Catarina Wallenstein entra em O Ano da Morte de Ricardo Reis, de João Botelho, já em cartaz, acabou de rodar Salgueiro Maia – O Implicado, de Sérgio Graciano, e tem um dos principais papéis em Um Animal Amarelo, do realizador brasileiro Felipe Bragança, estreado a 15 de Outubro. Falámos sobre este último filme, rodado em Portugal, no Brasil e em Moçambique, e o seu trabalho nos outros dois.
Primeira longa-metragem da actriz e realizadora Ana Rocha de Sousa, Listen ganhou vários prémios oficiais e paralelos no Festival de Veneza e estreia-se esta semana. Rodada em Londres, é a história do calvário de uma família portuguesa a quem, devido a um mal-entendido, os serviços sociais ingleses retiram os três filhos, incluindo uma menina surda, e os vão dar para adopção. A Time Out conversou com a realizadora.
Qual é a história deste filme?
Foi um filme que foi escrito de repente, porque me pareceu urgente, quando tive conhecimento do caso de uma mãe portuguesa a quem a segurança social inglesa retirou um bebé de dias. Após ouvir a notícia, comecei a fazer pesquisas sobre a temática e mergulhei neste tema difícil de tratar.
Ainda estava em Inglaterra?
Não. Vivi em Inglaterra durante três anos, mas já estava em Lisboa. Este filme é escrito no início de 2016, e eu já estava em Portugal desde o fim de 2013 – a minha filha nasceu em Março de 2014. Portanto, o filme surge numa altura em que eu tinha sido mãe e a minha filha era muito pequenina. Essa dinâmica da maternidade fez-me mergulhar neste assunto. E, a partir do momento em que se conhece esta realidade, é impossível largar.
Listen é baseado só nessa história, ou também noutras?
Não é baseado de todo nessa história. Ela foi o levantar do pano para eu descobrir vários casos, muito casos, para perceber como funciona efectivamente a realidade das adopções forçadas. A partir daí o filme é ficcionado, mas tem por base muitos casos.
A forma como uma família pode ficar, em Inglaterra, à mercê dos serviços socais, e aquela realidade das adopções forçadas, é mesmo como mostra no filme, ou está exagerada para a ficção ter o efeito pretendido?
Não, lamento imenso, mas não. Aquilo é assim, e é ainda pior. Eu não pude retratar a realidade como ela é, porque ninguém iria ver o filme a acreditar que aquilo fosse possível. Tive que fazer o exercício contrário: atenuar, recorrendo por exemplo a uma informação que é dada de passagem sobre o assunto, como sucede quando se refere o facto de as famílias serem pagas para ficar com crianças. A introdução do dinheiro é o que provoca muita instabilidade neste sistema. O dinheiro traz uma corrupção que levanta questões muito sérias e que vai por caminhos muito, muito perigosos. Eu não quis entrar em teorias da conspiração. Quis tentar retratar, na maior das simplicidades, um lado e outro do caso. Embora a minha posição no filme, obviamente, seja do ponto de vista de uma família que é apanhada neste sistema e fica devastada. E não fazia sentido ir buscar um caso com sucesso e um final feliz, porque são muito, muito raros. A percentagem de casos de famílias sinalizadas a quem não retiram as crianças é muito, muito baixa. E lá há campanhas de adopção, há agências de adopção, com fotografias, como se as crianças fossem animais para serem adoptados e salvos. E é importante que se diga isto: não tenho, nem nunca poderia ter nada contra a adopção.
É um assunto delicadíssimo, porque há crianças em perigo em muitas famílias, onde são descuidadas ou maltratadas.
Com certeza. É um assunto muito complexo e muito delicado. Eu percebo que o que o sistema inglês pretende, na sua mais profunda essência, é defender o supremo interesse das crianças. O problema é que essa prevenção está a ser tão excessiva que, de repente, com base em previsões futuras, há muitas famílias perfeitamente inocentes que estão a ser apanhadas no meio destas situações. Tudo o que seja uma adopção contra a vontade dos pais ultrapassa o limite da minha capacidade de entendimento. Não pondo em causa que o Estado possa decidir a institucionalização de crianças para as proteger, essa separação definitiva, da infância até aos 18 anos, não faz sentido ser imposta pelo Estado. Só quando são pais negligentes, ou violentos. Mas mesmo aí há outras possibilidades: institucionalizar as crianças, recorrer a familiares que se tornam responsáveis por elas. E lá o sistema também prevê isso. O problema é quando temos casos como o do filme, em que há famílias completamente isoladas e que são de outro país, e vivem precariamente.
A escolha dos actores que interpretam os adultos foi mais fácil e rápida do que a das crianças?
Sim, a dos adultos foi mais directa. Escrevi o papel do Ruben Garcia para ele. Para o da Bela, tinha várias possibilidades. Eu queria imenso que fosse a Lúcia Moniz a interpretá-la, mas tinha receio que ela não me quisesse dar esse voto de confiança. Porque para entrar numa primeira longa-metragem é preciso alguma coragem, acreditar e confiar. E ela deu-me também esse voto de confiança, que é recíproco. Tinha receio que ela tivesse receio que eu alguma vez achasse que isto não ia resultar. Mas ela deu esse salto de mão dada comigo. E acho que viveu isto de uma forma muito profunda, dedicada e bonita, e em conjunto com o Ruben e os miúdos.
A pequena Maisie Sly, que faz a Lu, é mesmo surda? Como é que trabalharam com ela?
Sim, é surda. Ela já entrou numa curta-metragem que ganhou um Óscar e é uma pessoa muito bonita, com quem a comunicação existe sem ser através da palavra, e para mim, sem ser através do gesto, porque não conheço essa linguagem. Foi uma troca muita específica e com características muito especiais. A Maisie é uma miúda que tem muita densidade no olhar, e que é logo imediata, e muita densidade interior.
Ela é o pilar do filme.
É verdade. A Lu é uma personagem que existe já noutro filme. Quando digo a Lu, não é que seja a mesma personagem. É a ideia da personagem, os seus contornos e o próprio nome. A minha mãe chama-se Lúcia e portanto vem daí. É sempre a imagem da infância da minha mãe que está ali. E é muito bonito que me esteja a dizer que ela é o pilar deste filme, porque ela é-o mesmo. A razão da existência deste filme também vem muito daí. Claro que vem por causa das adopções forçadas, mas toda a estrutura do Listen é erguida em torno desta personagem e da sua fragilidade, de uma menina daquela idade no seio de uma família que se desmembra. E nessa separação, onde é que fica a comunicação, onde é que está o lugar para nos ouvirmos uns aos outros? E ela tem este papel fundamental para a comunicação e para aquilo que é ouvir. E quando digo ouvir, pode ser ver. Quando dizemos, “Ouve-me”, é no sentido de prestar atenção. E a pequena Lu, neste filme, é quem mais ouve. Sendo surda, é quem mais ouve, porque observa o mundo no maior detalhe e com a maior atenção.