Centquatre, Paris
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10 cidades que transformaram património industrial em centros culturais

Pode a antiga Manutenção Militar, em Lisboa, transformar-se num bairro das artes? Vamos a 10 cidades que nos mostram como se faz.

Rute Barbedo
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Sobre o local onde se produziram e armazenaram bens alimentares para as Forças Armadas e de segurança, a Manutenção Militar Norte, no Beato, está em discussão a criação de um grande pólo cultural, artístico e comunitário. A ideia seria ali formar várias casas: a da fotografia, da ilustração, do som, do teatro e da dança, da música, das artes plásticas, do vinho, entre outras. E há uma petição a circular para que aqueles 15 edifícios não sejam entregues ao abandono ou à especulação. No novo Bairro do Grilo, pede-se, caberiam respostas à crise da habitação, mas também à falta de equipamentos "sociais, culturais e estudantis da cidade e do país". Impossível? Nem por isso, se olharmos para o que tem acontecido, nas últimas décadas, em cidades como Berlim, Madrid, Paris ou Viena, onde estruturas fabris em desuso tornaram-se pesos pesados da cultura, e da vida.

10 cidades que transformaram património industrial em centros culturais

Paris, o Parc de La Vilette e o Centquatre

Nestas coisas de transformar espaços vagos em cultura forte, ainda por cima com investimento público, França está no topo. Não vale a pena contestar. O Parc de La Villete, no Nordeste de Paris, tornou-se um exemplo para muitas outras cidades europeias de como pegar em património pesado e submetê-lo à delicadeza das artes. Entre 1867 e 1974, ali funcionou a “cidade do sangue”, concentrando os matadouros e mercados de gado da cidade. Seguiram-se quase dez anos de estudos sobre o que fazer a toda aquela área, até que se decidiu construir uma cidade das ciências, da indústria e da cultura (coisa pouca), além de um grande parque urbano. Em 81, ali actuaram os Rolling Stones, mais tarde criaram-se a Cité de la Musique e Philippe Starck criou o mobiliário urbano para um exterior centrado no verde. Em 87, Miterrand foi lá cortar a fita e, desde sempre, La Villette tem sido palco de dezenas de festivais, instalações 'tecnoartísticas' avant-garde, casa do conservatório de música e de dança, da filarmónica ou até de parte dos Jogos Olímpicos de 2024.

Menos grandioso em tamanho, mas talvez mais potente no campo da experimentação, é o Centquatre. O complexo de tijolo e aço da Rue d’Aubervillieres, que foi um conglomerado de agências e cerimónias funerárias até 1997, assistiu, nos anos 2000, à sua própria revolução. O então presidente da Câmara de Paris, Bertrand Delanoë, decidiu transformar o local num conjunto de 18 oficinas, das artes plásticas à dança, que se ultrapassou a si próprio. Centro de artes e de comunidade, aqui o breakdance convive sem freios com as artes visuais, o circo com a fotografia, os bailes populares com o teatro experimental ou a música com a literatura. De 2010 até Janeiro deste ano foi dirigido pelo português José-Manuel Gonçalves.

Marselha e a Friche

Nesta fábrica de tabaco do século XIX produziram-se milhões de Gauloises e Gitanes, durante décadas. Nos anos de 1990 (logo a seguir ao seu fecho), fez-se, no entanto, outro fumo, com a criação do complexo cultural Friche la Belle de Mai, de 45 mil metros quadrados, sob um contrato de ocupação precária com os proprietários, a Seita, empresa do Estado. A iniciativa partiu do município (sobretudo pelo então adjunto da Cultura, Christian Poitevin) e do Teatro Système Friche. Hoje, caso raro pela sua amplitude e modelo de funcionamento, a Friche alberga 70 organizações, 400 artistas e produtores, entre outros profissionais. Aberto 365 dias por ano, o espaço divide-se entre exposições, cafés, pinturas murais, uma gráfica, um jardim comunitário, salas para as artes performativas e espaços para praticar desporto e brincar. Mas continua a crescer. “Não terminámos de escrever a história da Friche la Belle de Mai, terreno de experimentação artística e urbana, projecto social, aventura cidadã singular”, garantem.

