Nascidos das cinzas dos Hipnótica, os Beautify Junkyards chegam ao quarto álbum com uma formação que inclui João Branco Kyron (vozes e sintetizadores), Helena Espvall (violoncelo, flauta e guitarra acústica), João Moreira (guitarra acústica e sintetizadores), Sergue Ra (baixo), António Watts (bateria e percussão) e Martinez (vozes). Cosmorama expande o universo tropicalista e psicadélico da banda e pede o título emprestado a uma galeria que existia em Londres na era vitoriana, com projecções de locais distantes e exóticos, um portal para viajar no tempo e no espaço – no fundo, tudo o que pode esperar deste disco.
Conhecemos David Bruno sobretudo como produtor (do Conjunto Corona a PZ), mas nos seus discos a solo revelou ser um mirabolante contador de histórias das zonas esquecidas de Portugal. Depois de se debruçar sobre Vila Nova de Gaia, criou um álbum visual – para ver no YouTube e ouvir ao vivo na Casa do Capitão, em Lisboa, no sábado 5 – sobre a zona raiana da Beira Alta e Trás-os-Montes, mas dedicado a todas as aldeias do Portugal interior. Em Raiashopping, foi à terra dos avós para prestar homenagem ao Portugal dos cafés com cheirinho, dos enchidos, das festas de espuma, dos emigrantes, das tainadas e dos campeões que bebem minis no café em tronco nu nos dias de calor.
Surpreendeu-te a forma como as pessoas abraçaram a tua música desde o primeiro disco?
Surpreendeu, porque nunca tive expectativas, mas fiquei muito contente por perceber que as pessoas conseguem ver a beleza dos pequenos detalhes que eu abordo no meu trabalho. Não estou sozinho e isso deixa-me muito feliz. É o triunfo do banal e do carinho pelas pequenas coisas que normalmente são ignoradas. É a prova do potencial da nossa cultura, dos nossos lugares.
Portugal tem ainda muito por explorar através da música?
É uma mina de ouro, um manancial inesgotável e um dos países com gente mais carismática do mundo – apercebi-me disso quando viajei mais pelo mundo. Eu só abordo temas dos quais tenho propriedade para falar, mas, mesmo assim, tenho matéria-prima infinita.
A tua música tem ajudado as pessoas a conhecer melhor o seu próprio país?
Eu tinha dito que, se conseguisse convencer duas ou três pessoas a olharem para as terras dos seus pais e avós de outra forma e dar-lhes vontade de lá irem, seria uma vitória pessoal, e de facto tenho recebido muitas mensagens de pessoas a dizerem-me isso! Fico de coração cheio. Recebo muitas fotos de pessoas que vão a esses sítios porque ouviram falar deles na minha música. Isso é muito bonito de conseguir através de algo como a música.
Os tempos de infância que passaste na zona raiana tiveram influência na pessoa e no artista que és hoje?
Tiveram, muita. Os beirões e os transmontanos são mais puros, menos polidos e mais transparentes do que as pessoas das grandes cidades do litoral. Vivem mais as suas emoções (boas e más), para além que se nota que a sua cultura, mística, tradições e crenças vêm muito mais de trás – há até um certo paganismo muito claro em muitas tradições do nordeste. O contacto com esta forma de estar, passada para mim pelos meus avós, formou muitos aspectos do meu carácter. O principal talvez seja o folclore e o gosto por contar histórias às outras pessoas. Tenho saudades das horas que passei à lareira a ouvir superstições, lendas e histórias, sempre as mesmas – na altura até me fartava, mas hoje tenho saudades.
Como é que encaras os avanços do fascismo em Portugal? Tens receio que o teu amor ao povo e à cultura portuguesa possa ser confundido com essas ideologias?
Tenho muito receio e já fiz questão de distanciar a minha defesa da portugalidade dessa portugalidade – que, para dizer a verdade, me dá asco. Eu não defendo o país em si, nem os portugueses numa lógica de raça, superioridade ou algo do género. Eu defendo o nosso carisma, até os nossos pequenos defeitos, pormenores “micro” da nossa cultura. E para mim esses movimentos nada têm a ver com a maioria dos portugueses, nem com a cultura que acabei de referir. Acho que genuinamente o povo português pode até ter por vezes mau feitio, ser fanfarrão, inapropriado, mas acredito que a grande maioria de nós tem um bom coração. Como o piloto Mário Patrão, que no Paris Dakar desistiu de uma prova para dar apoio a um piloto holandês que tinha tido um acidente e estava caído. Ou o enfermeiro português que ficou para trás para socorrer as vítimas de esfaqueamento no atentado em Londres há uns anos. Ou o Soldado Milhões, ou o Aristides de Sousa Mendes... Enfim. Aposto que todos eles se fartaram de dizer mal da vida e uns poucos de palavrões, mas foram bons e altruístas para os outros. Para mim, isto é ser português e é disto que eu me orgulho. Do Jorge Jesus, das conferências de imprensa do Carlos Carvalhal na Inglaterra. Esta “boa” portugalidade sente-se e dá para apalpar o amor, o carinho, a bondade destas pessoas e dos seus actos. Tenho muito orgulho nisto e espero que meia dúzia de pessoas não o estraguem.