Este será, porventura, o Natal mais incerto das nossas vidas. Não sabemos se poderemos reunir a família alargada, não sabemos se poderemos viajar, não sabemos se teremos subsídio ou emprego. A única certeza universal é que haverá bacalhau. E do bom.
Ao mesmo tempo que teletrabalhamos em pantufas e a vida parece suspensa, à hora a que lê estas linhas ocorre um frenesim extraordinário em armazéns espalhados por Alcochete, Torres Vedras, Aveiro, Coimbra. Está tudo a ser feito para não nos faltar a bela posta lascada à mesa.
Na noite de 24 de Dezembro, nos lares de todos os portugueses haverá distribuição de prendas, mas um dos grandes vencedores da noite é sempre quem fornece bom bacalhau. A pessoa do bacalhau transforma-se de repente no ser mais popular da sala, mesmo que seja aquele ente insuportavelmente irritante nos outros 364 dias do ano. Outra peça importante é o cozinheiro que prepara o peixe. Como diz o grande Vítor Peixoto, do mítico restaurante O Vítor, esse templo do gadídeo em Póvoa de Lanhoso (Braga), não há 1001 maneiras de cozinhar bacalhau – há duas: cozido ou assado. Aparentemente simples, obrigam ambas a muitos cuidados, se queremos a perfeição. E queremos, claro.
Cá em casa é sempre cozido. E com todos: batata, grão, couves, cenouras, ovo cozido. Para conseguirmos um bacalhau lascado e com a goma intacta, os hortícolas no ponto certo e que tudo venha quente para a mesa ao mesmo tempo, é preciso logística e atenção aos tempos.
Depois, há ainda o alho e cebola picados para servir na mesa. E a pimenta. A pimenta dos chefs costuma ser a preta, moída no momento. Mas no bacalhau cozido prefiro à antiga, pimenta branca, dessa finíssima. O azeite é outro ponto importante.
Investir num bacalhau jumbo e depois regá-lo com um azeite industrial, sem expressão, é um erro. Outro é acreditar que aquele garrafão caseiro que um amigo lhe deu é que é o verdadeiro sumo de azeitona: cuidado, na maioria das vezes tem ou tulha ou ranço, dois defeitos comuns quando a azeitona não é prensada logo a seguir à apanha e quando os lagares estão mal limpos.
Mas para que tudo corra bem, importa que a matéria-prima seja de excelência e que chegue ao consumidor. Nas fábricas de transformação do Gadus morhua a tradição é reconhecida. O ritmo aumenta exponencialmente nesta época. Do total de bacalhau consumido anualmente, os portugueses dão cabo de 30 por cento na semana da consoada, cinco mil toneladas só na noite de Natal (2019). Costuma dar para todos – e este ano não será excepção.
Em matéria de bacalhau, tudo começou a ser planeado há muito. O peixe que vai comer já saiu da água há pelo menos dois meses. Idealmente, foi pescado antes de Julho. Se gosta de bacalhau a sério, então estamos a falar sempre de mais de quatro meses de cura (o Vintage, da Lugrade, tem 20 meses).
No caso do bacalhau da Noruega, se para além de uma boa cura, quer o topo de gama da qualidade, então falamos de exemplares apanhados entre Janeiro e Março, época em que os peixes nadam centenas de quilómetros, desde o Mar de Barents, para vir desovar à costa sul da Noruega. Esse exercício dá um sabor especial à carne, sendo que é também nesse período que mantêm os maiores níveis de gordura. A gordura gadídea, como se sabe, é formosura, e garantia daquela goma maravilhosa que encontramos entre as lascas.
Repare que nem sempre é fácil encontrar bacalhau deste durante o resto do ano. Está tudo pensado para pôr nas bancas os exemplares premium só agora. Sempre foi assim e continua a ser. Os portugueses podem andar o ano todo a consumir uns meia-cura ultracongelados fraquinhos, mas no Natal abrem a bolsa para comprar do bom.
As empresas sabem isso e sacam para a consoada os tesouros todos que têm nas câmaras de secagem: os jumbo, os curas especiais com 12 meses ou mais, os raríssimos, de cura inglesa. Os melhores mantiveram-se empilhados em verde (ou seja, sem serem congelados, só com sal) a uma temperatura controlada, à espera que o Barbas e as renas largassem da Lapónia.
Daí seguiram para as lojas. Que lojas? Todas. No Natal, as grandes superfícies disputam ferozmente uma percentagem dos premium que costumam chegar apenas às mercearias gourmet e lojas especializadas. Ainda assim, em regra, os distribuidores dão preferência às casas mais afamadas no produto – e, de entre estas, às do Norte. No Norte, o cliente é muito conhecedor e não se deixa enganar. Se for ao Porto, a Braga, a Viana do Castelo, aproveite para comprar aí. Ao pé das gentes do Minho, os lisboetas são uns aprendizes. Em tudo. Na escolha, na compra, na confecção. Os melhores bacalhaus que me passaram pelos olhos e pela boca aconteceram todos acima do Douro.
Outra coisa que os nortenhos sabem fazer como ninguém é demolhar. Para consumir ao longo do ano, sou relativamente transigente quanto às virtudes do demolhado ultracongelado. No Natal, não. No Natal, não há cedências. Temos de passar pelo ritual de afogar o dito em água, eventualmente agastados com o aroma que se espalha pela cozinha, certamente ansiosos sobre o ponto de sal (guia para demolhar nas próximas páginas). Mas, no final, a diferença é evidente. Por mais que o marketing das grandes empresas louve o demolhado ultracongelado, uma coisa não tem a ver com a outra. Se nunca experimentou, faça-o agora. Em vez de brincar ao pão caseiro, brinque à demolha. Mas brinque com tino, está muita coisa em jogo, muitos euros.
O preço do bacalhau sobe com o aumento da procura. O valor médio para os peixes com mais qualidade é sempre acima dos 13€/kg, podendo chegar aos 18€ para os melhores da Islândia ou Noruega e aos 25€, no caso de edições especiais. Parece muito. Há razões antigas para acharmos que o bacalhau deve ser barato, apesar de se tratar de um peixe pescado a mais de 3500 quilómetros de Portugal, que ainda para mais é transformado antes de chegar ao comércio. Historicamente o bacalhau sempre foi alimento do povo, tantas vezes subsidiado, sobretudo durante o Estado Novo. Mas se pensarmos que estamos a falar de peixe selvagem, já descabeçado e eviscerado, percebemos que comprar bacalhau não só é um bom negócio, como um prazer imenso. Uma das poucas coisas com a qual podemos contar no Natal. Uma das melhores.