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Berlim, a ufaFabrik e muitos outros

Basta dizer "Berlim" para das nossas cabeças emergirem balões simultâneos de paisagem industrial e artística. Mas na história da ufaFabrik há também participação cívica e poder de intervir. Em 1979, quando muitas cidades ainda esperavam pelos anos 90 para começarem a olhar para o seu património industrial, a capital alemã, ainda dividida por um muro, não esperou por governos nem pela prosperidade para tomar um espaço fabril e transformá-lo. “Éramos uma ilha na Alemanha Oriental. (...) Trabalhámos com as primeiras ideias de sustentabilidade, que naquela época se chamava de ecologia. E também experimentávamos as relações humanas, um compromisso social e uma nova forma de integração das artes e da cultura na vida quotidiana. Procurávamos um lugar em Berlim onde pudéssemos fazer isso não apenas nos momentos de lazer, mas realmente para criar um projecto de trabalho e de vida”, contou Sigrid Niemer, uma das fundadoras da ufaFabrik, ao portal Culture Fighter. Ocuparam então este complexo da indústria do cinema, abandonado há anos, mas sob o controlo do município. Sigrid, entre outros, tocou violino à porta do gabinete do presidente e todos mostraram aos berlinenses como se poderia ali criar um pólo de cultura. Berlim Ocidental apoiou. Desde então, o colectivo arrenda o espaço, onde acontece tudo: do techno ao circo. O contrato actual dura até 2037.

Outra ideia, mais institucional, foi transformar uma colossal fábrica de cerveja numa “cervejaria cultural”. Este monumento de Berlim, onde se fez cerveja de 1878 a 1974, sobreviveu a duas guerras e, em 1998, deu-se a transformação do espaço do que é hoje o KulturBrauerei, à boleia do grupo imobiliário TLG Immobilien. São 25 mil metros quadrados de cinemas, clubes, restauração, salas para teatro, dança e concertos. Na capital alemã, há muitos outros casos, como a antiga central eléctrica transformada num dos clubes mais importantes da cidade, o Berghain, ou o bunker que se afirmou nevrálgico para a arte contemporânea, a Fundação Boros.

Barcelona e as Fàbriques de Creació

As fábricas de arte são espaços dedicados à experimentação, à troca, à conversa e até aos erros e dúvidas.” Fábricas de arte. Assim lhes chamam os catalães que transformaram 11 espaços de Barcelona em lugares de produção artística hardcore. Na Ciutat Vella, por exemplo, o local onde se cunhavam moedas entre os séculos XV e XIX, vive hoje um centro de artes performativas. Já na fábrica de têxtil de Sant Andreu, a abordagem é multidisciplinar, indo da criação à exibição de música, teatro ou nada que entre em gavetas. O teatro instalou-se na antiga sede dos trabalhadores de uma cooperativa de Sant Martí, hoje a Sala Beckett, e o circo foi para o Nou Barris e para debaixo de um painel solar também em Sant Martí. O projecto existe desde 2008, inspirado em vários modelos europeus. Todos os edifícios são propriedade do município, funcionando com acordos de cedência.

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Madrid, o Matadero e a Tabacalera

Não é a primeira vez nem será a última que vamos falar de matadouros. Já neste século, o de Madrid transformou-se na “cena” da capital espanhola, sob o investimento público de 10,6 milhões de euros para reabilitar os 48 edifícios deste pólo industrial que funcionou até 1996. No plano especial de intervenção aprovado em 2005, o compromisso foi de que 75% da área seria utilizada para fins culturais e, perante a criação de um programa de apoio a criadores e agentes culturais, o espaço de 165 mil metros quadrados afirmou-se num grande centro da vida madrilena. 

Não muito longe, a Tabacalera (antiga fábrica de tabacos) viveu uma história parecida, mas a gestão divide-se entre o Ministério da Cultura e a comunidade de vizinhos. Enquanto o primeiro fica com a parte das artes visuais, o segundo ocupa-se do centro cultural e social.

