Conhecemos David Bruno sobretudo como produtor (do Conjunto Corona a PZ), mas nos seus discos a solo revelou ser um mirabolante contador de histórias das zonas esquecidas de Portugal. Depois de se debruçar sobre Vila Nova de Gaia, em Raiashopping, foi à terra dos avós para prestar homenagem ao Portugal dos cafés com cheirinho, dos enchidos, das festas de espuma, dos emigrantes, das tainadas e dos campeões que bebem minis no café em tronco nu nos dias de calor.
Conhecia-o de vista. Eram muitas as vezes em que passava junto à montra do cabeleireiro Baeta, em Alvalade, e via os miúdos da escola Eugénio dos Santos “ali pendurados a deixar dedadas nos vidros”. Estávamos em 1978. António Ribeiro, o barbeiro, ainda não era Variações, mas estava escrito que seria esse o seu destino. “Nunca me atrevi a entrar no cabeleireiro. Éramos umas tesas, não havia dinheiro para isso”, recorda Teresa Couto Pinto, 60 anos, que viria a ser amiga, agente e fotógrafa de António Variações. Passados 36 anos da sua morte, Teresa deu vida a Variações, um livro intimista, agora publicado pela Oficina do Livro, que mostra a trajectória do cantor e reclama a autoria das imagens (algumas inéditas) que o eternizaram.
O livro chega finalmente, “suficientemente amadurecido”, procurando mostrar António Variações como um artista transversal a todas as gerações. “As pessoas já tiveram tempo para ouvir as músicas com atenção, de ponderar as letras, e de perceber que, por trás de tudo, estava um poeta que tinha uma sabedoria fantástica.” Foi numa tarde, num centro comercial da Rua Castilho, em Lisboa, que primeiro se cruzaram. “O António entrou à hora de almoço para comprar uma peça cor-de-rosa, acolchoada em cetim, que as senhoras usavam por cima das camisas de dormir. Provou-a e ficou-lhe impecável”, lembra. “Não estava ninguém e ficámos a conversar durante uma hora.” Pelo meio da conversa, disse a Teresa que estava para breve a abertura da sua barbearia na Rua de São José. E assim se forjou uma amizade que deu azo a um trabalho fotográfico ímpar.
“Aí ainda nos tratávamos por você”, conta. Mas depressa a relação de amizade evoluiu – o à-vontade para fotografar, esse, não surgiu logo. “Tudo aconteceu naturalmente, eu andava sempre com uma câmara fotográfica.” As primeiras fotografias foram feitas na barbearia, com António a cortar o cabelo a clientes. Mais tarde, era Variações que pedia a Teresa para o fotografar. “Associava modelos como um fato da tropa a outros tecidos, às riscas”, exemplifica. E posava com a desconfiança de que o reflexo que via ao espelho poderia não corresponder ao de outra pessoa ao olhá-lo. Ele queria a prova.
Era na casa perto do Conde Redondo que a maior parte dessas sessões acontecia. Num ambiente plástico, cheio de objectos que não faziam sentido juntos, mas que criavam uma harmonia visual muito grande, reconhece Teresa Couto Pinto. Só em 1979 é que lhe descobriu a faceta de cantor. Um dia, o barbeiro disse-lhe: “sabes que eu canto?” Em casa, mostrou-lhe uma gravação que tinha feito em bobine. “Ouvi pela primeira vez a ‘Toma o Comprimido’ e achei-a estranhíssima. Era tudo trauteado, não havia música de suporte, parecia muito cru.”
O som das suas composições estranhava-se e levava tempo a entranhar-se. Mas na altura em que Teresa conheceu Variações, este atravessava “uma fase extremamente favorável”. Tinha a sua barbearia e começava a ganhar destaque com a sua música, ainda que não fosse totalmente entendido. Foi assim que surgiu o convite para se tornar sua manager. Mas quem era afinal Variações? Havia um António homem e um António artista? “Creio que eles estavam, de certa forma, ligados. Pois um não vive sem o outro. O António artista não vive sem a personalidade e o carisma de António Rodrigues Ribeiro”, responde sem hesitar.
As imagens que hoje conhecemos viveram num vazio autoral por vários anos. Falamos da fotografia em que Variações encosta uma tesoura aos olhos, por exemplo, e também de algumas imagens inéditas, que no livro integram a série Corpo. Estas segundas foram das poucas que resistiram ao assédio que a amiga e a família do artista sofreram ao longos dos anos. “São imagens ousadas, sexualizadas, que, possivelmente, poderiam ter sido a base de estudo para um novo trabalho que nunca chegou a sair. Se tivessem sido mostradas no rescaldo da sua morte talvez não estivessem “preparados de coração aberto para receber este tipo de manifestações do António”, supõe a autora. “Os tempos mudaram, já toda a gente falou da doença que o vitimou, já não importa a ninguém.” Mas será que as pessoas são capazes de entender quem foi António Variações? “Começaram a entender. Em plenitude, é difícil entender as outras pessoas. Começaram a entender o homem que estava por trás”, afirma Teresa.
“Não quis que o livro saísse o ano passado para não ficar colado ao filme [Variações, de João Maia]. Este espaço, esta distância e a calma com que fiz o livro foi importante. Era o momento certo.” Para a autora, este livro clarifica quem era o artista que se tornou uma referência nacional. Um ser íntegro, educado, “que era um artista em potência”. “O António é de todos, não é meu. Ele merece que as novas gerações perpetuem a sua imagem.”
Variações, Teresa Couto Pinto. Oficina do Livro, pp. 120. 35€.
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