Tiago Guedes
DRTiago Guedes, realizador de "A Herdade"
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Tiago Guedes: “Queria fazer um filme muito subterrâneo”

O realizador Tiago Guedes fala sobre “A Herdade”, uma saga familiar portuguesa e a história de um homem tão poderoso fora de sua casa como falhado dentro de portas.

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Tiago Guedes instalou-se no Ribatejo para filmar A Herdade, uma história muito portuguesa sobre poder, família e apego à terra, que começa antes do 25 de Abril e se resolve em tragédia nos anos 90. A Time Out conversou com o realizador sobre este filme com sabor a western ribatejano.

A literatura portuguesa pós-25 de Abril nunca nos deu o grande romance sob forma de saga familiar que abrangesse o antes e o depois da revolução. A Herdade preenche essa lacuna em cinema. Concorda?
Acho uma forma engraçada de o pôr. Mas sim, houve uma vontade de falar muito sobre a história daquela personagem e daquela herdade, e o filme atravessa isso tudo.

O filme tem algo de western e não só pelo tipo de paisagem. Fez-me pensar em A Herança da Carne, do Vincente Minnelli, naqueles filmes em que há poderosos fazendeiros que dominam tudo em seu redor, mas são um desastre em casa, com a família. Tal como a personagem do João Fernandes.
Esse foi um dos pontos que mais me cativou. Para mim, foi muito clara essa vontade de pegar neste homem, enorme em todos os aspectos e mostrar o peso das heranças, as que ele próprio recebeu e vai deixar. E ele não se apercebe dessa inaptidão, dessa incapacidade de lidar com os que lhe são próximos. Ele é capaz de tudo pelas pessoas da terra, pela herdade e tudo o que é o seu pequeno império. E depois, no seio familiar, é muito exigente, nada chega, nada é suficiente. E isso é muito humano. O filho, por exemplo, é fraco para o João, e cresce com essa sombra de o pai o achar um fraco.

A personagem do João Fernandes é inspirada em alguém em especial, é um compósito de várias pessoas ou puramente ficcional?
Houve alguém que serviu de ponto de partida ao Paulo Branco e ao Rui Cardoso Martins, pois foram eles os dois a elaborar uma primeira parte do argumento. Quando eu entrei no projecto, o Paulo já estava com muita vontade de se distanciar dessa figura e de criar uma ficção. E eu então fiz questão de fugir de qualquer referência a essa pessoa. Queríamos uma personagem como é este João Fernandes, mas não quisemos colagens nem homenagens. O João nasce da ideia de um tipo de homem e depois foi trabalhado por todos ao longo das várias fases do argumento. Mesmo na montagem estávamos ainda a construir a personagem.

O João é uma figura complexa. Tem grandes qualidades e grandes defeitos e o seu comportamento é, até certo ponto, compreensível.
Houve sempre a intenção de nunca o tornar o herói nem o mauzão. Queria que as pessoas o compreendessem e sentissem empatia por ele em vários momentos. Só assim é que funciona esta lógica desta implosão da família. Ele não tem essa intenção consciente. Foi importante dar esse ponto de equilíbrio, em que não temos nem preto nem branco. Tentámos fazer também isso em todas as outras personagens, dar esse lado menos esquemático.

A personagem da Sandra Faleiro, a Leonor, mulher do João Fernandes, está grande parte do filme nas margens, a aguentar, a engolir, a sofrer. É uma personagem algo ingrata, não é?
Quando eu entrei no projecto, quis logo dar mais força às personagens femininas, porque precisavam de crescer, e a Sandra sofreu imenso na rodagem, porque tinha essa sensação de “Aonde é que eu me agarro nesta personagem?”. Mas foi óptimo para o resultado final. Eu sabia que que a Leonor ia ser a pessoa que ia desatar o nó. Aquela vida não podia continuar. Ela nos anos 90 já é outra mulher, tem outro olhar, outra postura, outra maneira de responder ao marido.

Foi complicado escolher os actores? Ou já sabia à partida quem queria?
O Albano Jerónimo foi escolha directa e imediata, logo na primeira leitura. Eu faço casting convidando um pequeno grupo de pessoas que acho que são possíveis para os papéis e depois preciso de as sentir um bocadinho mais. Vi poucas pessoas para a Leonor, já tinha ideia do que queria naquele olhar silencioso e naquele sofrer dela. A Sandra tem um peso trágico numa beleza, é especial e cativante. Sabia que precisava de muito bons actores, e daí a escolha deles todos. Tinha que ter actores com profundidade, não apenas caras. Até os que fazem coisinhas pequeninas tinham que ter peso. Nunca quis fazer um filme sobre eventos. Queria um filme muito subterrâneo e para isso precisava de profundidade.

A Herdade é um filme caracteristicamente do Ribatejo, da lezíria?
Sim, é. Até já mo descreveram como passando-se no Ribatejo com um cheirinho a Almada (risos).

Crítica: “A Herdade”

De Tiago Guedes, 166 minutos
★★★★☆

Já tardava que o cinema português nos desse um filme como A Herdade, uma história familiar robustamente romanesca, de amplo fôlego dramático e com músculo cinematográfico, bem ancorada na realidade histórica portuguesa recente, apanhando o fim do antigo regime, a loucura revolucionária pós-25 de Abril e a acalmia democrática, e tendo no centro uma personagem forte, carismática e funesta. João Fernandes (um magnético e intenso Albano Jerónimo), um poderoso proprietário rural ribatejano, rei e senhor das suas terras e no seio da família, que resiste às pressões, primeiro do marcelismo decadente, e depois de uma revolução tresloucada. Mas a capacidade que este homem autoritário, voluntarioso, justo e mulherengo tem de enfrentar o mundo exterior e de o afeiçoar à sua vontade para defender, manter e fazer prosperar o seu pequeno império, é letal no mundo íntimo da sua família e dos seus próximos. Construtor fora de casa, João Fernandes é um destruidor dentro dela, onde faz todos sofrer, da mulher, Leonor (magnífica Sandra Faleiro), aos filhos, passando pelos que lhe são mais leais. O que irá conduzir a família à implosão, a pequena comunidade que a rodeia à dispersão e a propriedade ao desmembramento – e tudo, ironicamente, em plena normalização democrática. Tragédia de um homem realizado na acção e falhado nos sentimentos, A Herdade integra na narrativa a paisagem em que se situa, vai beber ao westernclássico e a um certo cinema italiano realista e social sem comprometer a sua identidade, e exibe um elenco bem escolhido e dirigido, irrepreensível e homogéneo, dos papéis principais aos mais pequenos. É cinema bom, íntegro, vigoroso, absorvente. E português. EB

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