Nascidos das cinzas dos Hipnótica, os Beautify Junkyards chegam ao quarto álbum (editado via Ghost Box) com uma formação que inclui João Branco Kyron (vozes e sintetizadores), Helena Espvall (violoncelo, flauta e guitarra acústica), João Moreira (guitarra acústica e sintetizadores), Sergue Ra (baixo), António Watts (bateria e percussão) e Martinez (vozes). Cosmorama expande o universo tropicalista e psicadélico da banda e pede o título emprestado a uma galeria que existia em Londres na era vitoriana, com projecções de locais distantes e exóticos, um portal para viajar no tempo e no espaço. No fundo, tudo o que se pode esperar deste novo disco, como percebemos quando o ouvimos e falamos com o co-fundador João Branco Kyron.
Há uma certa forma de transcendência e escapismo neste disco, que o torna perfeito neste momento que nos aprisiona entre quatro paredes.
Cada um dos nossos "filmes" possui uma banda sonora, que nos acompanha nos momentos celebratórios e de comunhão, nos instantes de solidão, nas viagens, nas relações e ligações que estabelecemos com pessoas e locais que fazem parte do nossa vida. Dito isto, os álbuns que criamos têm esse objectivo, canalizar as ideias e inspirações de um determinado período do nosso percurso como banda e oferecer essa música para que as pessoas se inspirem com ela e que seja a tal banda sonora de fragmentos das suas vidas. A nossa música possui um certo onirismo na sua forma e conteúdo, talvez por explorar recantos do nosso subconsciente que nos fascinam, mas também como forma de elevar e dar visibilidade a uma magia que muitas vezes está ao alcance do nosso olhar mas que no mundo acelerado e conturbado nos escapa. Este disco foi composto antes do começo do primeiro confinamento, mas já reflectia essa necessidade de viajar no espaço e tempo sem sairmos do lugar. Foi talvez uma premonição dos tempos que viriam.
A vossa música é muito rica em texturas, camadas e ideias, mas apesar disso a qualidade das canções nunca é comprometida. Como é que fazem para encontrar um equilíbrio e evitar que a música seja esmagada por todos estes elementos?
É um misto de processo criativo com soluções técnicas. Quando estamos na fase de criação de uma música, vamos incorporando os instrumentos e as texturas sonoras que consideramos que melhor servem o ambiente que dela irradia, tentamos que nenhum instrumento sirva como um mero "acompanhamento", mas que tenha vida própria, que traga a visão de cada um dos músicos. Posteriormente, na fase das misturas, experimentamos várias soluções para encontrar espaços e criar camadas, que podem ser muitas vezes dinâmicas, fazendo com que determinados instrumentos venham mais à superfície em certos trechos das músicas, para em seguida voltarem para um plano mais subliminar. É uma fase em que também se tomam soluções de abandonar alguns sons, por forma a "limpar" certas partes mais concorridas em termos de frequências.
Nos Hipnótica houve um afastamento progressivo da electrónica, mas ainda é uma peça importante na música dos Beautify Junkyards. Como é hoje a tua relação com a tecnologia, numa altura em que a distância nos torna cada vez mais dependentes dela?
Sempre encarámos a tecnologia, e as ferramentas que nos oferece, como sendo uma extensão e não um substituto. Nos Beautify Junkyards isso também acontece, cultivamos o gosto pela síntese sonora electrónica, recorremos a sintetizadores antigos, pedais de efeitos, samplamos sons de variadíssimas fontes, filmes, discos, field recordings, mas sempre com o intuito de colocar esses recursos e tecnologias ao dispor do que queremos fazer. Mas essa relação não é muito linear e muitas vezes também somos surpreendidos com o efeito oposto, ou seja, somos influenciados por uma determinada sonoridade que surge ao acaso e que nos contagia a seguir um caminho que não prevíamos.
De que forma é que este tempo de distanciamento poderá afectar o acto de criação colectiva, que resulta de sessões de improviso e de ensaios, da união de diferentes pessoas, instrumentos, ideias e linguagens? O que é que a música fica a perder com a falta de contacto humano?
Antes deste novo confinamento, já estávamos a ensaiar (com os devidos cuidados) e a preparar os concertos de apresentação do Cosmorama, que deverão ocorrer no início do segundo trimestre. Foi um prazer voltarmos ao contacto físico, temos uma relação muito próxima entre nós e sentimos bastante falta dessa proximidade física. Durante os ultimos meses, a única vez que nos havíamos encontrado havia sido para gravar uma sessão ao ar livre para um festival organizado pela revista inglesa Shindig. Mas em relação ao álbum até tivemos alguma sorte, porque concluímos todas as gravações mesmo antes do primeiro confinamento, o que permitiu que o nosso engenheiro de som (Artur David) tivesse bastante tempo para trabalhar nas misturas.
