A matemática é uma realidade muito pouco cinematográfica. Daí que os filmes em que aparece, e tirando a biografia ocasional de um grande matemático – é o caso de O Homem que Viu o Infinito, de Matt Brown – ou de documentários como N is a Number: A Portrait of Paul Erdös, é quase sempre para servir de cabide para uma história principal. Como sucede, por exemplo, em fitas como Uma Mente Brilhante, de Ron Howard, Proof – Entre o Génio e a Loucura, de John Madden, ou O Bom Rebelde, de Gus van Zant. É raro os números estarem no centro dos acontecimentos, como acontece em Pi, de Darren Aronofsky.
Em O Teorema de Marguerite, de Anna Novion, que competiu no Festival de Cannes de 2023, a matemática é impenetrável e de altíssimo voo intelectual (trata-se da Conjuntura de Goldbach, proposta no século XVIII por Christian Goldbach, um dos problemas mais antigos não resolvidos da história da matemática), mas está intimamente ligada à personagem principal, Marguerite Hoffmann (Ella Rumpf), uma brilhante, solitária e algo excêntrica jovem matemática da École Normale. Marguerite vive, respira e digere matemática, e está a preparar a sua tese sob a orientação do professor Werner (Jean-Pierre Darroussin). Mas quando, durante uma exposição pública da sua tese, um outro jovem doutorando, Lucas (Julien Frison) aponta um erro no teorema a que se dedicou totalmente, e a deita por terra, Marguerite fica sem chão.
Em vez de começar tudo de novo sob a orientação de um outro docente, como lhe aconselha o professor Werner, Marguerite tem um acesso parte de raiva, parte de frustração, e decide cortar radicalmente com a universidade e a matemática, e recomeçar a vida longe dos números e dos teoremas. Arranja um emprego numa loja de calçado desportivo num centro comercial e vai partilhar um pequeno apartamento com Noa (Sonia Bonny), uma descontraída bailarina que conheceu numa formação (da qual foi expulsa por ter identificado e apontado erros deliberados e tendenciosos no formulário de um inquérito ao público) e que não pesca nada de números. Marguerite irá não só tornar-se mais autónoma e desembaraçada, como também descobrir as alegrias e as dores da vida social e afectiva.
Só que Anna Novion está menos interessada em filmar uma qualquer “libertação” da obsessão com a matemática por parte de Marguerite, do que em mostrar que, apesar da jovem a ter renegado, ela continua sempre a acompanhá-la e a defini-la, e a ser-lhe fundamental para conseguir singrar fora da universidade (ver a forma como começa a ganhar bom dinheiro para a sua subsistência a jogar Mahjong com os chineses do bairro para onde se mudou, recorrendo ao seu génio matemático). E que as novas experiências em sociedade e sentimentais de Marguerite a tornam mais madura e segura, vão dar-lhe um segundo fôlego para regressar à sua paixão, agora numa parceria, e ainda com mais determinação, e voltar a confrontar-se com a conjuntura que nunca foi resolvida.
Em O Teorema de Marguerite, a matemática não existe para ser “explicada” de alguma forma, muito menos para ser facilmente execrada, mas para ser verosímil em termos do seu peso intelectual e da sua densa complexidade, da importância fulcral que tem para a protagonista e do enorme desafio que representa para ela, contribuindo assim para a evolução pessoal de Marguerite, a movimentação da narrativa e o dramatismo da história (e mesmo para os seus momentos cómicos pontuais). O que está aqui em causa não é a matemática “contra” a vida, mas sim a matemática “mais” a vida.
Anna Novion não resiste a contemplar um ou dois lugares-comuns visuais das fitas envolvendo matemática e matemáticos (o apartamento coberto de equações do tecto ao chão e até em objectos como o papel higiénico), nem a um final feel good adivinhável, mas o filme não sofre particularmente com isso, e Ella Rumpf (prémios César e Lumière de Melhor Esperança Feminina) compõe Marguerite com credibilidade na forma de ser, funcionar e agir, e com circunspecção e graça, primeiro na fase de marrona, tímida e anti-social da personagem, e depois na fase mais aberta ao mundo, aos outros e aos sentimentos. Talvez o melhor elogio que possamos fazer a O Teorema de Marguerite é que não precisamos de gostar de matemática e termos tirado boas notas na disciplina na escola, para o vermos e apreciarmos.