“A falta de diversidade e equidade está a custar ao ecossistema português lucros, talento e inovação.” Fernando Cabral não se cansa de o repetir. A viver em Londres, o guineense é co-fundador da Djassi Africa, juntamente com o seu irmão Rudolphe Cabral, e Portugal – onde cresceram e fizeram grande parte do seu percurso profissional – foi o país que escolheram para começar a mobilizar e empoderar empreendedores da diáspora africana como parte da estratégia da empresa, uma venture builder [que injecta recursos para desenvolver startups e as prepara para futuros investimentos] focada na transformação no continente africano. Mas, na hora da verdade, confrontaram-se com a gritante falta de visibilidade de black founders, empreendedores africanos e afro-descendentes. Foi essa a razão porque decidiram promover o Afropreneurs Report, um estudo exploratório que procurou mapeá-los e caracterizá-los, e aos seus negócios no país, lançando ainda luz sobre as limitações que encontram no acesso às redes e ao capital necessário para crescer.
“O nosso foco não é fazer relatórios. Nós estamos na linha da frente. Mas como é que podemos trabalhar os ecossistemas sem referências? Como é que temos conversas se não temos números que nos guiam e nos contextualizam? O ano passado fomos venture partners da Google no Reino Unido – preparámos 13 startups para o Black Founders Fund [fundo para startups lideradas por afro-empreendedores], das quais três foram bem-sucedidas –, e perguntaram-nos onde andavam as startups portuguesas. De facto não tínhamos nenhuma, e começámos a pensar nisso. Se é de inovação que se trata, a diversidade é uma métrica de desenvolvimento: os ecossistemas mais diversos são mais maduros”, diz Fernando, com quem conversamos por Zoom. Rudolphe também está presente, numa terceira janela. É a segunda vez que nos vemos. A primeira foi em Março, na União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa, onde apresentaram as conclusões da investigação, feita entre Julho e Dezembro de 2022, em parceria com a professora e investigadora Caterina Foá e uma equipa do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do ISCTE.
Quantos são? Quem são? O que estão a fazer? Que dificuldades enfrentam? Como é que os podemos apoiar? Depois da primeira pergunta, já não conseguiram parar, confessam. As respostas, essas, não foram imediatas nem claras. Começaram por “pesquisar à antiga”, para tentar perceber quantos empreendedores existem no ecossistema português e quantos são africanos ou afro-descendentes: chegaram a 1059 empreendedores, dos quais apenas 0.8% são negros. “A média europeia é 3% de black founders incluídos no ecossistema [de inovação]. No UK, que é o ecossistema mais desenvolvido da Europa, é 6%. Portanto, logo à partida, sabíamos que Portugal estaria entre 1% e 3%, porque nunca estaria acima da média europeia. Só não sabíamos o valor exacto, e a principal mensagem é: sabemos que o gap existe, vamos assumir o gap, e vamos trabalhar em conjunto para mudar o paradigma”, desafia Fernando.
Segundo a Startup Portugal, há mais startups registadas no país: 2151 para sermos mais exactos, mas não há propriamente uma caracterização dos agentes envolvidos. “Não há dados oficiais em Portugal sobre o nível de diversidade do ecossistema, do ponto de vista étnico e de género”, esclarece Rudolphe, evocando uma provocação feita por Fernando em Março: “Na ausência de estatísticas, as nossas valem.” Os resultados, entretanto anunciados, baseiam-se numa amostra de 200 empreendedores negros, que responderam a um questionário lançado online (esteve aberto entre Julho e Agosto do ano passado) e divulgado em diferentes canais e meios de comunicação, por nomes como Dino D’Santiago, músico e responsável pelo projecto Lisboa Criola, e Vanessa Sanches, coordenadora editorial da revista digital Bantumen.
“[O Afropreneurs Report] é o primeiro deste tipo no país e neste sector específico. Por isso mesmo foi desenhado e realizado por uma equipa especializada, com todo o rigor científico, cuidados metodológicos e dedicação necessária”, assegura Caterina Foá, que reforça, por um lado, a importância do trabalho que co-assina, sobretudo “considerando a ausência de estudos prévios”; e, por outro, a “elevada adesão”. Além do questionário online, foram realizadas 40 entrevistas individuais e de grupo, para uma análise qualitativa “que enriquece a granularidade dos resultados estatísticos e representa directamente as vozes e as experiências” dos vários players, dos empreendedores aos investidores. “Era importante termos uma baseline objectiva. A partir de agora é que começamos a trabalhar”, acrescenta Fernando, para quem é necessária mais investigação, inclusive por parte de organismos governamentais e organizações de apoio ao empreendedor. Esta é, aliás, a primeira das dez recomendações que encerram o relatório. Mas já lá vamos.