Ao contrário do que aconteceu no Brasil com a tropicália, Portugal parece ter tido uma relação mais complexada com o seu passado, a sua música e a sua língua, uma certa dificuldade em conseguir digerir esse passado e as influências externas para as transformar e criar algo novo. Que ensinamentos da tropicália foram importantes para os Beautify Junkyards?
Penso que em Portugal isso também tem acontecido, mas talvez de uma forma mais subtil e diluída, não tendo por isso a força e a expressão de um movimento, aquela "antropofagia" mais acentuada que a tropicália nos apresentou. Mas em Portugal temos exemplos logo nos anos 60 e 70 de bandas como o Quarteto 1111 ou a Banda do Casaco (só para citar alguns), que iam buscar referências à folk e ao psicadelismo anglo-saxónicos mas que depois fundiam com a nossa língua e com temáticas da nossa vivência: colonialismo, crítica social, lendas folclóricas. Em relação aos Beautify Junkyards, a tropicália sempre nos trouxe fascínio, pela proximidade que temos com o Brasil – no meu caso particular, residi no Rio de Janeiro durante 15 anos –, mas também por todos os elementos que o movimento nos trouxe, a subversão implícita utilizando o surrealismo, a multiplicidade de cores, a riqueza rítmica, a experimentação sem barreiras ou preconceitos. Mas há outros movimentos e expressões artísticas que nos influenciam por igual, como o período da música kosmische alemã, a folk britânica, os desbravadores da música electrónica, como é o caso da BBC Radiophonic Workshop. Estamos sempre à procura de novos estímulos e vamos partilhando entre nós, seja por playlists de YouTube, seja por mixtapes.
A vossa música parece olhar para o passado sem se aprisionar nele, usando-o para abrir novas portas. Este interesse pelo passado ajuda-te a lidar melhor com a ânsia de um futuro que se adivinha sombrio?
Há muito a falar sobre esse tema e que remete também para o conceito da hauntology (termo da autoria do filósofo Jacques Derrida), em que o passado é um fantasma constantemente a habitar o nosso presente. Se considerarmos, por exemplo, uma melodia, o presente de uma melodia é unicamente uma nota musical pontual, mas que está sempre a ser habitada e contextualizada pelas notas anteriores, formando na nossa mente a construção do todo. Por isso, para nós, o passado nunca é uma prisão, mas sim uma parte do todo que se projecta no futuro. Tem havido muita discussão sobre o desencanto que o futuro nos apresenta em relação às perspectivas que tínhamos sobre ele. Isso está bem retratado na música do Leyland Kirby (The Caretaker) em temas como "Sadly, the future is no longer what is was" ou nos livros do Mark Fisher, em que nos introduz o conceito de que existe uma "slow cancelation of the future" a que estamos fadados – trazido pela multiplicidade de tecnologias que perpetuam cada vez mais o passado a habitar o presente, mas também pelo desencanto trazido pelo neo-liberalismo e suas práticas, com impacto tremendo nas sociedades e no planeta. Nos anos 70, o futuro era visto como algo brilhante, futurista, espacial, de melhores condições sociais para todos, com máquinas a substituírem o homem, que teria mais tempo para a família e lazer. Hoje, as perspectivas de futuro estão indelevelmente ligadas à degradação do planeta e recursos, às desigualdades sociais cada vez mais acentuadas e ao crescimento de movimentos populistas. Cabe-nos a todos passar melhor às novas gerações as lições que a história nos trouxe, buscar a evolução da consciência colectiva, fomentar mais harmonia e compreensão em vez de divisão e ódio. As artes têm o seu papel a cumprir, seja de forma explícita ou como elemento catalizador de mudança.
Como é que encaras a forma como o governo está a lidar com o sector cultural durante esta pandemia?
Todos temos a compreensão de que não é fácil governar e tomar acções durante um evento global e nefasto como este, agora o que temos que exigir é que os nossos representantes estejam à altura dos acontecimentos e que tenham a sensibilidade de percepção da realidade duríssima que o sector da cultura está a viver. Acho que em vários episódios a nossa ministra não esteve nada bem e acho também que há problemas de fundo no sector que já deveriam ter sido resolvido há muito tempo – por exemplo, o Estatuto do intermitente. Recentemente houve algumas novidades em relação a novos apoios, penso que são medidas positivas, vamos aguardar o desenrolar da situação.