Desde que Mariza apareceu, nunca mais olhámos o fado da mesma forma. Num mundo globalizado, deu-lhe novas cores e coordenadas, mas sem desrespeitar a tradição. Agora a completar 20 anos de percurso musical, Mariza canta Amália, no centenário do nascimento da diva. Já a interpretou várias vezes, mas é a primeira vez que lhe dedica um álbum inteiro.
Pedro Lucas, que a solo assina como P.S. Lucas, nasceu no Faial, passou por Lisboa, viveu na Dinamarca e está de regresso à capital. Depois do cruzamento entre a electrónica e a música tradicional portuguesa em projectos como O Experimentar Na M'Incomoda e Medeiros/Lucas, assume influências de nomes como Leonard Cohen e Bill Callahan e aposta tudo em canções belas, onde redescobre o prazer da guitarra. O novo álbum In Between conta com o trio nuclear João Hasselberg (contrabaixo), David Eyguesier (guitarra) e João Sousa (bateria), e participações de músicos como Catarina Falcão (Monday, Golden Slumbers) e Jerry The Cat (Gala Drop, Loosers).
Cresceste com a electrónica, as guitarras ou a música tradicional?
Quando era muito novo, comecei com as filarmónicas, música bastante tradicional. Depois, quando a MTV apareceu nos Açores, cresci com as referências dos Nirvana, com um best of do Bryan Adams. Na adolescência entrei nos Deftones, Limp Bizkit, Korn e Tool, depois conheci os Massive Attack e os Radiohead e isso abriu todo um universo. Quando vim para Lisboa, apanho o electroclash e o Lux, mas ao mesmo tempo começo a sacar discos do Bob Dylan. Em tempos mais recentes, ando talvez mais no jazz e também na música clássica. O meu percurso ficou mais ecléctico.
Estas canções parecem simples e soam intuitivas, mas estão cheias de pessoas e instrumentos.
As canções surgem sempre comigo à guitarra. Vem a letra e depois vem a canção e neste disco acho que se nota bastante essa raiz. No fim, juntei-me com uma constelação de gente muito boa em termos de sensibilidade musical, mas também com ferramentas técnicas de músicos a sério, ao contrário de mim (risos). Estive tanto tempo a trabalhar estas canções sozinho que para ter alguma espontaneidade não passei muito tempo a ensaiar com o resto da banda. Eles trouxeram essa riqueza textural.
Não te vês como um músico a sério?
Vejo-me como um autodidacta esforçado, algo esforçado, talvez não muito esforçado. Do trio nuclear da banda deste disco acho que todos têm um mestrado em jazz. Eu tenho o quinto grau do Conservatório que acabei aos 15 anos, o que é bastante diferente, tenho lacunas brutais.
Há grandes músicos que nunca tiveram aulas de música.
Sim, mas se calhar são mais esforçados (risos). Eu vou aprendendo e tenho evoluído, mas é um processo muito lento. Vou fazendo outras coisas, porque a minha ambição não é criar uma revolução como o Miles Davis ou o John Cage.
Qual é a tua ambição?
Se fosse pretensioso, diria que queria ser um Bob Dylan ou um Sérgio Godinho. Escrever canções boas, que não sejam rebuçados e matéria fácil para entreter, mas também não sejam o último grito da tecnologia musical. Canções que desafiem e toquem as pessoas, acho que é o mais importante. Que emocionem. Mesmo na literatura, aquilo que mais me influencia e cada vez me interessa mais é a capacidade de emocionar. Mais do que as ideais racionais e lógicas ou os teoremas mais pomposos. Interessa-me o parágrafo mais bonito, uma canção mais bonita, do que uma ideia genial. Isso foi um dos substratos destas canções.
Muitos discos que saíram desde a pandemia foram feitos antes da pandemia, mas adequam-se a estes tempos. Sentes isso com este?
Sim. Por exemplo, a “Everything, Everywhere, All The Time” é um desabafo de alguém que se sente assolapado pelo mundo, pela quantidade de informação com que uma pessoa tem que lidar. Mas acho que alguém em 1945 ou 1905 sentiu exactamente a mesma coisa.
Acabam por ser canções intemporais.
Quem me dera (risos). Eu tento ter essa preocupação de não ser demasiado datado. Há uma frase do Italo Calvino, que me acompanha há algum tempo, que diz que a obra clássica é aquela que consegue pôr a contemporaneidade em ruído de fundo, não consegue viver sem esse ruído de fundo. Tento estar atento ao que se passa e influenciar-me por aquilo que se passa, mas utilizá-lo de forma mais rarefeita. Mas neste disco nem houve muito disso. Com Medeiros/Lucas, eu tinha blocos de notas filosóficas com todo um conceito. Neste disco foi tudo mais espontâneo, mais livre.
Preferes assim?
Fez sentido fazer isto agora. O lado mais conceptual também é um desafio interessante. Acaba por ser uma ajuda traçar todo um tabuleiro de jogo – depois é mais fácil jogar, sabendo as regras. Esse lado de imaginar, pensar e discutir, ter um ideário já criado antes de começar a escrever, há um lado muito divertido nisso. Para nerds, talvez. (risos)
Como é que lidaste com os meses de confinamento?
A parte inicial foi fácil, já trabalhava a partir de casa. Eu não vivo da música, estou a trabalhar com um projecto da Universidade Nova de Lisboa chamado Memória para Todos, que é de recolha de história oral. Nessa fase, deu mais tempo para tocar guitarra todos os dias e ainda fiz um projecto de música e cocktails, desafiado pela Lovers & Lollypops. Com a chegada do Inverno, começou a afectar-me mais, e agora com isto a fechar tudo outra vez e não poder tocar ao vivo com um disco novo nas mãos... Isso é frustrante. Acho que estamos todos desmotivados e cansados e a tentar perceber como é que se ganha energia e disciplina para conseguir continuar a fazer alguma coisa.
Como é que este novo confinamento vai afectar os músicos? O que achas que vai acontecer?
Million dollar question. Eu recuso-me a fazer concertos em live streaming. É um formato sem nenhuma qualidade técnica. Eventualmente, poderá haver maneiras engraçadas de fazer isso live, como peças de teatro, coisas mais performativas e conceptuais que fazem uso do próprio formato. Gostei do Ricardo Toscano e do Bruno Santos a tocar jazz no quintal, por exemplo. Mas aquela coisa mais normal de tocar para uma câmara em directo, com mau som e com a estante de livros atrás, não me entusiasma. Sem querer ser um velho do Restelo – porque temos que estar abertos para que as coisas se transformem com os formatos –, mas eu fico com muita pena se isso vingar como formato. A indústria musical revolucionou-se com a Internet e o streaming, pondo o palco outra vez no centro da atenção. Nos anos 90, faziam tournées para promover um disco, hoje fazem discos para poder tocar ao vivo. Neste excesso de honesta facilidade em ter acesso a música gravada, as pessoas viraram-se para a música ao vivo, mas agora não sei como é que vai ser. E eu sou daqueles que gostava que isto não voltasse tudo ao mesmo, que se aproveitasse a pandemia, os Venturas, Trumps e Le Pens desta vida para repensar todo o mundo. Mas eu sou um cínico e sei que não vai acontecer nada disso.
Vai piorar.
Vai piorar muito antes de melhorar.