Há talento e experiência para dar e vender
Dos 200 black founders perfilados, a maioria tem entre 25 e 34 anos (48%), é formada ao nível do ensino superior (76%), fala duas ou mais línguas (67%), provém ou descende de imigrantes dos PALOP (81%), vive em Lisboa (84%), e é mulher (54%). Segundo o relatório, que considera e cita outros estudos internacionais, a predominância de mulheres contrasta com as estatísticas nacionais e europeias sobre empreendedorismo feminino, mas está em linha com a tendência verificada no continente africano, onde se estima que representem 58% do total da população auto-empregada. “Neste ponto, importa destacar a relevância de ter pessoas de contextos diversos a analisar os dados. Como operamos em África e estamos familiarizados com o fenómeno, que é histórico, [sabemos que] é natural”, diz Fernando. Rudolphe complementa: “Realmente não há falta de mulheres a tentar inovar. Existem é outros problemas que as impedem de ter visibilidade [apenas 11% tem acesso a incubadoras e programas de aceleração].” É por isso que o Afroprenerus Report inclui uma secção dedicada a destacar a sua experiência – curiosidade: são mais qualificadas do que os homens, mas demonstram menos confiança na sua capacidade de angariar investimento.
Já no que diz respeito às suas motivações, tanto homens como mulheres parecem concordar no top 3 do que os leva a empreender: ser financeiramente independente (98%), solucionar um problema da sociedade ou de uma determinada comunidade (89%), e seguir um interesse, paixão ou desafio (72%). Mas – quer tenham só uma ideia (35%), uma startup (40%) ou um negócio digital (25%) – apenas 39% se encontra dedicado a tempo inteiro. A maioria concentra-se nos media e indústrias criativas, tecnologia da informação, consultoria e finanças, e o projecto nasceu depois do início da pandemia, entre 2020 e 2022. Nas startups, “temos por exemplo algumas fintech [que operam no sector financeiro com soluções tecnológicas inovadoras], como a da Vânia Fortes [Jupiter app], e muitas plataformas de e-commerce, como a da Liliana Rosário [Circular Closets]”, destaca Fernando, antes de fazer uma ressalva. “Quando desenhámos o questionário, a ideia era atrair apenas startups, mas rapidamente percebemos, pelas respostas, que íamos ter um número baixo – muitos dos negócios ainda não chegaram lá –, razão porque incluímos também negócios digitais e ideias de negócio, para que nos próximos relatórios possamos ver a conversão desses negócios e dessas ideias em verdadeiras startups.”
A questão que se impõe é: como se pode ser bem-sucedido com pouca ou nenhuma visibilidade? Além de sub-representados, os afro-empreendedores têm-se confrontado com vários desafios, em particular com o acesso ao investimento. Segundo o relatório, só 30% dos empreendedores negros receberam financiamento, com 54% a prever que será difícil alcançar o mesmo nos próximos nove a 12 meses. A falta de literacia na área – “maior do que se esperaria de um país onde se tem falado tanto de inovação, e que é casa da Web Summit [pelo menos até 2028]” – é apenas um dos factores a dificultar o acesso a programas e redes de apoio relevantes. O fosso entre empreendedores e investidores é gigante – e o maior de todos os problemas. “Os programas de incubação e aceleração [que facilitam o financiamento] estão feitos de maneira a que, por um lado, os black founders não lhes reconheçam valor e, por outro, não sejam escolhidos [para deles usufruir], porque as equipas que os gerem, os júris, os investidores, os mentores, nenhum desses grupos tem diversidade. É por isso que os negócios de grupos sub-representados são vistos como de alto risco.” Segundo o Atomica State of European Tech de 2021, a maior parte dos empreendedores que conseguiram financiamento são brancos. Apenas 1,8 mil milhões de dólares foram alocados por minorias étnicas, em comparação com os 103,9 mil milhões de dólares arrecadados por equipas exclusivamente brancas. No Reino Unido, por exemplo, só 0,24% do VC (capital de risco) foi para empreendedores negros entre 2009 e 2019, segundo dados de um relatório publicado pela Extend Ventures em 2020 – isto significa que, numa década, apenas 38 empresas de black founders foram financiadas.
O cenário não é animador, mas há margem para inverter a tendência a médio prazo. É aqui que entram as recomendações da Djassi Africa para se desenvolverem estratégias, programas e incentivos de apoio a afro-empreendedores. O objectivo é garantir acesso justo a recursos, redes e capital, contribuindo para um ecossistema mais inclusivo, onde todos possam prosperar. “Remover todas as formas de exclusão, activas ou inconscientes, não é a apenas a coisa certa a fazer, é a única coisa a fazer”, lê-se em “The Way Forward”, a última secção do Afropreneurs Report, que propõe DEZ soluções para as principais barreiras que impactam o empreendedorismo negro em Portugal. “Todas são importantes e se complementam, mas é importante reforçar a urgência de termos mais conhecimento e, portanto, de aprofundarmos o tema da representatividade em Portugal, e depois, diria que também é urgente criar programas dedicados a afro-empreendedores, para não termos apenas uma startup num [dos programas que já existem], mas várias dezenas”, remata Rudolphe.
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