Museu Pedagógico do Sexo
Mariana Valle Lima
Mariana Valle Lima

Está a nascer um museu do sexo em Oeiras, para quebrar o “tabu das instituições”

Obras de Paula Rego, Julião Sarmento, Lourdes Castro e Louise Bourgeois põem a nu o prazer sexual feminino, num novo museu que quer ser mais do que uma montra de arte – quer educar. Eis a primeira exposição do Museu Pedagógico do Sexo.

Joana Moreira
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O prazer sexual feminino é historicamente menosprezado, mas há uma nova exposição que quer pôr o tema no centro das conversas. Desde o final de Junho que o Palácio dos Anjos, em Algés, mostra Amor Veneris – Viagem ao Prazer Sexual Feminino, a primeira iniciativa do Museu Pedagógico do Sexo (Musex). 

Com ou sem consentimento? É a pergunta colocada à entrada da exposição, que é também uma viagem pelo corpo e sexualidade das mulheres. Caso a escolha seja “com consentimento”, os visitantes mergulham de imediato no mundo do prazer sexual feminino. Caso a escolha seja “sem consentimento”, o percurso implica a passagem por salas escurecidas e um texto de parede em jeito de manifesto: “Forçou uma entrada, o que, neste contexto, significa que exerceu um acto de violência sexual sobre a mulher. Qualquer tipo de actividade sexual sem consentimento, incluindo toques, carícias, beijos e relações sexuais é uma forma de agressão sexual que pode ser considerada CRIME. Se o consentimento não for claro, voluntário, entusiástico, coerente e contínuo, ou se a interacção ocorrer por medo, culpa, intimidação ou coerção, é AGRESSÃO SEXUAL.” 

“Toda esta sala tem esta pretensão, que as pessoas saiam daqui com um murro no estômago, desconfortáveis", admite à Time Out a terapeuta sexual Marta Crawford, curadora da exposição e fundadora do Musex, um museu que existe para já enquanto conceito, sem um espaço físico definido. “Este núcleo expositivo pretende provocar uma reflexão sobre a violência sexual contra as mulheres e tem uma função muito precisa: alertar as pessoas.”

Nas paredes encontra-se a violência expressa na banda desenhada de Alice Geirinhas (“levo porrada às segundas e quartas e às sextas sou violada”, lê-se num dos balões), os desenhos de Paula Rego da série sobre a mutilação genital feminina ou um pequeno livro da francesa Annette Messager, Les Uterus fleurissent (2017), uma das primeiras aquisições do Musex para o seu acervo. 

Em simultâneo, escutam-se palavras oriundas da instalação em vídeo de Ana Rocha de Sousa. A actriz e realizadora portuguesa revelou, no ano passado, ter sido violada quando tinha 17 anos. Em Tu (2022), obra concebida especialmente para esta exposição, imagens ficcionadas unem-se a testemunhos orais de mulheres que também sofreram violência sexual. “Não fazia sentido na minha cabeça fazer esta exposição sem falar sobre isso. Falamos sobre o prazer sexual, mas temos também de alertar para o que acontece”, frisa Crawford, que há muito sonhava materializar a ideia de um Museu Pedagógico do Sexo. “As pessoas falam de sexo, mas depois é tabu nas instituições”, critica. “É gira a sexualidade, e estarmos todos a falar disso, mas depois estar a associar… As pessoas têm sempre receio das opiniões. É um pudor que está instalado. O clitóris andar para aí espalhado pelos Mupis da cidade? Há este género de circunstância…”

À saída da primeira parte de Amor Veneris, a placa devolve-nos o bom-senso: o que seria se tivéssemos escolhido o caminho com consentimento? O ambiente ganha leveza nos tons e dá-se início a uma sequência de três núcleos expositivos: cérebro, pele e clitóris. “A forma de estruturar tem a ver com o conceito clínico. O principal órgão sexual é o cérebro. É o sítio onde temos as nossas fantasias, as nossas histórias, as memórias, as experiências, tínhamos de começar por aí”, explica Crawford. 

