Edmondo de Amicis (1846-1908) é recordado quase exclusivamente por Coração (Cuore), um livro para rapazes cuja pedagogia dos “bons sentimentos” envelheceu mal, mas que, quando surgiu, em 1886, teve extraordinário sucesso em Itália, cuja unificação recente a obra exaltava. Porém, De Amicis foi também um viajante muito activo e publicou meia dúzia de livros em que verteu impressões colhidas em Espanha, Londres, Holanda, Marrocos, Paris e Constantinopla.
Voz pausada, sorriso franco, simpatia indiscutível, muitas milhas percorridas, histórias acumuladas e memórias para reciclar. Tradutor, jornalista, ficcionista, em 2018 perfaz 70 anos de idade. Foi uma das figuras da edição deste ano das Correntes D’Escritas, festival onde escutámos o seu linguajar solto do Rio de Janeiro.
Há vários elementos comuns nestes contos, escritos num leque temporal com mais de 30 anos. Relações que terminam, gente que parte, gente que abandona e é abandonada. Há mais reencontros ou desencontros?
Eu sou muito ruim para explicar as minhas coisas… este livro foi armado a partir de vários livros. Quando eu publico um livro de contos, ele é armado como se fosse um filme. E este filme é do Manuel Alberto Valente, meu editor. A minha matéria-prima é a memória. O que dispara a história, eu não sei, no dia em que souber, paro de escrever. Perderia o encanto. Eu tive vários encontros e desencontros na vida… a gente erra… e o que a gente escreve é aquilo que nós somos. Há muitos anos, Gabriel Garcia Márquez me deu uma frase de presente: “Nunca podia imaginar gostar tanto de histórias que terminam tão mal.” Ele era um defensor irredutível de histórias de amor com final feliz.
No conto “Coisas da vida” a personagem Luís fala de uma coisa para não pensar noutra. Os ficcionistas são também assim?
As pessoas são assim. O ser humano é assim. Muitas vezes, você desvia de assunto, como defesa de algo que é traumático, é triste, ou é aborrecido. E essa história do hospital é real. Há um outro conto, “Novembro”, em que nada sabemos: quem são as personagens, o que se passa, o que se passou, nem o que se vai passar. Neste caso, eu tinha escrito quem é quem e como era o final. Depois, achei que era muito melhor a história aberta do que fechada. Eu sei o final! Cada um, leia como quiser. Comecei lembrando do bar, que é real… é um povoado da costa catalã, onde morava um fraterno amigo meu, o Eduardo Galeano. E muitas vezes ia a casa dele, com meu filho. Uma vez, era Inverno, fui no bar, fiquei lá sozinho, voltei para casa, dias depois peguei o carro e regressei a Madrid. Muitos anos depois, lembrando dessa noite me veio a história inteira. Com um final feliz… irónico. Aí eu fui cortando, cortando, e virou esse conto.
Porque é que, na quase totalidade destes contos, o homem é sempre muito mais velho que a mulher em questão?
Pois é, rapaz… você é o segundo que me fala disso. Coincidiu… vai ver – você está- -me obrigando a pensar – eu me sentia, mesmo quando era jovem, bem mais velho. Nunca pensei muito nisso… e se pensar não escrevo mais (risos)! Em 1973 foi para a Argentina e ficou lá. Que consequências isso teve na sua escrita? Eu saí do Brasil porque quis. Nunca militei em nenhum partido político, nunca me filiei em nenhum movimento. Eu não era nem sindicalizado. Eu quero tanto preservar minha independência que eu nem sou sócio do Fluminense! Tinha 24 anos, era jornalista, a gente trabalhava com censor na redacção, polícia na redacção, quem editava o jornal, em última instância, era a censura. Na Argentina, comecei a escrever para publicações locais, sobre o regime militar brasileiro. E isso estampou na minha testa o carimbo de propagandista, contra a pátria… uma besteira qualquer dessas. Aí, baixou uma ordem de captura, eu não podia voltar. Era um tempo sem internet, telemóvel… eu ia passar o Natal com o meu pai, ficava em São Paulo, até que alguém me avisava: “pesou!” E eu ia para o Rio de Janeiro, era tempo de voltar para Buenos Aires. Em 1976, com o Golpe Militar na Argentina eu tive de, literalmente, fugir. Não podia ficar no Brasil, vim parar na Espanha. O Franco tinha morrido, voltou a democracia a Espanha. Foi muito marcante para mim, acreditar na possibilidade de ciclos bons, porque a minha geração era do ciclo ruim.
Na sua intervenção aqui nas Correntes D’Escritas abordou várias manias de escritores. O Eric Nepomuceno também terá as suas.
Numa auto-ironia, eu me declaro anárquico e, por isso mesmo, eu sou metódico. Ao recusar qualquer esquema, eu tenho o meu esquema. Escrevo a minha ficção, e as traduções, começando à mão. Eu sou um dactilógrafo muito veloz, e escrevendo à mão a palavra tem outro peso. Para o jornalismo não preciso disso. Gosto de escrever com tinta preta e em cadernos. E detesto revisar na tela do computador. Sou a alegria da papelaria da esquina: imprimo tudo, passo para uma outra versão, imprimo tudo de novo… a tradução que fiz do Cem Anos de Solidão eram mais de 1200 cópias.
É correcto dizer que, nestes contos, narra emoções, mais do que situações.
Nunca tinha pensado nisso, mas está absolutamente certo. A situação é uma circunstância, a emoção é o conteúdo.
Bangladesh, talvez e outras histórias **** (quatro estrelas)
Porto Editora
160 pp
13,95€