“É para crianças de todas as idades.” Joana Stichini Vilela avisa que vai recorrer a um chavão para categorizar o novo livro da série Lx – e aí está ele. Depois de ter seduzido nostálgicos e curiosos com os volumes sobre a Lisboa das décadas de 1960, 70 e 80, a jornalista decidiu dar um passo atrás e ao lado, para se debruçar sobre todo o século XX alfacinha e contar histórias de uma outra forma. “Queria perceber se era possível fazer um livro que conseguisse falar tanto para adultos como para crianças. E, não contente com essa pequena ambição, queria com isto criar um pretexto para um encontro entre gerações.” A solução que encontrou foi tornar tudo num jogo; ou melhor, em muitos jogos. Um quebra-cabeças para Pedro Fernandes, co-autor e responsável gráfico pela obra, que teve de perceber como se poderia converter o regicídio, o movimento modernista, o 25 de Abril ou história do rock nacional em passatempos aliciantes para qualquer idade.“
Regra geral, eu tenho as ideias – tanto as boas como as más – e falo com o Pedro, que tem uma paciência de Job e um sentido prático da vida bastante mais apurado do que eu”, conta Joana. É a mesma dinâmica dos jornais e revistas: o jornalista sonha, o designer diz basta. “Mas houve pelo menos um caso que foi ao contrário: o Pedro queria muito fazer uma fotonovela e eu estava com dificuldade em encontrar uma forma de contar a história da feijoada da Ponte Vasco da Gama. Foi o casamento perfeito.” O ilustrador escolhido para dar vida à intriga sobre o Tejo foi Nuno Saraiva, que também deu cor à Revolução dos Cravos. Tiago Albuquerque (autor dos cromos ilustrados abaixo) e João Maio Pinto, que colaboram com a série desde o início, voltam a assinar diversas ilustrações neste LxJoga. Tiago Galo é uma novidade. “Gosto muito das ilustrações dele e achei que conseguiria fazer uma solução interessante para o tema da Oposição e Reacção. E estava certo”, congratula-se Pedro Fernandes, que é director de arte do Diário de Notícias e trabalha nestes livros desde o Lx70.
Oposição e Reacção é o jogo das Escadas e Serpentes adaptado aos 40 anos de oposição ao Estado Novo. O primeiro a chegar aos 100 (e ficar por lá) ganha. Mas estamos a adiantar-nos – é preciso andar muito para aqui chegar. LxJoga abre em 1900, ano em que a capital regista 356.009 habitantes, dos quais 17.638 são estrangeiros (a grande maioria “hespanhoes”). Alcântara é a paróquia mais popular. Conceição, a mais abastada. Unir os pontos é o primeiro desafio que nos propõem, primeiro com um retrato rápido da cidade no início do século passado, depois literalmente: o primeiro jogo testa as nossas capacidades de projectistas para desenhar, ponto por ponto, as Avenidas Novas; poderia chamar-se “Quem quer ser Ressano Garcia?”. Algumas páginas adiante, pode repetir-se a pergunta, embora com o nome de Almada Negreiros: aqui, o “Manifesto Anti-Dantas” é um texto com espaço em branco para preencher a preceito. O regicídio é uma batalha naval. Os tempos da II Guerra Mundial vêm em “código” (que é código para palavras cruzadas). A emissão da RTP é um quantos-queres. O jet-set que em 1968 aterra em Lisboa para duas festas de arromba em Colares oferece material para exemplar quem-é-quem.
“Os jogos são óptimos para teres uma relação diferente com as histórias. Passas a fazer parte delas, pões-te no lugar das personagens, vês as coisas de outro prisma”, nota Joana. “Acrescentam camadas à tua relação com os acontecimentos, ao mesmo tempo que te aproximam deles. Com sorte, também tornam tudo mais divertido.” Se os três livros anteriores se destinavam a quem gosta de conhecer aquela que foi a história quotidiana da cidade (“que acaba por ser, por um lado, parte da história do país e, por outro, parte da nossa história pessoal”), LxJoga é também, segundo a autora, “para quem ache graça à dimensão do jogo na nossa vida: a surpresa, a incógnita, aquele frissonzinho do desafio”.
O primeiro dilema, no entanto, pôs-se aos autores: fazer uma selecção tão apertada de histórias obrigou a método e desprendimento. “É um pouco como fazer um puzzle ou resolver uma equação. Há um objectivo, que é percorrer a história da cidade durante o século XX, e um número de páginas definido à partida, porque queríamos que fosse um livro com um preço acessível”, diz Joana Stichini Vilela, para quem o regicídio, o 25 de Abril ou a Expo’98 eram “temas incontornáveis”. Para o resto foi preciso pôr a intuição a responder a uma pergunta: que temas carregam o “ADN da cidade”? “E aí começas a pensar no que torna uma cidade única: serão os habitantes? será a arquitectura? a cena cultural? E começas a destrinçar personagens, histórias, acontecimentos. A lista inicial é longuíssima e depois vai reduzindo, até chegares ao essencial. Tem de ser um conjunto equilibrado e relevante, com tanto de política, como de noite, folclore e rock’n’roll.”
Se o usarem como é suposto, os próprios leitores terão por função reduzir o livro. Não faltam exercícios de recorte: para jogar, montar, colar e usar. Amália, Eusébio e Variações têm direito a máscaras de página inteira. É um jogo imersivo à antiga. Os móveis Olaio, aqui, não vão à polidora, vão à tesoura – e o verniz dá lugar à cola. Para montar a sua casa portuguesa, com certeza. E para descobrir as icónicas capas da revista Almanaque, desenhadas por Sebastião Rodrigues, tem de recortar e colar os cubos de um puzzle 3D. Vasco Santana, Beatriz Costa, António Silva, Milú e Ribeirinho vêm de roupa interior para as páginas de LxJoga – acompanhados de figurinos para recortar e recriar as vedetas da Hollywood à portuguesa. Destes exercícios o que exigirá maior perícia é a montagem do modelo do Lusitânia, o hidroavião em que Gago Coutinho e Sacadura Cabral fizeram a primeira travessia aérea do Atlântico Sul (“foi o [jogo] mais trabalhoso [para criar] e fez-nos perceber que quem se dedica a este tipo de coisas é ou génio ou louco ou as duas coisas”).
A D. Quixote, que edita o livro, vai oferecer kits de folhas como oferta limitada aos livros comprados em algumas livrarias online. No entanto, Joana Stichini Vilela “adorava ver uns livros riscados, desenhados, e recortados. Mandem fotos!” Quanto ao futuro da série, a jornalista – com artigos publicados na Time Out, no jornal i e na internacional Monocle, e autora de programas de televisão como o Siga o Coelho Branco – diz que o plano é que este seja o último livro. “Queremos fazer outras coisas, em dupla e a solo. Embora talvez seja mais sensato dizer ‘nunca digas nunca’.” Perguntemos directamente, então: fazer um Lx90 continua fora de hipótese? Joana não desarma: “Ainda me parece cedo para fazer um livro sobre os anos 90 com o distanciamento desejável.” Mas, se os seguidores da série amuarem, alguém pode sempre bater-lhes à porta com um desafio: vai um joguinho?