Na primeira das salas – todas são divididas por cortinas cor-de-rosa – a cacofonia está instalada. Os sons dos vários ecrãs atropelam-se, numa sobreposição de estímulos. “Temos às vezes tantas coisas na nossa cabeça que é difícil encontrar disponibilidade para o sexo”, compara a sexóloga. Entre os vídeos reproduzidos continuamente está Segredos do Sexo Feliz, a palestra TedX que a sexóloga deu no Porto em 2008, ou Le Clitoris (2016), o documentário animado da canadiana Lori Malépart-Traversy sobre o órgão dedicado ao prazer (que, em Portugal, passou pelo festival Monstra em 2017).

No núcleo inicial reforça-se a intenção expressa na própria toponímia – Museu Pedagógico do Sexo – de cruzar a arte com a pedagogia. É exemplo disso a peça Toca-me (2022), uma mesa inspirada na caixa sensorial de Maria Montessori em que os visitantes são convidados a inserir as mãos dentro de vários orifícios e a descobrir objectos variados só através do toque. 

Já na sala ao lado, há uma parede cheia de buracos à altura do olhar onde, qual peep show, se pode assistir a uma selecção de filmes de Erika Lust. É preciso assumir uma postura voyeurista para descobrir as obras da realizadora e produtora sueca referência na pornografia feminista, entre as quais My First Time Eating Oysters (2013) ou Coffee with Pleasure (2019).

É o olhar feminino que está em destaque nas representações do corpo, também ele feminino, que marca todo o percurso. “Trabalhamos a ideia de não olhar para o corpo canónico. Na História da Arte, o corpo feminino foi muitas vezes mostrado como um corpo associado à fertilidade, ou um corpo sedutor, da visão masculina de quem o pintava. Aqui tentámos ter um discurso muito mais plural, sempre com artistas da contemporaneidade e na ideia de que o corpo feminino pode ser mostrado de muitas formas”, explica Fabrícia Valente, que assina a curadoria da exposição ao lado de Marta Crawford. Juntas queriam “fugir do estereótipo do corpo feminino através de diferentes representações dele”, diz, e isso passou, também, por dar voz a mais mulheres artistas.

“Em 36 autores temos cerca de meia dúzia masculinos, a incluir os colectivos, como Os Espacialistas, em que os homens estão presentes”, diz Fabrícia. Ei-los mais à frente, depois de vários metros percorridos. Mesmo antes de dobrar as escadas para o piso superior, numa discreta sala à esquerda está Déjà Vu (1979-2002), obra de Julião Sarmento vinda do Museu Nacional de Arte Contemporânea (MNAC). O artista português “trabalhou quase sempre o corpo feminino como um corpo padrão, da actriz, normalmente francesa, com o corpo magro, cintura fininha, com a cabeça tapada, em quase todas as suas obras", reflecte Fabrícia olhando a representação de uma mulher voluptuosa que enche a tela. “Não é inocente a escolha desta obra, que foi muito poucas vezes mostrada”, comenta. “É um corpo que hoje em dia já não entra nos cânones, já não entra nos padrões. É uma obra do Julião Sarmento que nos leva para uma leitura do corpo a que normalmente ele não nos habitua”, diz. Também sem qualquer acaso, “é um nome gigante que colocamos aqui escondidinho, na escada, a contrariar a imagem até muitas vezes machista que a obra do Julião tem sobre o corpo da mulher", acrescenta. 

Além de Paula Rego ou Julião Sarmento, há outros nomes de peso da arte portuguesa que estão presentes, como Fernanda Fragateiro ou Lourdes Castro – só os mais atentos descobrirão a obra da artista plástica madeirense, já que é preciso descortinar uma das paredes na escadaria para ver o lençol bordado Sombra Deitada (1970). “Estamos muito contentes com o leque de autores que está aqui escolhido e que pode colocar a exposição em qualquer patamar internacional”, diz Fabrícia Valente, particularmente orgulhosa com a presença de uma escultura em bronze de Louise Bourgeois, Femme (2005), suspensa num local de destaque da exposição. “O nome da Louise Bourgeois é incontornável. Em toda a sua obra há referência ao corpo da mulher, mas questionamos os limites até onde estamos num corpo feminino ou num corpo masculino. Por exemplo, [aqui] temos uma mulher deitada, mas se olharmos para as suas pernas percebemos que há uma leitura fálica da obra.”

