Amicis dedica algumas das páginas mais fulgurantes do livro: “Reis, príncipes, cresos, poderosos e afortunados da terra, naquele momento tive pena de vós; o meu lugar naquele navio valia todos os vossos tesouros, não trocaria um olhar meu por um império”, escreve ele enquanto o navio avança pelo Mar de Mármara e a neblina matinal se ergue e revela “Constantinopla, infinita, soberba, sublime! Glória a toda a criação e ao homem! Eu não imaginara esta beleza!”. Na mesma situação, o viajante de hoje vira as costas ao cenário para verificar se colocou o selfie stick na mochila...
A ausência de ilustrações é parcialmente compensada pelo extraordinário poder de De Amicis para “pintar” frescos plenos de cor e dramatismo, baseados não só no que vê como no que imagina a partir do rico passado de Constantinopla. Uma das características que mais o impressiona é a natureza heteróclita da cidade: “A cada cem passos, tudo se altera. Aqui estamos numa rua dos arredores de Marselha; se nos viramos, já é uma aldeia asiática; se nos virarmos de novo, é um bairro grego; se nos virarmos uma vez mais, é um subúrbio de Trabzon.” A diversidade arquitectónica tem par na diversidade humana: “É um mosaico variável de raças e religiões, que se compõe e desmancha continuamente”, um caleidoscópio de trajes, sapatos, barretes e cores de pele que, também ele, perdeu brilho e cor desde que Istambul deixou de ser a capital de um império multi-étnico e as pulsões nacionalistas e a intolerância religiosa expulsaram da cidade as vastas populações gregas, judias, arménias – bastará dizer que os gregos representavam no início do século XX 30% da população e em 1979 estavam reduzidos a 0,2%.
Podemos pois considerar-nos afortunados por a Istambul de 1874 ter sido preservada neste livro de prosa opulenta e arrebatadora. Haverá quem lhe reprove a perspectiva eurocêntrica, mas De Amicis mostra uma abertura de espírito invulgar para o seu tempo e quando vai visitar Hagia Sophia – basílica bizantina convertida em mesquita – faz-se acompanhar de dois velhos guias, um turco e outro grego, de forma “a ver Santa Sofia como ela deve ser vista: com um olho de cristão e outro de turco”.
Constantinopla. Edmondo De Amicis. Tinta-da-China. 496 pp, 22,90€