Bilbau e o Azkuna Zentroa

Se há cidade com um passado industrial de peso em Espanha, ela é Bilbau, onde, num antigo armazém de cereais nasceu um pólo cultural com centro desportivo (piscina incluída), oito cinemas, uma mediateca e um terraço para comer, beber ou só estar. Quem custeou a conversão foi o município, aliás, muito afincado em lavar o passado industrial da cidade, tornando-a local de peregrinação cultural não nos esqueçamos do Guggenheim. Já o desenho, entre o betão armado e a alvenaria originais, coube a Philippe Starck, num trabalho conjunto com 120 artesãos. A par das exposições e espectáculos, o Azkuna Zentroa é habitado diariamente por estudiosos, leitores e curiosos, que na sua confortável mediateca podem consultar mais de 70 mil títulos, entre revistas, filmes e videojogos.

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Helsínquia e a Kaapeli

Durante 40 anos, nesta fábrica costeira de Sallmisari, produziram-se cabos e outros componentes para a gigante dos telemóveis Nokia. Propriedade do município, hoje a Kaapeli é um dos centros culturais mais importantes da Finlândia, com três museus, 12 galerias, salas de teatro, escolas de arte, oficinas e estúdios para artistas de várias disciplinas. Aqui também trabalham editoras discográficas, agências de design ou o Centro da Nova Dança. Sob a mesma lógica, anos mais tarde, o município decidiu investir na transformação de uma antiga central eléctrica da cidade num centro de artes dedicado ao circo, à arquitectura e à música, a funcionar desde 2009-2010, mas em reabilitação até 2022. O Suvilahti “faz parte de um projecto de renovação mais amplo para toda a área de Kalasatama, onde está em elaboração um plano para transformar um matadouro de tijolo da década de 1930 num centro de cultura alimentar”. E continua.

Viena e o Wuk

Uma antiga fábrica de locomotivas, construída em 1855, tornou-se num enorme centro cultural nos anos 80. Como em alguns casos da “vizinha” Berlim, também aqui o processo começou por uma ocupação, em que um dos motivos principais era chamar a atenção para o estado avançado de degradação do espaço, que poderia ser usado e vivido pelos cidadãos. Hoje, o Wuk é um centro comunitário que não põe de parte os universos infantil e sénior, abrindo-os à vivência comunitária e artística. A aposta é numa programação independente para todas as idades nas áreas da música, artes performativas e visuais.

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Turim e a antiga tabaqueira

Ainda está por vir, mas os papéis já estão assinados. Num antigo bairro industrial de Turim, onde funcionou uma fábrica de tabaco, vai nascer um grande centro cultural e de serviços. Dos planos fazem parte dois arquivos (dos ministérios da Justiça e da Cultura), espaços para exposições e espectáculos e um complexo universitário com residências e outras estruturas para estudantes. No total, são 45 mil metros quadrados de artes, cultura e conhecimento, e também o investimento no espaço público exterior, ligado ao rio Pó e às reservas naturais de proximidade. De acordo com o município, o custo global do projecto rondará os 200 milhões de euros. Uma parte servirá para pagar o trabalho de criação do atelier Eutropia Architettura e da empresa de Pininfarina, o homem da Ferrari, em colaboração com os Arquitectos Weber.

Porto e o Matadouro

Nem tudo acontece lá fora e, por isso, vale a pena terminar a viagem em solo português, mais precisamente no Porto. O antigo matadouro industrial de Campanhã esteve cerca de 20 anos em desuso, até que se decidiu reconverter o local num centro para empresas, comércio, lazer, acção social e cultura. O M-ODU, assim se vai chamar, terá 11 edifícios de escritórios, dois espaços destinados a galerias de arte e museus e dois pólos com cafés, restaurantes e outros espaços comerciais. Pelo meio haverá ainda espaços de cowork e salas para conferências. As obras começaram em 2021 e deverão chegar ao fim ainda este ano já vão na ponte desenhada por Kengo Kumaque sobrevoa a VCI. O investimento global é superior a 40 milhões de euros, e vem da Mota-Engil, que tem a concessão do espaço por 30 anos, altura em que o equipamento regressará à esfera municipal.

Ruínas vivas de Lisboa

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