É um dos casos que evidencia o esforço das curadoras para mostrar mais do que “os corpos estereotipados da beleza que nos habituamos a ver nas mulheres que entravam no espaço museológico”. Em Amor Veneris “vemos corpos andróginos, trans, que nos remetem para uma ideia do feminino muito mais ampla. Não estamos só a falar de mulheres cis, mas de todas as mulheres em todas as suas dimensões”, esclarece Marta Crawford, ao lado da obra do britânico Jamie McCartney. The Great Wall of Vagina (2006-2011) é um painel com 400 vulvas feitas em gesso. Vulvas diferentes, maiores, menores, com piercings, cicatrizes, mutiladas. “São vulvas todas diferentes, vulvas de mulheres trans, intersexo”, enumera. “Há mulheres que não estão habituadas a lidar com a sua própria vulva, ou têm nojo, vejo isso na clínica. Se calhar chegam a casa e fazem essa descoberta. Se este painel servir para levar as mulheres a essa descoberta já é uma coisa extraordinária”, diz Marta.

E se tudo começa na cabeça, tudo acaba no clitóris. Ei-lo insuflado, gigante, vermelho, revelando toda a sua estrutura, bolbos e raízes. “É a nossa mais que tudo desta exposição”, diz Crawford sobre a obra de quase três metros da francesa Julia Pietri, que encerra a visita. “A ideia é que as pessoas percebam pelo tamanho a sua importância. [O clitóris] tem cerca de 8 mil terminações nervosas, o que significa que tem um potencial para a mulher que é extraordinário”, diz, e remata: “Não se percebe como é que, ao longo da História, ele é sucessivamente renegado, apertado e amaldiçoado".

Mais do que uma exposição

Desde 2010 que Marta Crawford luta por erguer o Musex – Museu Pedagógico do Sexo. A hipótese de tê-lo em Oeiras surgiu há “quase quatro anos”, afirma a sexóloga, quando começaram as conversações com a Câmara Municipal. “Começou com a ideia de eles sentirem que o Musex podia ser um museu-âncora para o concelho de Oeiras. Ainda se pensou inicialmente num espaço devoluto, num espaço de raiz, mas depois quis o presidente [Isaltino Morais] avançar com uma primeira exposição para perceber como é que isto iria funcionar, porque este tema... As pessoas falam de sexo, mas depois é tabu nas instituições, aonde se vai buscar dinheiro. É [importante falar de sexo], mas será que fica bem?”

Estudam-se agora possibilidades de itinerância do Musex ou uma programação de exposições em formato pop-up. 

Esta é uma primeira amostra para mostrar o espírito do Musex que, mais do que um espaço museológico para mostrar arte contemporânea, pretende ser um lugar com “uma missão e causas associadas”. “A ideia é que o próprio museu possa produzir ciência, criar público para estudos, questionários. O espaço museológico pode servir para criar conhecimento cientifico”, diz a terapeuta. 

Previstas para os próximos meses estão uma série de actividades para todos os ciclos, crianças, jovens e adultos, além de consultas de sexologia em parceria com a APF – Associação de Planeamento Familiar (com um custo de 45€). Na calha está também a realização de um estudo sobre a sexualidade feminina, associado à Sociedade Portuguesa de Sexologia Clínica (SPSC) e ao Mestrado de Sexologia. “A ideia é que a exposição termine em seis meses e que nós continuemos a perpetuá-la com tudo isto que sair, deste estudo que é feito, das teses que vão sair a partir deste estudo, o que é muito entusiasmante”, espera Crawford.

Palácio dos Anjos (Algés). 25 Jun-30 Dez. Ter-Qui e Dom 11.00-19.00, Sáb 11.00-20.00. 6€

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Boas exposições nunca são demais, sobretudo com o bónus do ar condicionado, indispensável à conservação das obras de arte, que nos convida a fugir das ondas de calor. Da inimitável Paula Rego, que morreu este ano, até instalações imersivas, como a de Vhils no maat, são várias as exposições a não perder este Verão. Há fotografia, escultura, pintura, impressão digital e até vídeo e som. No fundo, há de tudo e para todos os gostos. Só tem de decidir quando e onde se inundar de arte na estação quente.

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