Submergimos no verde, com o sol coado pelo arvoredo e bruma na serra. A capital do Romantismo português só podia ser em Sintra.
Quando era criança, Ana Pêgo brincava quase sempre no areal das Avencas, na Parede. Fazia passeios, observava as poças de maré e coleccionava tesouros naturais, que as correntes marítimas tinham transportado até à linha de costa. Desde vidro-do-mar, fosco e colorido, até vestígios curiosos de animais, como búzios, conchas e fósseis. Ainda sem saber, praticava beachcombing ou, em bom português, a arte de “pentear a praia”. A actividade naturalista ainda não tem grande tradição em Portugal, mas entusiasma cada vez mais veraneantes, que a vão abraçando em família durante todo o ano.
Evocando as peregrinações de menina, que fazia acompanhada com o pai, com quem ia de umas praias para as outras na maré baixa, Ana recebe-nos “no seu quintal” de braços abertos. “São muito boas recordações”, diz, já com os pés a enterrarem-se na areia das Avencas. “Às vezes nem falávamos, ele fotografava e fazia as suas observações, eu as minhas. Agora, venho sozinha ou com as minhas sobrinhas, que fazem imensas perguntas.” Beachcomber desde tenra idade, Ana acabou por tornar-se bióloga marinha e educadora ambiental: matar a curiosidade de mini-exploradores faz tanto parte da sua vida como do seu trabalho.
É incrível como há muitas crianças que moram aqui ao lado e passam o Verão na praia e não sabem nada sobre os animais e os vestígios de fauna marinha que encontram.
As oficinas que dinamiza já não procuram apenas tesouros do mar. Em 2014, em co-autoria com o fotógrafo de natureza Luís Quinta, assinou uma instalação com dez metros de comprimento, o esqueleto de uma baleia-de-barbas, construído integralmente com objectos de plástico encontrados na praia. No ano seguinte, nomeou essa “espécie invasora” Plasticus maritimus e criou um projecto, que mais tarde deu origem a um livro com o mesmo nome. Pensado para os mais novos, é um verdadeiro guia de campo e até inclui instruções para preparar idas à praia.
No Verão, recomenda-se roupa fresca e, se estiver muito sol, um boné ou chapéu de palha. O resto é fundamental até nos meses mais frios: protector solar, água, lanche e calçado anti-derrapante. “As algas podem ser traiçoeiras”, avisa Ana, que aceitou acompanhar-nos num passeio na maré-vazia, ou, como gosta de dizer, a maré ideal. Antes de nos levar até às famosas poças, que se formam entre as rochas e os sedimentos próximos à orla marítima, a bióloga mostra-nos como a mochila de uma beachcomber é um misto entre mala de senhora e bolso de criança, numa exuberância de relíquias perdidas.
Também tenho uma pele de tubarão pata-roxa. Foi-me oferecida por um pescador e costumo mostrá-la aos miúdos.
Entre conchas de moluscos de várias espécies, tamanhos e formas, destaca-se a do quíton, segmentada em oito placas, o que permite ao animal de ar pré-histórico enrolar-se como um bicho-da-conta. Mas há mais maravilhas para admirar. Carapaças de crustáceos, ovos de raia já vazios. “Também tenho uma pele de tubarão pata-roxa. Foi-me oferecida por um pescador e costumo mostrá-la aos miúdos. Há quem coma nas caldeiradas, mas não devíamos. Vou falar disso nas minhas oficinas e em mini-gabinetes de curiosidades marinhas.”
Apesar de não organizar acções de limpeza, recolher lixo também faz parte do seu ritual, como prova a sua colecção de plástico colorido. Ana não só gosta de tentar descobrir de onde vieram esses resíduos como os usa para fazer exposições ou obras de arte. É “artivismo”, diz, convidando pais e filhos a experimentar. Basta que, da próxima vez que forem à praia, recolham alguns exemplares de Plasticus maritimus. Às vezes, se andarmos de olhos bem abertos, também se encontram “coisas exóticas”, como os bonecos que vinham com os gelados Rajá e Olá nos anos 60 e 70.
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Já para identificar fauna marinha não basta só estar atento. Ao contrário das praias arenosas, as rochosas têm habitats mais complexos, como a das Avencas, na Parede, a do Abano, em Cascais, ou a do Magoito, em Sintra. Nestes locais, se evitarmos a preia-mar, o recuo das águas dá-nos acesso a áreas outrora submersas. “Eu costumo ir lá para o fundo”, sugere Ana, apontando para a zona entre-marés, onde é possível encontrar anémonas, os chamados tomates e morangos-do-mar, mas também lapas, mexilhões, cracas, caranguejos ou burriés. Se estiverem vivos, não devemos incomodá-los. Se forem só vestígios, podemos levar para casa. “No caso dos búzios, convém perceber se não estão ocupados por caranguejos-eremitas.”
Pelo areal, no percurso até às poças, as descobertas sucedem-se. Além de ouvir os pilritos-comuns, uma pequena ave limícola de bico comprido, é provável cruzarmos-nos com invólucros de ovos, conchas de choco, estrelas-do-mar já secas e até cascas vazias de ouriços. “Às vezes, encontram-se também uns ossos, que são os dentinhos”, explica Ana, que tem pelo menos um espécime para mostrar. “Chama-se a isto Lanterna de Aristóteles. São muito rijos, usam-nos para raspar algas e se alimentarem ou para fazer concavidades nas rochas, que usam como abrigo.”
Andar a “pentear a praia”, com banhos de sol e mergulhos no mar pelo meio, pode demorar um dia inteiro. E é sempre divertido. No final da expedição, depois de lavarmos e pôrmos a secar os nossos tesouros, naturais ou artificiais, podemos sempre procurar mais informações sobre o que encontrámos. O livro de Ana fala-nos sobretudo de diferentes objectos de plástico, mas há outros guias que nos podem ajudar a identificar as mais diversas curiosidades que o mar traz com cada maré, como os Achados da Praia, de Assunção Santos e Mike Weber. Se aceitar o desafio, talvez comece uma nova tradição familiar. Quem sabe se no próximo ano não terá já uma colecção digna de museu.
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